Notas sobre a dança contemporânea e a experiência da queda
Na dança contemporânea, a experiência da queda traça o deslocamento no espaço e a relação necessária com a gravidade como um campo de resistência à verticalização e consequente assujeitamento característico. Desequilíbrio, peso, gravidade, desabamento, entrega são colocados em jogo, reajustando um olhar normopático que julga a partir das práticas de colonização, a partir de lugares predefinidos do humano alienado expropriado de seus sumos, dejetos, de seus movimentos de germinação.
Um humano que se constituiu enquanto corpo morto.
No acordar que nos traz a queda, tomo como referência a célebre consigna “levanta-te e anda” – afirmativa que expressa o retornar à vida a partir de um estado de morte e que coloca em trânsito uma dinâmica do desejo, em grande parte involuntária, e ao mesmo tempo da formação de cadeias articulares e musculares, pelas novas percepções e gestualidades. Esse caminho se realiza a partir da sensibilização: o acordar do corpo que retorna sob a forma de um novo hábito na obscuridade dos automatismos, pois o gesto na deriva tem seu próprio fazer.
A queda, com sua potência revolucionária, quebra o fechamento do sujeito de forma a nos conduzir ao lugar sempre mais que um, do reencontro pático, ou seja, de um corpo afetável e em plena transformação. Uma perspectiva política porque provoca um deslocamento e um descolamento perceptivo, ao produzir novas formas do sensível e do visível contra aquilo que é consenso, reconfigurando a experiência do comum.
A uma epistemologia que caminha para a compreensão da normatividade própria do vivo, suscitam-se resistências ao modelo instituído. Ao romper com a noção de normalidade, verticalidade e verdade, emerge um inconsciente referido a uma zona de indiscernibilidade entre o vivo e o psíquico, em que o psíquico não se separa mais da experiência.
A mente articulada com o corpo coloca em forma um gesto em que a marcha, por exemplo, revela uma articulação fina entre os diferentes segmentos corporais, o solo e a gravidade, a partir de diferentes fatores psíquicos individuais e coletivos. Nesse sentido, o trabalho da queda – e aqui ressalto as paragens, por exemplo – na apropriação de um chão íntimo, como nos trabalhos de Steve Paxton e de Angel Vianna, entre outros, permite que os micromovimentos sejam percebidos de modo a favorecer a estesia, a condição sensível do corpo. E é através desse campo sensório, no seu encontro com o mundo, que se torna possível apreender campos diferenciais, operando desventramentos de mundos. Nesses fazeres se dá a oportunidade de ultrapassar aquilo que se constituiu, no pensamento dissociado de corpo, como homem moderno, identitário, homem interiorizado, colonizado: o homem racional, que pensa, logo existe.
Evidenciamos um olhar que se afasta da visão antropocêntrica calcada nas noções de alienação e autenticidade e, assim, se torna capaz de conhecer pela experiência. Aprender pela experiência permite-nos sair da repetição do mesmo e, como nos diz Oiticica, “ser um declanchador de estados de invenção”.1 Um agir que nos coloca frente ao fato de que são nossos modos de vida que podem criar novos modos de pensar o mundo, que por sua vez criam novas maneiras de viver. Uma poética, uma autopoiesis que se aproxima de uma compreensão ampliada dos dispositivos de perturbação que compõem o movimento, gerando abertura a novos processos cognitivos.
A experiência sensória fomenta a capacidade de maquinar nos espaços privados, secretos, indizíveis, e é pelo encontro sensório que acessamos os modos de existência em seus ritmos, nas modulações e gradientes característicos. Nesse caminho de apreensão, signos são marcados no corpo, produzindo ligaduras de sentido. O campo intensivo, das forças, molecular, se dá a perceber implicado num estado de ser-com-o-mundo, não simbiótico, mas extenso, num deslocamento constante entre o dentro e o fora, de modo a abrir-se à experiência, ao devir, ao transformacional.
Atravessamos um momento especialmente único; o homem se vê diante de um vírus incontrolável que vem desafiando os achados científicos em sua mutação infindável, assim como nos coloca frente aos limites da própria existência – não é mais possível nos refugiarmos na constatação de que somos falíveis e mortais, assim como na falência de uma sociedade que se instituiu a partir das forças do capital. A experiência da queda se coloca como afirmação do lugar outro, queda de uma supremacia que se pauta na onipotência, superioridade, negação da vida em sua finitude e multiplicidade, alienada que é na lógica identitária e, portanto, hegemônica do colonizador.
Felix Guattari, em 1989, frente à degradação do planeta, já nos alertava para a necessidade de preservar as três dimensões ecológicas: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. Não estão separadas, como podemos agora constatar! A vida é maior!
Tais expressões ativam em nós, sem dúvida, os acontecimentos que nos atropelam desde a pandemia e suas decorrentes angústias que, neste país, têm-se exacerbado enormemente pelo campo político que agora se impõe desencadeando experiências traumáticas. Na busca de maior entendimento sobre o cenário atual pandêmico que estamos vivendo, convoco aqui o psicanalista húngaro Ferenczi, que nos ilumina com suas proposições sobre o acontecimento traumático. Segundo esse clínico, o trauma vem dar corpo a qualquer coisa de irrepresentável, pois o psiquismo não pode assegurar sua tarefa virtual, que é integrar os elementos do mundo exterior na medida em que o excesso do fator quantitativo ultrapassa a capacidade de elaboração. Temos como resultante a paralisia do pensamento. Impossível pensar. Reproduzimos incessantemente, como crianças traumatizadas, corpos disponíveis para a traição, para o abuso, para a violência e para o descaso.
