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EDITORIAL: Crime e Castigo

No livro de catecismo dos meus tempos de criança, havia uma gravura em que era mostrado o castigo da arrogância humana pela justiça divina. Essa ingénua gravura mostrava o afundamento do Titanic contra um iceberg, logo na sua primeira viagem, em que pereceram 1.514 seres humanos. Os construtores do luxuoso transatlântico teriam afirmado que o navio era tão seguro que nem Deus o conseguiria afundar. Daí ao castigo divino teria sido um passo, segundo os ensinamentos às criancinhas daquele catecismo. 

Gente racional, percebe que o Deus que não se preocupa com a miséria e o sofrimento de milhões de seres humanos não perderia o seu infinito tempo a tratar de uma coisa tão corriqueira como a arrogância dos construtores daquele paquete. Quando muito, deixaria isso para o diabo. E nós, seres racionais, que percebemos que o pecado original não consistiu apenas no comer uma maçã ou uma laranja  da árvore do conhecimento do bem e do mal que Deus plantara no meio do paraíso, mas que essa maçã ( ou laranja) dava o conhecimento e que o conhecimento trouxe o castigo do homem pelos séculos dos séculos porque o conhecimento é tantas vezes, fonte de infelicidade.

Vem isto a propósito do desastre do pequeno submarino Titan ( só o nome mostra a vaidade humana  que acredita que pode construir máquinas como se criasse deuses ancestrais) que seres arrogantes tinham construído para seu gozo, e tinham a certeza de que resistira a quatro mil metros de profundidade numa viagem de turismo aos destroços do Titanic. A sua arrogância não consistiu em desafiarem Deus – certamente que seriam cristãos temerosos do castigo divino. Consistiu sim no desperdício de milhões  de dólares na construção  de algo que servia apenas para seu gozo pessoal, e gastarem outros milhões numa viagem a um lugar que merecia a distância e o respeito silencioso dos homens. E fizeram-no enquanto milhões de seres humanos sofrem de fome e de miséria, sem que alguma vez pensassem que tal era um desrespeito por essa humanidade sofredora, uma vaidade, um egoísmo e uma arrogância que deveriam repugnar a qualquer sã consciência. 

Certamente não foi por castigo divino que morreram, mas interrogamo-nos se não merece castigo esta gente que assim procede, e merece perecer um sistema económico e social que incentiva o egoísmo, a ganância e a ostentação que esmagam o mundo daqueles que sofrem de fome e de miséria.

HENRIQUE DÓRIA

 

Fotografia de Henrique Dória

 

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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