Poesia & Conto

Um pequeno herói por causa da solidariedade | José Manuel Simões

Foto de Joana Abreu na Unsplash

Recordou-se de um certo dia em que fazia o exame da quarta classe, nervosíssimo por dentro, tentando aparentar toda a calma do mundo para não afligir a mãe, sem conseguir raciocinar, nem mesmo ouvir as questões que a dona Amélia, a professora, lhe colocava, sem responder a rigorosamente nenhuma pergunta. A plateia estava preenchida com mães – nem um único pai – cobertas com um xaile preto, olhar inocente e triste, medo de verem os seus filhos reprovarem sem os ajudarem; a maioria não sabia ler ou escrever uma letra. A sua, xaile castanho, ao vê-lo naquele estado de aparente indiferença até pelas perguntas, começou a rezar, um terço nas mãos, repetindo a oração da Avé Maria seguida pela Salvé Rainha, dedicadas à Rainha Santa Isabel, protetora de Coimbra. Uma lágrima correu-lhe por entre uma acentuada ruga do rosto, marca de sofrimento, o que o fazia distanciar ainda mais de tudo aquilo. O que estaria a pobre da mãe a sentir? Via que rezava, rezava sem parar, as bolas roxas florescentes do terço a deslizarem entre os dedos. Na véspera ela tinha rezado um terço inteiro e insistido para que ele rezasse também. Fê-lo, para agradar à mãe mais do que por acreditar que ia passar por causa da reza. No piso da casa onde morava, no Bairro Alto, de onde se avistava a torre da Universidade de Coimbra para lá da mata do choupal, rezou onze terços. 

 

Tinha sido daquele piso, a uns quatro metros do chão, que, aos dois anos, caíra dentro de uma panela vazia com que as empregadas davam comida aos pastores alemães – ao Jadice, ao Nundigo e à Morena – sem que nada lhe acontecesse, nem um arranhão na pele. A situação passou a surgir-lhe em sonhos. Ao cair, depois do susto, voava, planava, leve, até pousar no chão. Ainda hoje sonha recorrentemente que voa, com a diferença de que o medo maior é não saber onde e como vai aterrar. Adora avistar as árvores lá de cima, campos, montes, rios e florestas, as aldeias onde da última vez as pessoas se juntaram para o ver voar. Sentiu-se idolatrado, por momentos vislumbrou a imagem de uma espécie de orgulho, as pessoas anunciando – “lá vem o homem que voa”, uma distante mas estrondosa salva de palmas, e ele com receio de pousar. 

 

A mãe rezava insistentemente, lágrima nervosa, “deixe lá senhora Rosa que ele sabe muito”, consolava-a a mãe do Vítor Ferrão que vendia tremoços e viria a perder os dois filhos prematuramente.

 

Nunca soube ao certo o que o livrou da raposa. Se tinha sido o bom ano escolar, se as rezas, se a condescendência da dona Amélia.

 

Quase todos passaram mas apenas três continuaram a estudar. Tinham 10 anos e precisavam trabalhar, “para ajudar a família a ganhar o pão de cada dia”, diziam. 

 

Foi para a Escola Preparatória Eugénio de Castro, na Solum, em Coimbra, aparentemente porque os pais tinham mais possibilidades económicas, na prática porque precisavam que ele ajudasse a irmã a distribuir o pão de porta a porta. Todos os dias, com exceção dos domingos, em que a padaria fechava, levantava-se às 5 horas da manhã, contava uns milhares de pães, dois numa mão, três na outra, aceitava resignado a obrigação. 

 

Com um saco de papel, antes usado para empacotar 50 quilos de farinha, ia entregar o pão, a que uns chamavam carcaça, outros bico e outros papo-seco. Umas famílias queriam diariamente a mesma conta, outras deixavam um papel com um número. Aos sábados de manhã ia receber o dinheiro; umas não estavam, outras não pagavam, outras ficavam a dever uma parte, pouco sobraria de lucro. No princípio fazia a distribuição com a irmã, depois passou a andar sozinho, o dia a nascer, vergonha de ser visto. A irmã casou com 18 anos e deixou de o acompanhar. Sentiu a perda de como que uma segunda mãe, os 10 anos de diferença acentuaram-se, uma nova vida avizinhou-se. 

