Poesia & Conto

Pegar o trem | Marcos Pamplona

Foto de Michael & Diane Weidner na Unsplash

Um dia o caminhão de gás buzinou na frente da casa da minha mãe. Ela ficou nervosa, como sempre fica quando alguém está esperando, se levantou do sofá da sala e correu como pôde. Ao entrar na cozinha, com a intenção de abrir a porta dos fundos para os homens trocarem os bujões, escorregou e caiu. Na velhice os ossos ficam frágeis, e não deu outra, ela fraturou a cabeça do fêmur.

 

Eu tinha acabado de me separar. Sem a mulher e o filho, fiquei confuso, nem pensei em visitar a mãe no hospital. Ela ficou lá um bom tempo, recuperando-se da instalação de uma prótese parcial. Já havia me contado tudo o que havia acontecido por telefone, mas como eu não tinha ido vê-la nenhuma vez, aproveitava agora para repassar tudo em detalhes, aprofundando a minha culpa.

 

O Ricardo veio, cuidou de tudo, ela disse. Me deu até essa calça nova, mais folgada, pra não apertar os quadris. Mas depois foi pra São Paulo, fechar sei lá que negócio urgente. Foi muito difícil, muito difícil. Não fosse a vizinha, a dona Santa, não sei o que seria de mim. Ela veio com o Ricardo e ficou comigo quase o tempo todo. Nunca pensei que uma vizinha pudesse ser tão importante. E eu nem dava grande pelota pra ela… A gente fica muito vulnerável, meu filho. A velhice é uma merda. 

 

O Ricardo deu uma grana pra dona Santa.

 

Como é que você sabe?

 

Tenho quase certeza. É mais barato do que uma enfermeira.

 

Não importa. Pelo menos ele me ajudou.

 

Imobilizada pela dor nos quadris, ela estava sentada na velha poltrona de vime da cozinha, a perna da prótese um pouco à frente. Vestia a tal calça, um moletom verde de lojinha barata, umas ridículas pantufas com carinhas de alce e o velho casaco cinzento, de lã empelotada. Ricardo lhe dera a calça, a poltrona de vime, o micro-ondas chinês, os pratos duralex de supermercado, as pantufas, enfim: o bom filho não se esquecia de nada. A verdade é que, rico como ele era, já podia tê-la tirado daquele buraco em Piraquara, à margem dos trilhos, onde a velha às vezes suspendia a contagem do crochê à espera de que o trem passasse e as paredes parassem de tremer. Mas, claro, eu não podia dizer nada, eu o relapso, o ingrato. Tinha que suportar o biquinho elogioso da mãe ao mencionar qualquer coisa que o meu irmão fizesse, e me contentar com as migalhas do seu afeto. Embora eu não precisasse ou não quisesse consumir mais do que essas migalhas. Logo me aborrecia com um certo silêncio que havia entre nós, ia embora e só voltava meses depois. 

 

E o que é isso no seu olho direito?, perguntei. Está mais fechado do que o outro.

 

Eu fiz a cirurgia de catarata no olho esquerdo, lembra? Depois disso o direito começou a tremer. Eu fico com ele assim, meio fechado, porque ele não para de tremer. Fico parecendo um pirata. Mas é nervoso, eu pelo menos eu acho que é do sistema nervoso. O que mais irrita é que isso dá vergonha, eu fico com vergonha de ficar com o olho assim tremendo na frente dos outros, aí fico mais nervosa e o olho treme mais ainda.

 

A senhora sempre foi nervosa.

 

Ela me olhou significativamente:

 

Um pouquinho. 

 

Eu imaginava que na sequência teríamos que falar de mim, do fato de estar sozinho, de não fazer nada na vida e beber todas, o que é “muito feio para um pai de família”. Certamente meu irmão já estivera ali enchendo a cabeça dela depois que saí daquele emprego humilhante que ele me arrumou numa das suas empresas. 

 

A mãe quis se levantar pra fazer um café, eu disse que deixasse comigo. Quando bebemos o café, a xícara tremeu demais na minha mão. Ela percebeu, mas fingiu não ver.  

 

Você fez bem de não ficar naquele call center. Deve ser horrível convencer as pessoas a comprar o que elas não precisam. E o salário era uma miséria.

 

Fiquei tão surpreso que parei de tremer.

 

Por essa eu não esperava, eu disse.

 

Eu posso ser burra, mas não sou cega. O Ricardo teve boa intenção, mas podia ter arrumado um emprego melhor pro irmão dele. Que é design, não é qualquer um. 

 

Designer, mãe. Mas ele gosta de provar que eu sou estúpido, que eu não sei fazer nada. 

