Cultura

As linhas em direção ao centro: a poesia de Mário Cesariny enquanto aumento do mundo | Nuno Brito

Auto-retrato

É difícil começar a falar de Cesariny, simplesmente porque quando se começa a falar de Cesariny pode nunca mais se acabar, ou então surgir a tendência poética de resumir tudo até ao centro, até ao núcleo, e isto faz lembrar um conto de Clarice Lispector em que ela nos fala de quando era criança e começou a escrever as suas primeiras histórias que tentava publicar na secção infantil do Jornal do Recife. Na crónica “Era uma vez um pássaro” Clarice Lispector conta como cada uma das suas histórias da infância eram continuamente rejeitadas pela página infantil do jornal: “E era fácil de ver por quê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento.” (LISPECTOR, 1992, p. 78). A ambição simples de escrever uma história que começasse com uma fórmula tradicional torna-se uma missão épica, narrar um acontecimento simples pede objetividade e linearidade, o começo da prosa é então o começo da atenção e tem que partir-se sempre de um começo, o logro de escrever uma história que comece com “era uma vez…” acontece só, no caso de Clarice Lispector em adulta: “Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu. E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível. Eu havia escrito: “Era uma vez um pássaro, meu Deus” (LISPECTOR, 1992, p. 78). Mas o resultado deste começo é em si o nascimento da poesia, da interrupção e da confluência de todos os tempos, o fim e nascimento de cada história contido num instante, numa suspensão da linearidade, de um antes e depois, uma história transformada em interrupção. Início, meio e fim, a poesia de Mário Cesariny gosta também de repetir a palavra tudo e serve-se de uma rede ampla em torno da unidade. As palavras: Tudo, Todas Todos juntam em Mário Cesariny repetidamente e de forma condensada diferentes tempos, como o pássaro de Clarice Lispector, este tudo é muito próximo do sagrado e do mais intenso que há no humano, o entusiasmo; enquanto caminho a poesia de Cesariny é amplamente e em todas as direções ascendente, o tudo quer por isso dizer: confluência, encontro e poeticamente a “fusão rebelde dos contrários”; a poesia de Mário Cesariny afirma a vida até ao fim e se gosta da palavra tudo também tudo transforma em poesia. Comecemos então pelo que temos de mais perto, as histórias concretas, biologicamente também parte de nós, aquilo que somos: “mas onde está o mundo senão aqui” (CESARINY, 2007, p. 48), “tanto tão perto tão real” (CESARINY, 2004, p. 71) como um pássaro ou uma ponta solta que se deixa, para continuar um caminho. Tenho na parede da minha sala muitos desenhos, muitos poemas, a minha filha, Cesariny, fotografia de Mário Cesariny que lembra em negrito, em impacto: “O que importa é não ter medo”. E esta frase importa muito aqui. Ela é porta para este começo. Esta é uma frase que podemos imaginar escrita na parede de um hospital, na parede de uma escola ou em todas as paredes, no chão, a chover do ar caída dos aviões, a poesia de Cesariny gosta de ficar na rua e gosta de ficar no coração e porque está no coração vai connosco para a rua e para onde estivermos, em todas as ruas ela mistura-se com a gente: a Poesia de Cesariny gosta de estar na rua e no coração. Lembrando o que diz Jacques Derrida sobre o poder de síntese da poesia, aquilo que pulsa em contacto com o que temos de mais humano e que se aproxima a um ouriço, que se contrai, que se eriça, algo cujo coração bate no contato com o chão; o poema como algo que se quer saber de memória:

  1. A economia da memória: um poema deve ser breve, elíptico por vocação, qualquer que seja sua extensão objetiva ou aparente. Douto inconsciente da Verdichtunge1 da retração.


 

  1. O coração. Não o coração no meio de frases que circulam sem correr riscos pelos cruzamentos e se deixam traduzir em todas as línguas. Não o coração dos arquivos cardiográficos, simplesmente, objeto de conhecimentos ou de técnicas, de filosofias e de discursos bio-ético-jurídicos. Não o coração das Escrituras ou de Pascal, provavelmente, nem mesmo, o que é ainda menos evidente, aquele que Heidegger prefere ver em seu lugar. Não, uma história de “coração”, poeticamente envolta no idioma “aprender de cor”, este da minha língua ou de uma outra, a inglesa (to learn by heart), ou ainda de uma outra, a árabe (hafiza a’n zahrzkalb)- um único trajeto de múltiplas vias. (DERRIDA, 2001, p. 113)

 

