Cultura

Língua brasílica (Nheengatu): o verdadeiro idioma “brasileiro” | Wesley Sá Teles Guerra

Foto de Sergiu Vălenaș

Muitos brasileiros já tiveram a necessidade de explicar que seu idioma é o português e não o “Brasileiro”, não havendo de fato um idioma chamado Brasileiro, pois a língua lusa, embora com as influências e alterações do tempo, é o idioma oficial do Brasil. Da mesma forma que o castelhano é a língua oficial dos países hispanofalantes, ainda com as típicas diferenças regionais e influências locais.

 

É no mínimo curioso essa tentativa de cisão ou classificação, realizada por muitos, embora seja uma constante na maioria das chamadas línguas globais, pois até mesmo a denominada língua internacional, o inglês, sofre alterações que vão desde palavras ao uso de determinados verbos, em países como os Estados Unidos, Austrália, Reino Unido… porém não deixam de ser Inglês!

 

Os idiomas estão em constante evolução, recebendo novas palavras e abandonando velhas expressões, porém sem provocar sua dissociação linguística, sendo essa divisão normalmente mais uma tentativa de espelhar um sentimento nacionalista, ou até mesmo de forçar uma exclusão apoiada na xenofobia ou em ideologias políticas.

 

Porém, já houve uma linguagem considerada como “o brasileiro” ou o idioma próprio do Brasil, a chamada Língua Brasílica ou Nheengatu, uma padronização do idioma tupi, que conviveu com o português ao longo da colonização do Brasil, mas que aos poucos foi perdendo espaço até ser substituído pelo português.

 

 

A história da Língua Brasílica, também conhecida como Língua Geral Amazônica ou Nheengatu, é intrinsecamente ligada à colonização das terras do Grão-Pará, marcando um capítulo significativo na formação cultural e linguística do Brasil. Porém, por quê a mesma não é uma língua co-oficial como acontece com o guaraní no Paraguai ou Quechua na Bolívia? Vejamos sua história e os motivos, tais e como apresentou Eduardo Guimarães após um exaustivo estudo da língua portuguesa no Brasil.

 

A Criação e Disseminação:

 

A Língua Brasílica teve suas raízes fincadas nas terras do Grão-Pará em 1616, quando as primeiras tropas portuguesas se estabeleceram na região da Costa do Salgado. O contato com a variante do tupinambá local levou à formação dessa língua franca, inicialmente adotada nos aldeamentos jesuítas. Ela serviu como ponte de comunicação entre povos indígenas de diversas etnias, caboclos e colonizadores.

 

Os padres Jesuítas foram os responsáveis de padronizar a língua tupi, de modo a usar a mesma para catequizar os índios e aumentar a integração entre europeus e os moradores de Pindorama (nome do Brasil para as populações indígenas). Embora  cabe lembrar que não somente o Tupi era falado no Brasil,  porém do mesmo se derivam uma centena de línguas que puderam ser mais ou menos estandardizadas em uma linguagem geral, daí o nome de Língua Geral Amazônica. 

 

À medida que os aldeamentos se expandiram pelos rios amazônicos, a Língua Brasílica perdeu seu caráter étnico original, transformando-se em um vernáculo supraétnico. Esse processo de transformação foi paralelo ao desenvolvimento da língua geral paulista no litoral do centro-sul.

 

Línguas indigenas faladas no Brasil em 1500.

 

No século XVII, o Brasil usava prioritariamente a língua brasílica e suas variantes como forma de comunicação verbal e o português como língua oficial de Estado para se comunicar com a coroa. Porém, cabe lembrar que a parte ocidental do Brasil estava sob o domínio dos holandeses (1630-1654) o que representava uma ameaça ao próprio português ao haver outra língua de estado (europeia) competindo na região. 

 

Com a saída dos holandeses, muda o quadro de relações entre línguas no Brasil na medida em que o português não tem mais a concorrência de uma outra língua de Estado (o holandês). A relação passa a ser, fundamentalmente, entre o português, as línguas indígenas, especialmente as línguas gerais, e as línguas africanas dos escravos. Esse período caracteriza-se por ser aquele em que Portugal, dando andamento mais específico ao processo de colonização, toma também medidas diretas e indiretas que levam ao declínio das línguas gerais.

