Poesia & Conto

Poemas | João Alexandre Lopes

Foto de Bruno Yamazaky na Unsplash

Arneirós

 

Caneca de alumínio com água bem fresca.

Doce de pêra muito doce.

 

Viagem de burra.

Risos viçosos no palheiro.

 

Bola inclinada e quatro pedras.

Família tipo manta mexicana.

 

Castanhas colhidas dos ouriços.

Tanques gelados de Verão com girinos.

 

Cigarros muito fumados na eira.

Natureza bem morta.

 

Hora Zero, Medula, Setembro de 2017, Pág. 25

Regresso

 

Já não há sardinheiras

nem mora aqui nenhum daqueles garnisés.

A serra ainda por lá anda,

e a loja já teve mais brinquedos

e menos anúncios de mortos,

parece-me.

 

Em cada regresso volto

a ser pequeno, aquele que,

para o bem e para o mal,

 

é filho do seu pai.

 

Hora Zero, Medula, Setembro de 2017, Pág. 26

 

Contramão

 

Every man has your voice | Paris, Texas – Wim Wenders

 

Todos os discos vêm contigo lá dentro,

não há por onde fugir, ainda para mais

sendo a música e o sol que está a cair

a melhor das companhias.

Já não contava, muito francamente,

voltar a estes tristes e afilhados,

a estas músicas que de tão sós

só deviam tocar uma vez –

a vida é sempre a mesma música.

 

Estás em todas as fotos,

mesmo naquelas em que não estás,

e, hoje por hoje, em todas as fotos parecemos

mais felizes que nunca.

Não adianta virar retratos ao contrário,

seria tão somente consonante com este

viver tão em contramão –

e, ao final do dia, tudo tem o teu nome escrito.

Porta dos Fogos, volta d’mar, Abril de 2021, Pág. 34

O teu nome

 

Se tivesse de preencher, agora mesmo,

uma folha esquálida em que do lado esquerdo

pusesse as oportunidades da vida

e do lado direito o teu nome, e só o teu nome,

para me ser mais fácil, digamos assim,

fazer a escolha útil para uma vida:

começava pela pirâmide das necessidades de Maslow

para lhe dizer que, quando as conhecer,

irei preferir as de Gizé;

subiria depois a pulso para o estrelato,

o reconhecimento daquilo

que ainda não tive e começo a esquecer;

o dinheiro para nos pôr bem na vida e pagar

os favores que ela por vezes ainda faz,

longe da minha zona de desconforto,

que é toda a minha zona, o meu bairro;

e teria de parar, mesmo ali,

olhar para o lado direito e,

ao escrever o teu nome,

porque só isso me bastaria,

não o escrever de todo –

começo a esquecer-me perigosamente

do teu nome.

Porta dos Fogos, volta d’mar, Abril de 2021, Pág. 36

Seguro de Saúde

Precisava de uma dor concreta,

de uma força visível e que me desse o fôlego

para assim já poder dizer:

Veja, doutora, são estas as jogas deformadas dos meus bolsos.

E fósforos. E mortalhas.

(Também agora já só fumo para dentro.)

E mortandade de vida que começa e acaba,

que ora começa ora acaba.

Mas já nem há módulos de autocarro com letras de médico febris,

que não sei ler,

que não lhe saberia dizer.

Mas também lhe poderia dizer:

Estou bem vivo dento da luz.

Mas precisava, dizia eu,

de saber do que precisava –

e se o sol me tem esquecido,

se é cheiro a eucalipto

seguido de um tremelicar da espinha.

Se não, sabe, não vale a pena,

guarda-se o seguro de saúde ali na estante,

junto aos troféus dos dias.

É bom ter um seguro de saúde,

disso estou seguro.

Quanto ao resto,

é só a puta da vida.

(Desculpe estas palavras, doutora,

eu que não a conheço nem a deverei vir a conhecer 

e de qualquer forma não suporto

tratar as pessoas por doutor

nem andar com apertos de peito entre parêntesis.)