 

A irmã deixou de ir entre ele e o pai na Ford Transit no imenso trajeto, os 7 quilómetros, que separavam São João do Campo de Coimbra, encostava-se muito ao vidro para se afastar o mais possível do nervosismo matinal do progenitor, sempre a lamentar os atrasos. Não era violento, mas certa vez deu dois murros no tablier da carrinha. Tal como tinha tido medo do padre e do professor Bento, também morria de medo do pai. 

 

Em Coimbra, todas as manhãs os colegas do ciclo passavam por onde ele andava com o saco do pão às costas. Escondia- se, envergonhado por estar a trabalhar desde madrugada. No terceiro ano do ciclo, durante algum tempo, o Martinho Gandarês foi com eles para não pagar transporte, ajudando na tarefa, mas, quando fez 13 anos, trocou o estudo pelo trabalho numa oficina de mecânica de automóveis. 

 

Não tinha notas excecionais, mas era um aluno exemplar. Como desde os 10 anos recebia o dinheiro das clientes proveniente da venda do pão, cedo se habituou a tratar o dinheiro como se fosse um adulto, retirando para si o valor de um livro dos “Cinco” ou dos “Sete” da Enid Blyton, “As Púpilas do Senhor Reitor” de Júlio Dinis, “Os Maias” de Eça de Queiroz, “Amor de Perdição” de Camilo Castelo Branco, e entregando o restante ao pai que fazia questão de confiar no filho, não conferindo as contas. Ao contrário da maioria dos colegas e amigos, nunca lhe faltou dinheiro. Todos eram, a maioria das vezes, felizes. O Zé Maria, uns quatro anos mais velho, era o melhor jogador de futebol, o mais criativo e habilidoso, um líder por natureza, daqueles que faz sem se afirmar. Com as tampas das garrafas, a que chamavam chicras, colocava dentro uma cartolina com o nome, o clube e o número do corredor em três tiras pintadas com cores diferentes. Corria sempre com as verdes e brancas do Sporting e normalmente o “camisola amarela” da etapa anterior que frequentemente ganhara. No “prémio da montanha” colocava umas pontes de cartão na pista por onde as chicras voavam, o percurso numa berma mais íngreme da estrada igualmente de terra onde irregularmente passava uma carroça puxada por uma vaca. Tal como nas corridas a sério, o Joaquim Agostinho ficava, na maioria das etapas, em primeiro lugar. Depois da Volta a Portugal seguia-se a da França e aí apareciam os grandes nomes, Freddy Merckx da Bélgica e Luís Ocaña da Espanha eram os mais frequentes vitoriosos. 

 

DuArte e Zé Maria eram os que faziam os melhores traçados, os muros de areia mais consistentes, as curvas mais acentuadas. Os corredores que ultrapassassem o muro voltavam à posição em que se encontravam. 

 

O Zé Maria foi viver com a mãe em casa da irmã mais velha, em São Silvestre, deixando o pai sozinho sob o pretexto de que bebia e tratava mal a família, e os vizinhos sentiram a sua falta. Certa vez, o Zé Maria pai entrou na missa e começou a proferir bem alto entre as orações: “ó senhor Jesus Cristo mostra-me que tu existes e manda o sacristão trazer-me aqui um copo de vinho. Tás a ver que não mandas nada? Tu não existes, tu foste criado pela igreja para enganar o povo. Enganar vocês. O vosso ópio não é o futebol mas a religião”. Fora as expressões de desdém e de indignação ninguém se manifestou, todos fazendo de conta que o senhor, que antes da reforma tinha sido polícia, não estava lá. Desde que tinha apostado, e ganho, que era capaz de comer um rato assado dentro de um pão se lhe pagassem cinco litros de vinho, que tinha o respeito de uns e o desprezo de outros. Comentava-se que de uma outra vez trincou duas sardinhas cruas logo pela manhã acompanhadas por um litro de vinho bebido de golada. 