 

Mapa holandês do Recife

 

A população do Brasil, que era predominantemente de índios, passa a receber um número crescente de portugueses assim como de negros que vinham para o Brasil como escravos. Para se ter uma ideia, no século XVI foram trazidos para o Brasil 100 mil africanos. Este número salta para 600 mil no século XVII e 1,3 milhões no século XVIII. O espaço de línguas do Brasil passa a incluir também a relação das línguas africanas dos escravizados e o português. Com o maior número de portugueses cresce também o número de falantes específicos do português. E isto tem uma outra característica: os portugueses que vêm para o Brasil não vêm da mesma região de Portugal. Desse modo, passam a conviver no Brasil, num mesmo espaço e tempo, divisões do português que, em Portugal, conviviam como dialetos de regiões diferentes.

 

Nesse período, ainda, há dois fatos de extrema importância. O primeiro deles é a ação direta do império português que age para impedir o uso da língua geral nas escolas. Esta ação é uma atitude direta de política de línguas de Portugal para tornar o português a língua mais falada do Brasil. Uma dessas ações mais conhecidas é o estabelecimento do Diretório dos Índios (1757), por iniciativa do Marquês de Pombal, ministro de Dom José I, que proibia o uso da língua geral na colônia. Assim, os índios não poderiam mais usar nenhuma outra língua que não a portuguesa. Essa ação, junto com o aumento da população portuguesa no Brasil, terá um efeito específico que ajuda a levar ao declínio definitivo da língua geral no país. (Guimarães, Eduardo. 2005)

 

Diretorio dos Indios, que proíbe o uso das linguas gerais, principalmente a Lingua Brasílica.

 

Proibição e Portugalização:

 

A oficialização da Língua Brasílica pela Coroa Portuguesa no período de 1689–1727 foi seguida por tentativas de portugalização, ainda que a mesma fosse amplamente usada no Brasil colônia, a imposição do português como língua de Estado; além das restrições da coroa quanto a empreendimentos culturais no país, manteve a mesma sob uma forte pressão de Portugal, não havendo a possibilidade de desenvolver uma ampla literatura ou outras manifestações culturais. 

 

Em 1727, uma carta régia proibiu seu uso nas povoações e aldeias, determinando o ensino do português. Após a Guerra dos Cabanos (1835-1840), o processo de supressão tornou-se violento, com punições para quem falasse em Nheengatu e mudanças nos nomes de lugares.

 

A coroa portuguesa temia a formação de um sistema identitário brasileiro alheio a Portugal o que ficou refletido na guerra dos Cabanos, fazendo com que a mesma optasse por impor o português como única língua. 

 

O Diretório dos Índios, publicado em 1757, destacava a imposição da língua portuguesa, afirmando a soberania metropolitana. No entanto, esses esforços encontraram resistência, pois o número de falantes de outras línguas na Amazônia superava os colonos portugueses.

 

Durante o século XVIII, a Língua Brasílica expandiu-se em diferentes variedades ao longo de rios, como Solimões, Juruá, e Baixo Tocantins. Mesmo com a consolidação da língua portuguesa no final do século XIX, o Nheengatu permaneceu enraizado no linguajar dos amazônidas, nos sotaques ribeirinhos e entre os povos indígenas do Rio Negro e Baixo Amazonas.

 

Porém, a chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808 estabelece um momento chave para entender o processo de formação linguística do Brasil e como o mesmo se decantou pelo português, já que somente com a chegada da corte do Rei João VI o país começa de fato a consolidar instituições do conhecimento, tais como teatros, bibliotecas e universidades, usando sempre o português como língua oficial. Assim mesmo, os nobres locais buscavam se aproximar da vida cortesana, de modo que foram relegando as línguas gerais para os escravos e nativos.