 

Ele sabe que você sabe, mas também sabe que você não quer fazer nada. Além disso, você sempre chamou ele de burguesinho babaca. Burguesinho babaca, Bob da Barbie, Mister Money, que mais? Ele te ajudou contrariado, porque eu pedi. No fundo é boa pessoa.

 

Mãe, o inferno tá cheio de boas pessoas.

 

Pode ser. Mas o paraíso também está cheio de idiotas. 

 

Nós dois rimos. Ela ajeitou os quadris na cadeira com cara de dor.

 

Para de beber, meu filho.

 

Eu só tomo uns golinhos.

 

Para de beber. Você fica insensível, raivoso, não consegue fazer nada. E não fuja de mim!

 

Ela quis que eu a ajudasse a caminhar um pouco. Fomos para o jardim. Senti o calor do seu braço mole de velha enganchado ao meu, caminhei devagarzinho, no ritmo dela, me sentindo presente na cena – de repente ela havia abandonado o tratamento distante e delicado com que demonstrava o seu desinteresse por mim.

 

Ficamos ao sol no meio do gramado, um sol fraco, de inverno. Eu estava ali com a minha velha, os dois embebidos em luz dourada, numa paz natural que me fez supor um mundo harmônico, distante da mixórdia que costuma ser tudo isso. 

 

Ela deu dois tapinhas no meu ombro:

 

Você vai conseguir.

 

O quê?

 

Vai conseguir.

 

Suspirei, exausto. Para não desabar, fiz um comentário sobre a beleza de suas bromélias. A intimidade sempre me abalou, é algo que me amedronta. A mulher ali ao meu lado certamente tinha a ver com esse temor, mas para saber até que ponto, teria que andar por nossas vias subterrâneas, e eu não tinha nenhuma vontade de praticar esse tipo de espeleologia. Já estava habituado a viver num presente contínuo, entre as alegrias e tristezas voláteis do vinho. 

 

O jardim dela é uma beleza. Azaleias, costelas-de-adão, bromélias, muitas avencas, uma jabuticabeira e uma amendoeira, tudo disposto segundo uma ordem intuitiva, sem planos prévios. Uma reunião feliz e acolhedora de acasos. Nos sentamos sob a amendoeira, no velho banco de madeira lavado pelo tempo. Ela ficou de lado, para não apoiar a anca da prótese na tábua dura.

 

O Ricardo não vai te dar mais nenhum emprego. Pelo menos não faça a besteira de vender a casa que o teu pai te deixou.

 

Foi só uma ideia besta. Não vou vender nada.

 

Ela olhou para os lados da Serra do Mar:

 

Você não quer ficar aqui hoje?

 

Aquela cama do quartinho é… sei lá. Não consigo dormir lá.

 

Dorme no quarto do Ricardo.

 

Pior ainda. Tem cheiro de mofo.

 

A gente põe o teu colchão no chão do meu quarto, então.

 

Eu tenho que ir embora, mãe.

 

Para quê? Olha, seu irmão esqueceu uma garrafa aí, não sei o que é.

 

Você diz pra eu parar de beber e depois…

 

Você já está aí tremendo todo! Eu fico com pena.

 

A senhora está planejando alguma coisa.

 

Eu não. E não me olhe com essa cara.

 

Fui buscar a garrafa na cozinha. Por que o Ricardo havia deixado um Royal Salute de vinte e um anos na casa da mãe? Foda-se, a abstinência é mais forte do que qualquer orgulho, e um Royal Salute tem imenso carisma. Levei para o jardim a garrafa, dois copos, uma mesinha que achei na garagem. Procurei esconder da mãe a alegria que a iminência do primeiro gole me causa.

 

A mãe deu uma bicada no uísque, fez uma cara horrível e não tocou mais no copo. Eu soltei o botão da calça jeans, abri o casaco. Prometi a mim mesmo beber devagar, pensando já que não era tão ruim assim a cama do meu quartinho. Ficamos olhando o vento vergar os enormes eucaliptos que margeiam a linha do trem. Uma coroa rosada de nuvens cercava o pico mais alto da serra, contra o frio azul do céu. Minha mãe de repente me pareceu pequenina, encolhida. 

 

Aquele mais alto é o pico do Marumbi?, perguntei, sentindo uma ternura súbita pelo seu olhar desolado.

 

É o Olimpo, eu acho. Não sei, eu nunca sei direito essas coisas. Nome de lugar, de pássaro, de planta. Às vezes eu pergunto, mas esqueço tudo. 

 

Eu também.