O adensamento, a condensação e a espessura vitais da poesia de Cesariny tecem em torno da totalidade um diálogo amplo. Por aproximações Ana Luísa Amaral diria: “Na desordem cósmica do mundo organizar inteiro o coração” (AMARAL, 2022, p. 818) ou Carlos Drummond de Andrade: “a poesia deste instante inunda a minha vida inteira” (ANDRADE, 2004, p. 21). A poesia de Cesariny unifica intensifica e amplia, e lembra como diria o poeta, ensaísta e professor Pedro Eiras que o verbo ser não sempre é o mais adequado para falar de poesia, dizer a poesia é pode parecer então muito pouco e redutor e outros  verbos tornam-se mais urgentes e necessários: por exemplo, a poesia de Mário Cesariny dança, mistura, adensa, aprofunda, choca, sobe, aproxima e futura, a poesia de Cesariny “transvê”, usando um verso tão central da criação de Manoel de Barros, a poesia de Mário Cesariny amplia: a poesia de Mário Cesariny aumenta o mundo e aumenta o mundo com vida, imaginação, humanidade, histórias, empatia, olhar frontal cruzamentos, avessos e profundidade, ela deixa-nos um pouco mais cheios e humanizados, e por isso deve ser lembrada sempre, em paredes, em tectos ou caindo do céu como o poema “Liberdade” de Paul Éluard. Imaginemos por momentos a poesia de Mário Cesariny a cair dos céus de um país em guerra, de um país ocupado ou de um “país até aos joelhos”, paralisado, amado, com uma liberdade cadente – Mário Cesariny amou o país e a sua gente com uma força humana no seu sentido mais colossal – o de milagre – Mário Cesariny amou o milagre que há em tudo e o milagre que há em todos e esta é a sua grande força criativa – amou também o país no que ele tem de espanto, de estremecimento e de quebra – a “rosa de espuma” é por isso o mais verdadeiro e autêntico retrato do país, porque é o retrato de um país que se ama (o país do sonho e o país amado, o país mais poético e mais real.

  

Lembrando a última entrevista, dada a Maria Bochicchio, e a pergunta: O que procurava na sua poesia?: “O Real, todos os aspetos do real (…) A defesa do amor da liberdade e da poesia” (CESARINY, 2007, p. 19). O retrato de um país sem medo e um país começo, um país até ao coração e até à medula, um país inteiro e livre, um país verdadeiro e real, um país de encontros, histórias de vários pontas e começos, um país entrelaçado com a sua gente e as suas histórias, um país a criar e por isso real.  Real porque aproxima do centro, real porque potência: retrato do país-novelo entrelaçado aqui com outro (o mesmo país visto por outros olhos), o diário de Luiz Pacheco: “quando nos diz: “Quero impregnar-me de gente, de paisagem portuguesa”. A mesma gente, A Gente de Há uma hora

 

Gente Gente

olhos, narinas, bocas,
gente feliz gente infeliz, um banqueiro, alfaiates telefonistas,
varinas, caixeiros desempregados,
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos
mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.

(CESARINY, 2004, p. 78)

 

Humanidade Cordial e Inteira que nos lembra o começo mais perfeito: “Ama como a estrada começa” imaginemos o poema em queda sobre todas as cidades do mundo. O sonho de Eluard e um sonho verdadeiro, o começo perfeito porque sem fim, e assim também o começo sem começo, presente continuo de um imperativo tão dialogante também com Fernando Pessoa. 

 

Ama como a estrada começa!

Sê plural como o universo

 

Em Mário Cesariny o amor está indissociável do ser e é também uma exigência plural, o imperativo mais urgente, em si uma direção: diria no documentário Autografia, não pedir e não esperar o amor do outro, mas o amor pelo outro, amar e ser confundem-se no mesmo novelo e são exigência e fundação da sua poesia. Diálogo com o passado e com a tradição, mas diálogo também dos que lhe seguiram no tempo, como a estrada começada, o amor por ele e pela sua poesia não termina e por isso os seus versos são reinventando como a imagem poética do país:

 

Ama como a rotunda começa

(Miguel Manso)

 

Ama como o buraco na estrada a desalinhar as direções

(João Pedro Azul)

 

