20 Contos sobre a Pandemia de 2020
Surpreendido pela chegada da pandemia ao Brasil, por volta de março do ano passado, segui as instruções das autoridades sanitárias e cumpri a prescrição do isolamento social. Não foi fácil, sobretudo para quem, como eu, foi levado a administrar a rotina de duas crianças sem aulas e impedidas de deixar o apartamento. Com a solidariedade sempre presente de minha mulher, revi as rotinas da casa e experimentei novos modos de trabalhar e de administrar o tempo.
Foi o que, de resto, a maior parte dos habitantes do planeta se viu obrigada a fazer, atemorizada pelo novo corona vírus. Os que, como eu, habitam o território das letras, acabaram desenvolvendo estratégias para continuar criando e divulgando a sua arte e a cultura a que pertencem. Internado em casa, me vi pensando de que modo a Academia Mineira de Letras (AML), que ora tenho a alegria de presidir, poderia continuar ativa durante período tão difícil e desafiador.
Uma primeira solução foi dada pela tecnologia digital. Graças à competência da equipe da AML e à generosidade de representativa comunidade intelectual, foi possível veicular uma palestra gratuita, inédita e exclusiva no canal da Academia no youtube, toda semana. Assim, nosso público permaneceu abastecido de conteúdo de qualidade, especialmente no campo da reflexão literária. A gravidade da situação, no entanto, conduziu-me a mais um projeto, dessa vez no campo da produção editorial. Ciente da dimensão histórica desse terrível momento enfrentado pela Humanidade, julguei fundamental gestar um livro que reunisse uma coleção emblemática de textos sobre a peste, assinados pelos mais expressivos escritores de Minas Gerais.
Assim surgiu “20 contos sobre a Pandemia de 2020” (Autêntica Editora, 278 páginas), resultado de exitosa parceria entre a editora, liderada por Rejane Dias dos Santos, e a Academia, fundada em 1909 para promover a Literatura e a Língua Portuguesa. Bem recebido pela crítica especializada, pela imprensa e pelos leitores, a obra acabou se tornando uma testemunha sensível e perspicaz de sua época e certamente vai ajudar seus contemporâneos e os pósteros a entender pelo menos um pouco do caos em que hoje vivemos mergulhados.
Ciente da dimensão histórica desse terrível momento enfrentado pela Humanidade, julguei fundamental gestar um livro que reunisse uma coleção emblemática de textos sobre a peste, assinados pelos mais expressivos escritores de Minas Gerais.
Dedicado à memória de dois mestres do conto que faleceram em 2020, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, o livro agregou autores de diferentes trajetórias, estilos e gerações, em gesto democrático e inclusivo, na intenção de reverenciar o rico e heterogêneo painel que simboliza a produção literária do Brasil atual, especialmente de meu estado. A constelação, ampla e generosa, é formada por Afonso Henriques Neto, Ana Cecília Carvalho, Ana Elisa Ribeiro, Carla Madeira, Carlos de Brito e Mello, Carlos Herculano Lopes, Cidinha da Silva, Cris Guerra, Cristina Agostinho, Eliana Cardoso, Francisco de Morais Mendes, Frei Betto, Ivan Angelo, Jacques Fux, Jacyntho Lins Brandão, Laura Cohen Rabelo, Luís Giffoni, Olavo Romano, Paula Pimenta e Stella Maris Rezende.
Característica definidora dos humanos, a habilidade de narrar já nos salvou, em muitas oportunidades, da tristeza e da solidão, gerando sentido, alimentando a alma, renovando a crença em dias melhores e, sobretudo, na vitória da espécie sobre as piores adversidades. O que seria de nós se não cultivássemos a esperança? “20 contos sobre a Pandemia de 2020” é, também por isso, uma aposta num futuro melhor que esse presente de medo e desconfiança, de que tanto precisamos nos livrar. Que os que se aventurarem por suas páginas encontrem o mesmo entusiasmo redentor que tivemos todos aqueles incumbidos de torná-lo realidade.