 

Chegada da Corte Portuguesa

 

O português foi então reconhecido como língua oficial já no Brasil colônia, sendo posteriormente língua oficial durante o período imperial de Dom Pedro I e Dom Pedro II e posteriormente reconhecido na República velha, sendo inserido na constituição do país.

 

Certo é que o mesmo foi influenciado pelas linguagens locais que se desenvolveram ao longo da história, seja a língua Brasílica da região norte do país, aos dialetos quilombolas dos africanos escravizados, o guaraní e as línguas indígenas do sul do país e posteriormente a influência dos fluxos migratórios europeus do final do século XIX até metade do século XX, onde italianos, turcos, alemães, espanhóis e até mesmo portugueses, formaram parte das políticas de embranquecimento do país e da geração de uma identidade urbana com a posterior revolução industrial, que teve no imigrante italiano Matarazzo um dos seus maiores expoentes.

 

Políticas para atrair imigrantes ao Brasil.

 

Recuperação e Atualidade:

 

No século XXI, esforços significativos foram empreendidos para recuperar e preservar a Língua Brasílica. Projetos como a tradução na telefonia da Motorola e a criação da Academia da Língua Nheengatu em 2020 demonstram um compromisso renovado com essa herança linguística. Professores e ativistas uniram forças para regularizar e padronizar a língua em suas três vertentes, buscando recuperar o espaço perdido e afirmar a identidade única da Amazônia.

 

A história da Língua Brasílica é uma narrativa fascinante de resistência e resiliência. Desde sua criação como língua franca no contexto da colonização à proibição e aos esforços contemporâneos para sua recuperação, ela permanece como um elo vital para compreender a riqueza da diversidade linguística e cultural do Brasil. Ao preservar e revitalizar a Língua Brasílica, estamos não apenas honrando o passado, mas também construindo pontes para um futuro mais inclusivo e consciente das raízes que moldaram o verdadeiro “brasileiro”. Porém este é somente um projeto que visa enriquecer nossa ampla herança cultural,  sendo a língua oficial do Brasil o Português, já que o “Brasileiro” foi proibido pelos próprios portugueses.

 

Referências:

 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL – Guimarães, Eduardo. 2005 SBPC

 

Fotografia de Wesley Sá Teles Guerra

Wesley Sá Teles Guerra, formado em Negociações Internacionais pelo Centre de Promoció Econômica del Prat de Llobregat (Barcelona), Bacharel em Administração pela Universidade Católica de Brasília, Pós-graduado em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, MBA em Marketing Internacional pelo Massachussetts Institute of Business, MBA em Parcerias Globais pelo ILADEC, Mestrado em Políticas Sociais com especialização em Migrações pela Universidade de A Coruña (Espanha), Mestrado em Gestão e Planejamento de Cidades Inteligentes (Smartcities) pela Universitat Carlemany (Andorra) e doutorando em Sociologia e Mudanças da Sociedade Contemporânea Internacional. 

Atuou como paradiplomata e especialista em cooperação internacional e smartcities para a Agência de Competitividade da Catalunha (ACCIÖ – Generalitat de Catalunya), atualmente é colaborador sócio do Instituto Galego de Análise e Documentação internacional (IGADI) e do Observatório Galego da Lusofonia (OGALUS), Também participa como coordenador da área de Economia, Ciência e Tecnologia do CEDEPEM – UFF.

Idealizador e diretor do CERES – Centro de Estudos das Relações Internacionais, membro do Smart City Council, do IAPSS International Association for Political Sciences Studentes, do Consório Europeu para a Pesquisa Política, REDESS, Centro de Estratégia e Inteligência das Relações Internacionais e colaborador da ANAPRI.

Autor dos livros ”Cadernos de Paradiplomacia” (2021) e “Paradiplomacy Reviews” (2021) além de participar do livro “Experiências de Vanguarda, no ensino nos países lusófonos” publicado em 2021 pelo CLAEC e organizado pela Dra. Cristiane Pimentel. 

Professor, articulista e especialista: wesleysateles@hotmail.com



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