Cidade Alheia, Palimpsesto, Maio de 2024, Pág. 34

Através do Reno

Arranco para o lado alemão,

depois do Reno, em tronco nu,

e pouco me importa o que pensam – 

gosto de pensar que já lá vai o tempo

de me preocupar com o corpo

e com o que os outros pensam, 

até porque sei que tropeçarei sempre

nos meus próprios pés.

À ida e à vinda.

Ao passar por alcateias de homens,

que balbuciam coisas,

depois por mulheres e pequenos que só olham,

talvez de Médio Oriente, tomo médio juízo,

visto uma de mil camisolas de corrida

e estugo a passada, o preconceito quer-me apanhar.

No dia seguinte regresso a Kehl, de metro,

até ao fim da linha, e demoro-me um pouco:

Chegou ao fim da linha. Pesado.

Mulheres muito vestidas do lado contrário,

prontas para a noite francesa, dir-se-ia.

Nelas reconheço pequenos risos de excitação

e os telemóveis meio disfarçados –

a Oriente tudo de novo.

Captei-as em dois cliques furtivos,

talvez pela excitação do diferente,

de querer ver depois aquilo

que lhes adivinho tão igual a outros,

mas sob capas tão diferentes.

Joga-se à bola na praça junto à igreja,

prazer comum a tantas culturas

e ao qual a custo não me juntei

para melhor poder apreciar

ou por ser estrangeiro de coração.

Ao jantar, o sírio mais sírio do Reno

desafia-me para o melhor kebab da Europa,

como não aceitar?

E por muito que a Síria me aflija

quanto mais anos passam 

mais me aflige comer a horas.

Numa esplanada muito pequena,

muito a caminho da Ásia,

até uma cerveja se desenrascou,

para ajudar a descer a diferença.

Através do Reno,

deixo a diferença entranhar-se bem fundo,

na certeza, porém, de que o estranho sou eu.

Cidade Alheia, Palimpsesto, Maio de 2024, Pág. 47

Janeiro é agora ainda mais cruel

 

Como se não tivesse ainda partido,

a cada momento ele reaparece,

como na foto de família alargada,

já com a perna bem magra,

por baixo do calção comprido

que não disfarça assim tanto.

Há sempre um aniversário inicial

a fazer face à forte ausência,

e palavras inesperadas aparecem escritas,

doridas, tristes como Las Simples Cosas.

E dura, e durará – apenas

uma pele fina sobre a ferida.

Há jovens, miúdos, apenas,

que não falam, não dizem,

mas o baixar de olhos, o pequenino sorriso

apertado é ainda e sempre de susto,

é toda uma inquietação, quase serena,

quase bonita, até.

Deixei para aí um texto, chamemos-lhe poema,

a falar dele, e desliguei.

Até encontrar a família, os dele, aqueles rostos tão semelhantes,

e de me terem falado dele, e do poema.

Até a encontrar e de me ter falado dele, e do poema,

e de como o leu em frente aos colegas de trabalho.

Se a poesia serve para algo é para isto.

Foi já nos idos de Janeiro que tudo se deu,

e fomos inundados por um profundo silêncio.

  1. S. Eliot já não terá, porventura, razão;
  2. P. Inácio terá, porventura, razão:

Janeiro é agora ainda mais cruel.

 

[Inédito]

 

fotografia de João Alexandre Lopes

João Alexandre Lopes (Lamego, 1973). Formou-se em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho, no Porto, cidade onde vive. Tem trabalhado como Consultor de Gestão de IT.

Participou com poemas nas revistas literárias “Enfermaria 6”, “Águas Furtadas” e “Palavra em Mutação”.

Participou nos livros colectivos de poesia Pombos Lerdos (Medula, 2018) e Falar Dele no Céu de uma Paisagem – Poemas para Mário Botas (volta d’mar, 2021).

Publicou Hora Zero (Medula, 2017), Porta dos Fogos (volta d’mar, 2021) e Cidade Alheia (Palimpsesto, 2024).

 

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