Consagrada na Poesia e no Ensaio, com belas incursões na Crônica e na LIteratura Infantil, a professora e pesquisadora Ana Elisa Ribeiro participa de “20 contos sobre a Pandemia de 2020” com “Dois pontos”, texto que envolve e seduz imediatamente os leitores pela força de seu enredo, a linguagem utilizada e a composição de seus personagens (pai e filha em primeiro plano, mãe morta e filho ausente). Confira o trecho abaixo.
Dois pontos – trecho
Ana Elisa Ribeiro
São oitocentos metros de distância. Não fossem as ladeiras sobre as quais a cidade é mal assentada, seria fácil de percorrer a pé. Venci essa distância de bicicleta quatro ou cinco vezes, mas me arrependi ao chegar ao destino. Muito suor para pouco afeto. De carro, talvez não chegasse a cinco minutos de trajeto. Não valia o risco de furto na porta. Oitocentos metros entre nossas casas, no limite entre dois bairros, na fronteira entre dois universos.
Quando contava a alguém, no escritório ou na especialização, que morava a oitocentos metros de meu pai viúvo, logo abriam sorrisos de nostalgia e admiração. Você deve vê-lo sempre, bom que pode ajudar, podem tomar café juntos, podem se ver. Mas não. Já não era bem assim. No entanto, as poucas visitas tentadas eram minhas, só minhas. Eu me deslocava os oitocentos metros, subia, subia, até alcançar o portão verde-folha, descascado, meio oxidado em alguns pontos, batia aquela campainha antiga, aguardava uma demora. Era a lentidão de um velho robusto subindo escadas, tentando enxergar o buraco da fechadura, abrindo a porta e pensando, na verdade, o que ela veio fazer aqui? Era a lentidão de quem toma fôlego para uma visita indesejada, dispensável. Para ele.
Oitocentos metros para cima e eu reencontrava a casa de minha infância, os ecos da voz grave de minha mãe morta, a risada espaçada de meu irmão caçula imigrante e meus próprios zelos. Encontrava também a aridez de um pai vivo, resistente, muito amenizado em sua violência e em suas incompreensões. Um homem velho que desistira dos embates, mas ainda impassível quanto aos afetos. Assim mesmo, eu o visitava.
Neste momento, os oitocentos metros são incontáveis. Como imaginar algo assim? A leitura do livro de um conhecido tratou de mortificar ainda mais meu coração, já entristecido com uma situação tão inesperada e compulsória. Numa mistura de poesia e imagem, o amigo publicou um volume em que cria uma narrativa visual a partir de fotografias que tirou do caminho rodoviário que separa sua casa da de seu pai, entre a capital e o interior, trezentos e cinquenta quilômetros apartados. As árvores, os barrancos, as casas caiadas esparsas, as beiras de estrada, as lanchonetes ensebadas, as borracharias sempre abertas, as bitucas de cigarro e as calotas no acostamento, a sensação de velocidade das fotos tiradas de dentro do carro em movimento, aqueles trezentos e cinquenta quilômetros sendo vencidos entre dois homens, filho e pai. A espera, o aviso, estou chegando, vem com calma, cuidado, estrada perigosa (qual estrada em Minas não é?), quase aí, as mensagens de celular, o sinal ruim, o sinal falhando, mas o abraço entre o pai e o filho não falha, reconecta. Reconectados. Era uma grande movimentação, pensei enquanto lia. Uma grande movimentação, por estrada, em perigo, para um abraço, dois cafés coados, pão feito em casa, broa quente. E a volta, toda a volta, as casas esparsas, caiadas de branco, o mato, um boi ou outro, os cigarros, um acidente, uma calota abandonada, um cachorro morto, a capital adiante, pujante, aquelas indústrias à beira da estrada, aqueles galpões e, de novo, a solidão do apartamento no centrão da cidade, tão alto que nem se ouve barulho de rua, de carro, de gente. Vez ou outra, a voz do vendedor cego de loteria.
Oitocentos metros. Assim, à beira da pia, vendo as grades fazerem florestas na parede, fiquei pensando que a distância entre uma filha e um pai não se mede em quilômetros. Os dois pontos piscam céleres no mostrador e a vida continua seu curso. A filha insone, sentada num banco de lata fria; o pai, dormindo um sono profundo, quase a acordar para mais um dia de vazio.
