Cultura

Só a imaginação nos salva do vazio | Maria José de Queiroz; Maria Silvia Duarte Guimarães

Foto de Vlad Kutepov na Unsplash

Só a imaginação nos salva do vazio

 – Maria Silvia Duarte Guimarães

 

A coletânea Como me contaram: fábulas historiais (volumes I e II), de Maria José de Queiroz, publicada em 2024, organizada por Lyslei Nascimento, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, e publicada pela editora Caravana, de Belo Horizonte, Minas Gerais, ganha uma preciosa edição. Originalmente publicado em 1973, o volume 1 foi acrescido do segundo volume, revisto pela autora, falecida em 2023.

 

A edição traz em sua capa uma fotografia de Nascimento, na qual é possível ver um belo anjo esculpido em cerâmica, em tons azuis, com pequenas marcas de desgaste. A imagem remete ao Barroco, a uma tradição de artistas como Aleijadinho, que marcaram a história e a arte do Brasil. Trata-se de uma suave introdução ao conteúdo da coletânea, que reúne poemas, contos e até um epitáfio que fazem referência ao passado histórico de Minas Gerais.

 

No primeiro volume, Queiroz entrecruza relatos de contadores de histórias, acontecimentos históricos e o que ela própria construiu ficcionalmente. Em alguns desses textos, é possível encontrar referências exatas a documentos e registros oficiais, como os de Autos da devassa da Inconfidência Mineira, ou os do Arquivo histórico ultramarino de Lisboa, bem como referências diretas e indiretas a contadores de casos e a escritores, como Jorge Luis Borges.

 

O primeiro volume é marcado por uma particularidade: a maioria dos títulos faz referência a uma localidade e a uma data, que remetem a Minas Gerais. No entanto, em seus textos, Queiroz não se preocupa em fazer descrições físicas dessas cidades, mas relata histórias que podem ou não ter acontecido nesses lugares. Em muitos dos textos, portanto, Barão de Cocais, Mariana, Vila Rica ou Sabará, e às datas, que vão de 1696 a 1972, surgem “como me contaram”, em “fábulas historiais”.

 

Pode-se afirmar, então, que há uma tensão entre a escrita da história e a escrita da ficção nos textos ali enredados, presente já desde o subtítulo “fábulas historiais”. Os textos de Queiroz podem ser considerados históricos, na medida em que possuem um forte aspecto documental, uma vez que referências a documentos e outras fontes históricas podem ser encontradas em notas de rodapé. No entanto, o livro também possui um forte aspecto fabular: a imaginação que é entrevista em meio a cidades reais e acontecimentos históricos citados. Trata-se, assim, de um texto híbrido, que mescla não apenas gêneros diversos, mas também registros de relatos orais, reais ou não, fatos históricos, também controversos, e estupenda literatura.

 

O conto “Vila Rica 1782”, por exemplo, narra o dilema de João Ortiz, que devia velar os cadáveres de outros escravizados que sucumbiram a uma peste. Uma noite, porém, após adormecer durante seu expediente, uma onça rouba o corpo de um jovem e, preocupado com a repercussão de sua negligência, se pergunta qual das duas mortes será a pior: no pelourinho ou nas garras da onça. Seu dilema expõe a crueldade e as consequências da violência na nossa memória.

 

No conto “Fazenda de Santa Vitória, setembro de 1972”, por sua vez, a narradora relata o conflito entre Joaquim Inácio de Sousa Libério e sua esposa, Emerenciana. Um dia, a mulher exige de seu marido sapatos novos, “os mais bonitos da loja: bico fino, salto-agulha, número 36, verniz preto, luzidio” (p. 77). Se não ganhasse os sapatos, não faria “nem almoço, nem janta, nem amor” (p. 77). Joaquim Inácio, então, realiza o desejo de sua esposa, no entanto, também atira doze vezes em seu peito. Emerenciana é enterrada com seus sapatos novos, estilo Luís XV. Nesse texto, a violência contra a mulher é explicitamente exposta e o assassinato dela, e por motivo fútil, é, inquestionavelmente, denunciado.

 

“Mariana, 1752” pode ser considerado o texto mais emblemático da coletânea. Nele, o leitor se depara não com um poema ou com um conto, propriamente dito, mas com uma lápide, na qual é possível ler o epitáfio de uma mulher chamada Maria Brites. Esta é descrita como “mestiça, sem letras, sem bens, sem terras” (p. 21), em oposição ao homem a quem serviu, Bernardo Ravasco de Oliveira Fortes, descrito como “de sangue nobre, perito em leis, valente em armas”. Em sua própria lápide, então, a descrição de Maria Brites é apagada e o senhor ganha protagonismo. Em uma nota de rodapé, Queiroz afirma: “Entre duas datas abstratas permiti-me inserir-lhe a história: é fato”. Dessa forma, em seu breve texto, a escritora retrata não apenas a vida de Maria Brites, mas de como poderia ter sido a vida de outras mulheres escravizadas e espoliadas em vida e após a morte.

 

Enquanto o primeiro volume é marcado por referências diretas a Minas Gerais, no segundo, essa relação se dá de forma mais sutil. Nessa parte, os títulos com os nomes de cidades mineiras dão lugar a narrativas que ampliam esse território, pondo narradores e contadores de histórias em tensão com os destinatários de suas histórias, nem sempre receptivos ou atentos ao desfiar da narrativa. Nesse sentido, China, Índia ou Itália aparecem ligando os personagens ao mundo internacional.