 

Outro que cometia dessas “proezas” era o Zé Cacete. Sempre que tentava guardar as redes da equipa que deu origem ao Sanjoanense Atlético Clube tinha um garrafão de cinco litros encostado às malhas laterais, da parte de dentro, não fosse alguém roubá-lo. 

 

Naquele tempo tentou vender a mulher, mas o homem que a queria levar, lá da Banda Além, para os lados de Pereira do Campo, disse que ela não valia os 500 escudos que o Cacete exigia. 

 

Para além da Volta a Portugal e da Volta à França em chicras, a maior diversão eram os jogos de futebol na estrada de terra batida, jogos duros, disputados arduamente entre o muro do Zé Bizarro e o portão da Maria, ao lado da sua casa, duas pedras no chão marcando a baliza. No calor da pelada muitos desafios terminavam em conflito e, mesmo não entrando nas brigas, certa vez o Carlos da Amara, mais novo, choramingão, que ficava sempre à baliza por não ter competência para avançar, apanhou com uma bola na barriga e começou a gritar pelas irmãs. Como não sabia dizer “mana”, clamava pela “pama”. A irmã mais velha, a Maria do Carmo, a quem chamavam Carma, veio lá do fundo em grande correria, deixando bater com estrondo o portão da casa onde não havia água potável, luz elétrica, ou banheiro – faziam as necessidades num buraco ou no quintal dos fundos e limpavam o rabo com folhas de couve – a perguntar: “Quem foi? Quem foi?” Aproximou-se, deu-lhe um pontapé no rabo e, com ar ofendido, berrou: “porque é que bateste no menino? Coitadinho, que mal é que ele te fez para tu lhe bateres?” E ele, sem jeito, que não tinha feito nada, “foi a bola”. O pai acordou e veio à janela do primeiro andar. Nervoso, sem sequer tentar perceber o que se passava, ordenou: “Já lá para dentro regar os legumes”. 

 

Enquanto cumpria a tarefa, as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo, revoltado, achando-se vítima de uma injustiça. Foi nesse mesmo quintal que anos mais tarde, por entre as canas que seguravam os recém nascidos feijões verdes, que quatro dos amigos mais chegados dariam à luz o seu primeiro esperma. Foi longo, moroso e deixou-o com a pilinha inchada e dorida durante duas semanas. Na hora h uma dor fininha fez sair um líquido espesso, amarelo. Prazer propriamente dito apenas ao contar a façanha ao Zé Mercês, ao Jorge Caramilo, ao Zé André e ao Bizarro. Tinha passado da infância para a adolescência. 

 

Continuava a estudar em Coimbra, com bom aproveitamento, todas as manhãs contava e distribuía o pão, apaixonou-se pela primeira vez por uma mocinha, vertente “menina bem”, que apenas conhecia de vista. Pensava nela a toda a hora e acreditava que a amava. Nas carteiras da escola, nos livros e nos cadernos escrevia “I love Madalena”. Foi assim que ela veio a saber. Mas não lhe ligou nenhuma. 

 

Era tímido e escondia dentro de si um nervosismo retraído. Nunca falou com ela com medo que descobrisse que andava a vender o pão. Apesar do Laranjeira, que distribuía o leite, ser da turma dela, passou a esconder-se ainda mais. 

 

No quarto ano do ciclo, a irmã, por influência das senhoras onde iam entregar o pão, decidiu que ele iria estudar no Liceu Nacional de Dona Maria, o das elites coimbrãs, tendo, por falta de identificação, no ano seguinte, transitado para a vizinha Avelar Brotero, anteriormente escola industrial e comercial, onde se viria a revelar como o melhor aluno da turma, um dos melhores de toda a escola, um pequeno herói por causa da solidariedade e dos exames que, quinze minutos antes do término, ritualisticamente fazia passar de mão em mão pelos colegas academicamente mais necessitados.

 

José Manuel Simões

Fotografia de José Manuel Simões

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos.

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