Cultura

Crônica: Paciência

Gostava de ter paciência, estar calmo, escutar os dizeres até o final e apenas então arriscar pertinências, impertinente.

Gostava de não sentir ódio, o sangue a borbulhar correndo-me nas veias, gosto amargo dotado do poder de anuviar-me o estômago.

Gostava de não me precipitar em ajustar contas, esperar dias melhores, sei que virão, pouco adianta atabalhoar-me em aflições.

Gostava de ler as notícias sem tanto envolvimento, dor, este sentimento de falta de justiça imediatamente me agarrando pelo pescoço, sufocando-me como se pudesse me limitar em um saco plástico, tortura gangster.

Gostava de chorar menos, as lágrimas andam a me enferrujar o rosto, e os sais delas agulham-me a pele, pinicam, espetam, ardem-me feito feridas.

 

Gostava de fugir para bem distante, deixar de ser brasileiro em algum sítio menos rústico, não à toa estou aqui a escrever disfarçado em sotaque diverso do usual, a exprimir-me como se de cá não fosse, estrangeiro.

 

Gostava de poder deitar a cabeça no travesseiro e dormir o sono dos tolos, pois creio estarem eles aptos a esticarem os corpos sobre o colchão e conciliarem-se com um tipo de paz impossível para os mais conscientes, será?

Gostava de ver minhas pragas rogadas surtirem efeito, atingirem em cheio os causadores de tanto mal por cá, bloquearem toda e qualquer ação nociva dos crápulas investidos de estranhos poderes inimigos da ciência.

Gostava de gritar bem alto a revolta sentida a cada brasileiro tombado nas unidades de terapia intensiva, conterrâneos sufocados pelo descaso de gente mesquinha, ignorante, carente de ação responsável.

Gostava de voltar a ter alegria, pois a tristeza chegou e parece ter se aprazido em ficar, enraizar-se, meter-se assim em cada canto da casa, da sala, quartos, até mesmo nas páginas dos livros das estantes.

Gostava de fugir para bem distante, deixar de ser brasileiro em algum sítio menos rústico, não à toa estou aqui a escrever disfarçado em sotaque diverso do usual, a exprimir-me como se de cá não fosse, estrangeiro.

Gostava também de lograr ser manso, talvez, saber baixar a cabeça e buscar em algum recôndito mais recôndito de mim mesmo a sabedoria dos portadores de gênio afável, e viver apaziguado com tudo e todos.

Gostava de possuir um botão liga desliga, quem sabe, e nos momentos mais agudos, quando a ponta do desespero viesse me alfinetar, pudesse baixar o interruptor pondo-me em contacto com o foda-se.

Gostava muito, mas muito mesmo, gostava imenso, de estar habilitado a imaginar coisas boas, viver momentos sublimes, com a fé dos dispostos a acreditar no homem, humanidade, gestos nobres. 

Gostava se eles pelo menos usassem máscaras, exibissem o respeito negado a cada gesto, palavra, sorriso zombeteiro, maldades cotidianas, mas os toscos apenas sabem lavar as mãos.

Gostava de entender o motivo de serem como são, assim tão pouco sãos, tão vis e medonhos.

Gostava de poder envelhecer em meu canto ouvindo os passarinhos a voarem otimistas, passando agitados pela janela aberta aqui do escritório, sem me espionarem tão trôpego, bambo, descrente do mundo.

Gostava, enfim, se gosto me sobrasse, de voltar a ser gostaria.

 

Fevereiro/2021

Fotografia de Ricardo Ramos Filho. Autor da fotografia: Jonathan Wilkins.

Ricardo Ramos Filho é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior.  Professor de Literatura, mestre e doutor em Letras pela USP. Ministra cursos e oficinas, trabalha como orientador literário. É cronista do Escritablog e da revista InComunidade.  Presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio proprietário da Ricardo Filho Eventos Literários atua como produtor cultural. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

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