 

No conto “Vovô foi à China”, por exemplo, Queiroz narra o retorno de Vovô Miro, que havia viajado por todo o mundo e passado cerca de dois meses na China, à casa de sua família. De volta ao Brasil, o personagem desejava contar a seus netos, Patrícia, Cristiano e Renato, sobre suas viagens. No entanto, as tentativas de relatar suas aventuras de viagem são frustradas, uma vez que os netos estão mais interessados na morte de seu cachorro, Leleco, e na chegada de um novo filhote, do que na muralha da China.

 

Em “A biografia fantástica de Augusto Feltrinelli”, a narradora conta a história de duas famílias de origem italiana, os Busoni e os Feltrinelli, e de como seus caminhos se cruzaram. Na juventude, Maria Busoni Silveira havia sido noiva de Augusto Feltrinelli, mas o retorno da família dele para a Itália desfez o noivado. Anos mais tarde, nos anos 1970, quando Maria já era viúva de Pedro Silveira e contava com muitos netos, ela descobriu o paradeiro de um dos membros da família de Augusto: Luigi Feltrinelli. Com a ajuda de uma tradutora, Anita Casella, Maria decifra as cartas trocadas com Luigi, que revelam, aqui e ali, pormenores da vida de seu antigo amor, falecido durante a guerra. Nas entrelinhas dessa correspondência, Maria tece sua própria narrativa sobre a vida, os amores e a guerra.

 

Em “Buda e o ofício das trevas”, por sua vez, o leitor se depara com a história de Gabriela Rocha Mendes que, ao ver outros membros de sua família, como sua mãe e seu irmão, tornarem-se cegos após os quarenta anos, decide treinar para quando seus olhos também percam a capacidade de enxergar. Assim, antes mesmo de apresentar qualquer sintoma, ela decide estudar braile e, para o horror de seus familiares, passa a andar com os olhos vendados em casa para guardar “no tato e na audição a localização dos guarda-roupas, penteadeiras, camas e cômodas” (p. 149). A disposição da personagem aterroriza os outros membros de sua família, para quem a simples menção das palavras “cego” e “cegueira” era um tabu. No conto, não faltam referências a Borges e, em uma nota de rodapé, Queiroz mistura fatos e o que ela construiu ficcionalmente:

 

No Natal de 1975, recebi de Joaquim Montezuma de Carvalho, bom amigo, uma belíssima mensagem. Nela se transcrevia a notícia de que, após tratamento com células vivas, Jorge Luis Borges teria recuperado, embora debilmente, a visão. Eis o trecho que nos interessa: “Um médico amigo, parente de sua mãe, está fazendo investigações com células vivas e propôs que se lhe fizesse uma injeção. A primeira não deu resultado. A segunda, poucos dias depois, surtiu efeito. De manhã, desperto por um sonho desagradável, Borges passou a mão na testa e nos olhos. Nisso, viu a mão que, acreditou, fosse parte do sonho de que saía (p. 150).

 

Como se vê, Queiroz justapõe referências a Borges em sua ficção, valendo-se de sua erudição e de sua capacidade ímpar de entremear histórias e fábulas, prosa e poesia, arte e registro histórico. Em ambos os volumes da coletânea, o pano de fundo é a terra mineira, com seus vãos e desvãos, sua história miúda, vista de baixo. Maria José de Queiroz é uma escritora solar. Minas Gerais é iluminada por sua obra ímpar e memorável. Ler os seus textos ilumina a cultura e as tradições mineiras que atravessam o Brasil e a sua literatura.

 

 

Serviço

BRASIL

Livro: Como me contaram: fábulas historiais (volume 1 e 2).

Autora: Maria José de Queiroz

Editora: Caravana 

Ano: 2024

Páginas: 168

 

fotografia de Maria José de Queiroz

Maria José de Queiroz, escritora brasileira, nasceu em Belo Horizonte, em 29 de maio de 1934, e faleceu em Lagoa Santa, em 15 de novembro de 2023. Contista, romancista, ensaísta e poeta premiada, tornou-se, aos 26 anos, a mais jovem professora catedrática do país, sucedendo o professor Eduardo Frieiro na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, onde lecionou Literatura Hispano-Americana. Na Academia Mineira de Letras, ocupou a 40ª. Cadeira, cujo patrono é o Visconde de Caeté. Autora de, entre outros títulos, Joaquina, filha do Tiradentes (1987, 1997, 2017) e Os males da ausência ou A literatura do exílio (1999), lançou pela editora Caravana, Terra incógnita (2019); A literatura encarcerada (2ª. edição, 2019); Desde longe (2ª. edição, 2020) e Amor cruel, amor vingador (2ª. edição, 2021).

 

fotografia de Maria Silvia Duarte Guimarães

Maria Silvia Duarte Guimarães, brasileira, é Mestre e Doutoranda em Letras: Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Letras: Italiano, com ênfase em Estudos Literários, pela UFMG, é autora de Tecer o visível e entretecer o invisível: As cidades invisíveis em Italo Calvino e Maria José de Queiroz. Belo Horizonte: Caravana, 20

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