Os efeitos devastadores da política brasileira, veiculados pelos poderes públicos, vêm potencializando e possibilitando ações de extermínio – aqui, especialmente às questões ligadas à saúde pública. Tais determinações nos deixam perplexos, interrogando como tal acontecimento pode ter lugar nos dias atuais. As práticas fascistas de assujeitamento nos demandam uma urgência em repensar o tecido social.
Temos assistido como certos segmentos das populações caminham de mãos dadas em lutas antirraciais, entendendo o racismo como prática fascista que oprime e exclui a maioria dos cidadãos. A luta que se estabelece pelo comum parece nos apontar a possibilidade de que longe do pensamento mágico haja uma reflexão crítica que não se coloca em oposição opressiva, mas à espreita, uma resistência que busca sair da dicotomia, ou seja, da lógica divinatória onipotente. Ao afirmar a fragilidade da vida que aí se compõe como força, nos apropriamos de nossa própria existência e abrimos espaço para novas ações.
Lutar contra as práticas fascistas torna-se, portanto, um imperativo, uma aliança com as formas de vida. Na experiência estética que pode ser desencadeada no contato com as expressões artísticas, acessamos o espaço entre, a linha contínua entre o fora e o dentro, space in-between. Aqui pousamos nossa perspectiva na experiência da queda. Na queda – aquisição necessária para o exercício da dança contemporânea que se compõe dos movimentos para cima e para baixo, para baixo e para cima, no deslocamento entre os dois planos – se dá a chance de voar e criar. A capacidade de confiança na vida se constitui quando se aprende a cair. A queda é o voo, a queda é o trânsito, a queda é o gozo.
Ruptura (QUEDA) e afirmação (LEVANTE) são dois momentos do encontro, dois momentos aparentemente opostos se considerarmos em abstrato, para além da experiência. A expressão poética, como deslocamento de sentido, viabiliza esses dois momentos em conjunção: é o nome do objeto de um encontro, mas também o nome do encontro ele mesmo e sem dúvida do que é produzido pelo encontro. A experiência estética é esse evento complexo, um evento-encontro que nos provoca momentos de inspiração e entusiasmo, que nos povoa de questões e desafios sobre o que está aí. Modo de escapar à captura molar de um sistema de entendimento e comunicação para ativar um plano de inspiração, reconfigurando o campo, ofertando novas ferramentas – ferramentas psíquicas –, estratégias que nos ajudam a construir nossas vidas diferentemente.
O modelo colonizador/colonizado, que se constitui por dispositivos de poder – controle, disciplina, biopolíticas (necropolíticas/brutalismo) –, em que se tem pautado o campo social, seja em relação à raça, gênero ou credo, é colocado em questão pelos levantes – que como potência em oposição ao poder falo-centrado do colonizador nos anuncia um tempo em que outros modos de ser, outros modos de viver, de como construímos nossas narrativas possam nos trazer a chance de fazer desarranjar e reinventar o que significa o humano. E é a poética oriunda do vivo, em sua manifestação ética/estética, que como ferramenta fundamental opera a desconstrução de um pensamento que se propõe a repetir esse estado colonizado em que não-pensar é prática subjetivante.
Na atualidade, o que vemos é a emergência de corpos brutalizados em seu sistema nervoso como consequência das forças neocapitalísticas. No entanto, assistimos nos levantes, nas insurreições, a força de luta e resistência ao instituído. Esse movimento fragmentário e coletivo, paradoxalmente, é fruto das políticas de visceralidade2 que se dão a partir das práticas de reabilitação do corpo sensório atiçado pelas afecções, pelas paixões (como por exemplo, a experiência da queda na dança contemporânea).
No hipercapitalismo, a tecnologia se transforma em aliada para retirar o sujeito de sua experiência. Vemos como as forças de destruição agem: não mais a guerra declarada, mas o abandono dos que não interessam à acelerada produtividade.
M’Bembe, em Brutalismo, pensando sobre as relações que acompanham esse estado de violência recorrente na pandemia eclodindo pelos cantos das cidades, nos diz que é o ar – direito inalienável do vivo – que agora se tornou mercadoria de luxo. O homem não pode mais respirar.
Precisamos devolver o ar das palavras, precisamos respirar: nós e as palavras, acordar o sopro da vida que se exaure dos corpos.
A poética da existência atesta o fato de que somos criaturas de criação. Tornar a vida uma obra de arte, estar em presença é materializar-se nas formas vivas mutantes. Um corpo que na sustentação do risco pode se perder, aí realiza uma obra de arte.
Referências bibliográficas
1 OITICICA apud BRAGA, P. A trama da terra que treme. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p.196. Disponível em: <http://filosofia.fflch.usp.br/sites/filosofia.fflch.usp.br/files/posgraduacao/defesas/2007_docs/2007_doc_paula_braga209pg.pdf>. Acesso em: maio 2017
2 Entrevista a M’Bembe pensada e realizada por Amarela Varela, Pablo Lapuente Tiana e Amador Fernández-Savater, com a ajuda de Ned Ediciones. Pablo Lapuente transcreveu e traduziu do francês. Disponível em: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2019/07/18/poder-brutal-resistencia-visceral-achille-mbembe-quando-o-poder-brutaliza-o-corpo-a-resistencia-assume-uma-forma-visceral/. Acesso em: 18 jul. 2019.
Hélia Borges: Psicanalista, membro do grupo de pesquisa Sandor Ferenczi. Professora na Graduação e da Pós-Graduação da Faculdade Angel Vianna. Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009); Pós-Doutora pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP (2015). Livros publicados: Movimento, o Corpo e a Clínica (2016); A Clínica Contemporânea e o abismo do Sentido (2019); Sopros da pele, murmúrio do mundo (2019).