“Ama como a estrada começa”: A linha que Cesariny começa é afirmativa unitária e plural, ela impõe uma direção e é uma linha reta, a distância mais curta entre dois pontos, a poesia aqui como “a distância mais curta entro duas pessoas” (FERLINGHETTI, 2016, p. 55), contacto direto com o ser. A linha d’água da sua poesia-pintura em linha reta e espessa, A linha que não afasta, a linha que une poeticamente e artisticamente polos diversos de uma realidade sempre diversa e plural (céu e mar juntam-se na mesma linha: “a fusão rebelde todos os contrários” acontece numa só direção. A linha que une e que aproxima do dentro, a linha que vai para o centro. Em entrevista a Maria Bochicchio Mário Cesariny afirmava: “eu sempre quis ir além, ir para dentro.” (CESARINY, 2007, p. 19). E essa é uma afirmação começo, como um manifesto surrealista; a estrada que começa leva ao centro – ao centro do sol e ao centro do ser, a estrada que afasta e comete um risco direcional, o de um encontro com um eu verdadeiro e autêntico, as linhas em direção a um centro de um eu que somos nós todos e que por isso afirma poeticamente, como Emily Dickinson que o outro não há, que o outro enquanto outro não existe. “To the faithful absence is condensed presence / To the others / But there are no others” [Para aquele que acredita a ausência é uma presença condensada / Para os outros / Mas não há os outros”. (DICKINSON, 2019, p. 222)

 

A poesia, a pintura a arte de Cesariny traça uma linha mais espessa, mais porosa ainda mais abrangente, linhas esponja e linhas espuma, a poesia transforma-se em matéria do coração, em começo. “Ama como a estrada começa” é celebração e afirmação de vida e de um ser total e orgânico, fusão rebelde, a poesia em direção ao centro é então incandescente e toma tudo em seu lugar – atravessa o nosso corpo coletivo, o nosso coração, novamente: “A poesia deste momento inunda a minha vida inteira”. A poesia inunda, a poesia trespassa, a poesia transvê, a poesia acorda, a poesia abre, a poesia transfigura, a poesia acorda, a poesia supre distâncias e é por isso em Mário Cesariny uma linha vital em direção ao centro que é sempre plural e em expansão e por isso ela quer saber-se de memória. 

 

A Poesia de Cesariny aumenta o mundo porque traz mais luz e vitória à linguagem, porque comete riscos e ri-se do mundo, porque aumenta, isto é, porque acredita, porque se enche de gente, de histórias e de imaginação: a poesia de Cesariny aumenta o mundo com imaginação. 

 

A Poesia de Mário Cesariny aumenta o mundo porque ama o mundo e a gente, com sinceridade, liberdade e transparência, a poesia de Mário Cesariny aumenta o mundo porque é verdadeira e o que é verdadeiro inteira um pouco mais o nosso mundo. A estrada que se ama e é assim poética e é em linha reta, mas é também em todos os sentidos: uma poesia em todos os sentidos, em sentidos plurais: a palavra, a imagem para um poema orgânico, a música dentro do sentido, a poesia que aproxima indo mais além numa fusão de opostos, de encontros, de vozes de linguagens. A poesia une e é um contacto direto com o coração e o melhor do humano no que ele tem de milagre, de animal, de divino e de humano, de ascensão e de libertação. Em contacto novamente com Ana Luísa Amaral, a poesia de Mário Cesariny organiza inteira o coração. A Poesia de Mário Cesariny une e continuará sempre a unir e isso é o que de melhor, e também de único se pode pedir à poesia.

 

Notas

1 Do Alemão: Adensamento, condensação, espessura.

 

BIBLIOGRAFIA

 

AMARAL, Ana Luísa. O olhar diagonal das coisas. Porto: Porto Editora, 2022.

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

 

CESARINY, Mário. Uma grande razão: os poemas maiores. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.

 

CESARINY, Mário. Pena Capital. Lisboa:  Assírio & Alvim, 2004.

 

DERRIDA, Jacques. Che cosa é la poesia. In Inimigo rumor 10, Maio de 2001. pp.113-116.

 

DICKINSON, Emily. Open me carefully: Emily Dickinson’s intimate letters to Susan Dickinson. Middletown: Wesleyan University Press, 2019.

 

EIRAS, Pedro. A Lenta volúpia de cair. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2007.

 

FERLINGHETTI, Lawrence. A poesia como arte insurgente. Lisboa: Relógio d’água, 2017.

 

LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992.

 

MENDES, Miguel Gonçalves. Autografia. [Documentário], 2004; Portugal.

 

NOVALIS, Friedrich. Pólen, fragmentos, diálogos, monólogo. São Paulo: Iluminuras, 1988.

 

PACHECO, Luiz. Diário remendado: 1971-1975. Lisboa: Dom Quixote, 2005.

 

Fotografia de Nuno Brito

Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É Professor Visitante no Departamento de Línguas e Culturas Românicas da Universidade de Buffalo em Nova York e autor dos livros: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015), O Desenhador de Sóis (2017), Ode menina (2021) e Escrever um Poema sobre a Liberdade e vê-lo arder (2022).

 

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