 

Que nada, você tem uma memória boa. Passava nas provas sem estudar, só com o que o professor dizia. E tirava nota boa. Já o Ricardo… ele tinha que se esforçar mais. Mas passava de ano, sempre passava.

 

Um sujeito para ser um empresário, um senador ou um bispo tem que ser meio idiota, a senhora não acha? Só grandes idiotas dão certo. Ninguém um pouco mais inteligente investe nisso de “dar certo”. 

 

Você está se justificando, meu filho?

 

Enquanto ela sugeria o meu mecanismo de autossabotagem, compreendi que, mais uma vez, havia sido estúpido. Era claro que ela não tinha planejado nada. Pelo contrário, tinha me dado a garrafa contra os seus planos, só para não ficar sozinha. Imaginei os seus dias naquela casa, entregue aos vagos rancores da memória, cercada pelo vento gelado das montanhas. Claro, seria mais triste se ela desejasse de fato alguma companhia. Uma vez, no começo da juventude, depois de abandonar uma namorada que queira porque queria me consertar, voltei a morar com a mãe. Não aguentei seis meses. Quando eu chegava de madrugada, ela arrastava os chinelos no meu encalço. Fazia o mesmo durante o dia, quando eu ia ao banheiro, preparava uma comida, me arrumava pra sair. Depois ela dobrava minhas roupas, lavava meus pratos, guardava meus livros. Apagava meus rastros. Sua extrema atenção parecia uma forma velada de mostrar o incômodo da minha presença. Quando decidi ir embora, ela disse apenas: “Se é o que você quer… Eu não vou te segurar aqui, com uma velha”. Ela tinha quarenta anos. Sempre se achou uma mulher acabada. 

 

Começou a esfriar, mas a mãe não quis ir para dentro. Busquei um cobertor e a envolvi da cabeça aos pés com ele. Eu já tinha bebido o suficiente para me tornar confessional.

 

A separação foi um alívio, sabe? No começo eu fiquei meio perdido, claro. Eu vou trabalhar e quando volto a mulher pegou todas as suas coisas e sumiu sem explicar merda nenhuma. Levando o meu filho. Horrível. Era como se tivessem arrancado uma sonda da minha veia. Mas depois… depois me libertei da dependência do remédio. Eu acho que ninguém devia ficar com ninguém por mais de três, quatro anos, se não quiser entrar naquela fase da mutilação de si mesmo. E do outro. 

 

Quando o seu pai morreu, eu fiquei bem mal.

 

Mas isso é diferente. O pai era um homem amoroso.

 

Quem te disse?

 

A senhora.

 

Eu não! 

 

Não era?

 

Eu já te falei isso, Mariano. Umas quinhentas vezes. Eu estava quase sempre sozinha, com dois filhos pequenos, sem dinheiro. Faltava até papel higiênico. Quando as coisas melhoravam um pouco, ele brigava com o chefe e saía do emprego. E todos os empregos que ele arrumava eram pra viajar. Eu acho que ele nem viajava tanto. Devia ter outra mulher… se não era pra casa da Noêmia mesmo que ele ia. 

 

A Noêmia. Ela ainda tá viva?

 

Não sei. 

 

E o Nilton, você nunca mais viu?

 

Eu é que devia perguntar isso, você não acha?

 

Será que o Ricardo encontra ele?

 

Acho que não. Pelo menos nunca me disse nada.

 

Beberiquei o uísque, me lembrando do apartamento assombroso da Noêmia no Edifício Asa, na Praça Osório, onde estive quando era criança. Foi pouco depois da morte do pai. Eu devia ter sete, oito anos. Havia uma grade de ferro no corredor. Noêmia veio abrir o cadeado de roupão e touca de banho. Na lavanderia e na cozinha, havia caturritas, periquitos e canários em gaiolas. Era como se entrássemos num aviário. Depois, na sala, entre porcelanas, toalhinhas de crochê e samambaias, me apresentaram um garoto mais velho, o Nilton. Noêmia disse este é o seu irmão. Meio-irmão, corrigiu minha mãe, visivelmente contrariada. Há um quarto cheio de flâmulas do Coritiba Foot Ball Club, sinto cheiro de chulé. O garoto tem uma boca enorme e, quando coça a nuca, vejo que já tem pelinhos no sovaco. Ele me explica que as mulheres têm dois buracos, um pra fazer filho, outro pra fazer sexo. Fico nauseado, tentando entender a coisa. Mas brincamos de bolinha de gude sobre um tapete bordô descorado. De repente ouvimos as mulheres aos gritos, minha mãe surge à porta do quarto e me arranca de lá furiosa, me puxando pelo braço. Eu só veria o Nilton uns vinte anos depois, um sujeito grande, de blazer, comendo pastel numa lanchonete em que fui com o Ricardo. Meu irmão segredou ao meu ouvido que aquele era o Nilton, nosso meio-irmão, e me levou discretamente para fora da lanchonete. Vamos lá conversar com ele, eu disse. Não vale a pena, disse o Ricardo. 