Ela foi a mãe; ele foi pai sem saber. Ela nos nutriu e cuidou; ele assistiu, meio desinteressadamente.
Às 8:00 vou tentar. É sempre uma tentativa. Todas as visitas, desde a viuvez, são tentativas de aproximação. Difíceis, profundas, irritantes. A presença de minha mãe ativava algumas coisas naquele ambiente: a distração e o fingimento. Ela ainda viva nos chamava a atenção para si, nos distraía do pai, aquele espectro que passava entre uma sala e outra, descia escada, deslizava sobre o corredor com um tapete velho e desbotado. Ela viva tinha mais vida do que ele, nos contava casos do ordinário, da semana, do sacolão. Mas era elegante, sem fofoca, sem insuflamentos. Ela viva nos perguntava sobre o trabalho, mesmo que não entendesse disso fora de casa. Jamais trabalhara fora na vida, era dona de casa de nascença, mas queria saber de escritório, departamento, reunião, diretoria, essas coisas que lhe pareciam chiques, importantes. Ela falava de si e de nós, às vezes não se esquecia de contar algo sobre o pai: uma dor, um silêncio, um médico, um passeio à praça mais próxima, mas era só. Isso fazia aquela casa parecer maior e a habitava, enquanto o pai fazia seu papel de espectro, sem relevância, quase. Mas ela morreu antes. Inesperadamente, morreu antes. E isso era de uma falta de lógica mordaz.
A morte dela foi primeiro percebida por ele. Ao chegar à cozinha, depois de cessar o barulho dos passos e de ouvir a água escorrer mais do que o necessário, resolveu reclamar. Não teve tempo. Flagrou-a caída no chão, num gesto desesperado ainda de puxar os cabelos, olhos vidrados, um susto dolorido. No laudo, aneurisma. Um aneurisma de que nem ela soube. Nunca soubemos. E ele ficou ali, sem saber por onde começar a tocá-la. Socorro, qual socorro? Até chamar uma ambulância lhe parecia incômodo. Os outros, o que os outros vão poder fazer? Morta? Não sabia ler sinais vitais. Nunca soubera mesmo. O jeito foi chamar a ambulância, num telefonema constrangido, e aceitar o laudo com a causa mortis mais espantosa que jamais imaginara.
Chegava a pensar em sua remota vida de solteiro. Casara-se jovem, novo para os padrões masculinos. Viveram juntos, desunidos, por cerca de quarenta anos, longos anos, mas conseguiram estabelecer uma conexão de afetos craquelados. Ela foi a mãe; ele foi pai sem saber. Ela nos nutriu e cuidou; ele assistiu, meio desinteressadamente. Mas ela se foi primeiro, talvez vítima de um cansaço indescritível; ele ficou. Que azar, que sombra.
Aquela mulher descabelada, de avental de plástico, caída no chão da cozinha, tornou-se uma imagem fixa naquele espaço da casa. Ele o atravessava sem querer, apenas por urgentes necessidades, vendo ainda a sombra dela sob a luz. Não precisava mais dar um telefonema, pedir ajuda, que alívio, mas conviveria com aquela cena sem despedida. E terminaria por fechar, enfim, a torneira aberta, desperdiçando água.
Rogério Faria Tavares, brasileiro, é jornalista, mestre em Direito e doutor em Literatura. Foi presidente do BDMG Cultural e, atualmente, preside a Academia Mineira de Letras. Integra o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Instituto dos Advogados Brasileiros e o Pen Clube do Brasil. Tem seis livros publicados.
Ana Elisa Ribeiro é brasileira, autora de livros de crônica, conto, poesia e infantojuvenis. Seus títulos mais recentes são os poemários Álbum (Relicário, 2018) e Dicionário de Imprecisões (Impressões de Minas, 2019, finalista do prêmio Jabuti 2020). Neste 2021, lança o juvenil Romieta & Julieu, pela RHJ, de Belo Horizonte. É doutora em Linguística pela UFMG, professora e pesquisadora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Instagram: @anadigital | Site: anadigital.pro.br