 

Minha mãe quis saber se eu gostava da Noêmia. Tirei os tênis, flexionei os dedos dos pés, tentando esconder um furo na meia:

 

Não sei. Acho que eu só vi ela uma duas vezes.

 

Você não pode ficar assim, meu filho.

 

Assim como?

 

Tão sozinho tão novo. 

 

Olha quem está falando!

 

Ela bateu com uma ponta do cobertor no meu rosto:

 

Você não sabe da missa um terço.

 

O que é que eu não sei?

 

Eu não estou morta.

 

Pelo amor de Deus! Não me conte. Tá bem, me conte. É aquele pastor alemão da igreja luterana que vem aqui filar boia? Desculpe, não quis chamar o homem de cachorro: pastor, vírgula, alemão.

 

Eu não tenho que te contar nada. 

 

É o pastor, é o pastor! Au! Au!

 

Está frio, e você está começando a ficar bêbado. Vamos lá dentro fazer uma sopa. Leve sua mamadeira. 

 

Naquela noite, deitado no chão do quartinho, ouvi o trem passar no exato momento em que tentava me masturbar. O barulho que a locomotiva fez rasgando o silêncio me levou a outras noites ali, na escuridão mais funda da infância, e a lembrança enfraqueceu o tesão. Brochei irremediavelmente. Puxei a cueca pra cima, abri o armário de roupas e peguei a garrafa, que tinha trazido escondida para o quarto. Bebendo no bico, ouvindo o ronco da mãe no quarto ao lado e o tique-taque sombrio do velho relógio da sala, lembrei que, há mais de trinta anos, naquele mesmo quarto, olhando para o mesmo teto, eu também não conseguia dormir. Evitava a cortina branca, onde a luz da rua projetava o cardume de sombras das folhas do chorão. As sombras nadavam pra lá e pra cá, e eu pensava que alguém rondava a janela para me aniquilar. Se olhasse então para as portas do armário, dos desenhos da madeira surgiam monstros medonhos. Restava o teto, ou enfiar a cara sob o cobertor, que logo me sufocava. Às vezes eu corria para a cama da mãe, mas lá me esperava outro martírio. Ela tinha a mania de falar dormindo, e aquilo me deixava apavorado, como se a mãe fosse uma alma penada. Eu voltava muito vulnerável para a minha cama. Não havia saída, porque o quarto do Ricardo era completamente proibido pra mim. A mãe dizia que meninos não deviam dormir juntos. Só me restava voltar para o canto do suplício e imaginar que fugiria no próximo trem. Iria para Paranaguá, para o mar, onde pegaria um navio e viraria marinheiro. Eu viveria longe deles, longe daquela casa, onde a mãe areava panelas e encerava o chão com a mesma objetividade melancólica de quem veste um morto. Deixaria cair no vazio a superioridade moral do obediente Ricardo, que viraria uma coisa ridícula diante da minha coragem de ir para o mar. E um dia voltaria, alto, forte, endinheirado, bem vestido, para ver os dois se ajoelharem diante de mim, arrependidos, vencidos, humilhados, em lágrimas. Podia imaginar o que eles diriam:

 

Meu filho querido! Como você está diferente! 

 

Meu irmão! Conte pra gente onde você esteve!

 

Eu não conseguia dormir. Me levantei, vesti a calça, os casaco, os sapatos. Catei a garrafa e saí de casa na ponta dos pés. Atravessei o velho quintal, fui no escuro até à cerca. Me lembrei que antigamente eu passava por ali abrindo uma presilha de arame. E lá estava ela, toda enferrujada, no encontro da cerca alta com o muro do vizinho. Com alguma dificuldade, consegui desfazer o nó do arame. O buraco era pequeno pra mim agora, mas consegui me enfiar por ele. Andei até o caminho de ferro, olhei para o vago brilho dos trilhos que se perdiam nas trevas.

 

Não, eu nunca pegaria aquele trem.

 

fotografia de Marcos Pomplona

 

Marcos Pamplona é escritor e editor. Sua bibliografia inclui os poemas de “Transverso” (Kotter, 2016) e as crônicas de “Ninguém nos Salvará de Nós” (Kotter, 2021) e “O anjo da incerteza” (Arte & Letra, 2023). Vive em Lisboa, onde atua como editor da Kotter Portugal.

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