Poesia & Conto

Entre o sono e a angústia: o dilema de Kiari Kassange | Bendinho Freitas

Foto de Alberto Charamba na Unsplash

O terreno era baldio e estreito; contudo, serviria, certamente, para ser erguido mais uma daquelas presunçosas moradias que insultam o padrão arquitectónico naquela velha zona da cidade de Luanda! Talvez nascesse mais uma edificação envidraçada, para desafiar a tropicalidade local! 

 

A espontaneidade do marulhar; as línguas das ondas tranquilas, lambendo a areia da praia e os grasnares das gaivotas arranhando o silêncio do fim de tarde, ainda lá continuavam; porém, já não conseguiam devolver a beleza roubada ao lugar, há anos.

 

No coração da noite, certas quinquilharias dispersas, acumuladas pelos jovens moradores e objectos descartados pela vizinhança, repousavam no chão, tomando conta do ambiente; algumas ratazanas despreocupadas, de vez em quando, circulavam com peculiar agilidade, traçando naquele chão, agora asqueroso, várias rotas que pareciam pré-concebidas: era a celebração duma harmónica convivência com o punhado de adolescentes, dormindo ao relento, numa ingénua invocação às enfermidades, só freada por Deus. 

 

No cenário, vislumbravam-se três jovens sem tecto, dispersos; enrolados nas suas mantas sujas, sob a cumplicidade protectora da abóbada celeste, pintada de obscuridade. A noite envergonhada lacrimejava uma neblina de tristeza, guardando para dias melhores o sorriso das estrelas e a claridade ardente do luar. 

 

Os jovens largados à sua sorte, como verdadeiros fardos sociais, continuavam esquecidos pelos cegos corações dos homens duma sociedade onde a corrida imobiliária é desenfreada. Os espaços livres rareavam e os jovens eram constantemente recordados que tinham os seus dias contados, naquele local. Ainda moravam nos ouvidos dos rapazes as vozes imperativas dos novos proprietários, alertando-os, num áspero ultimato, para, num prazo de dois dias, abandonarem o terreno, agora cercado para obras. 

 

Outrora, o local pertencera a uma zona recém-desanexada de um polígono florestal à beira mar. Placas proibindo a construção de moradias ainda continuavam plantadas no local, resistindo ingloriamente a bolsos astuciosos, que se enchiam de egoísta satisfação. Cada dia que passava, o polígono emagrecia a olhos vistos: novas ruas e talhões nasciam do nada, enviando um agregado populacional de árvores para o além. O vento marinho apalpava com brandura as árvores sobreviventes, enquanto folhas de palmeiras tremiam de medo, preocupadas com o incógnito destino a elas reservadas pelos homens.   

 

Kiari Kassanje – o mais-velho do grupo, era alto, de rosto magro e cabelos descuidados – levantou-se estonteado, dum sono bruscamente cortado pelas águas fedorentas que, de súbito, se libertavam de um cano do terraço da vivenda ao lado e, escoltadas pelo vento, iam baptizar o seu andrajoso lençol: com as mãos presas à cintura e um rosto amarrado pela fúria, foi resmungando: “já não bastam as baratas e mosquitos, que nos vão enforcando a paciência!?” 

 

Não muito distante, mas protegidos do baptismo das águas putrificadas, os seus companheiros Nando Kituxe e Ekumbi João, forrados num sono batalhador contra os impiedosos mosquitos, rasuravam a escuridão da noite, com um coral de roncos, experimentando uma epopeia que prometia durar até ao raiar do sol.

 

Kassanje era natural de Kambundi Katembo, enquanto Kituxe e Ekumbi eram da Quibala e Longonjo. Os três haviam cruzado os seus destinos, quando foram habitar numa vetusta edificação, degradada e abandonada, no centro histórico da cidade. Apesar do estado de conservação, o edifício foi mantendo a sua sumptuosidade: construído há dois séculos, já foi uma das jóias da arquitectura colonial, tendo se degradado vertiginosamente, com a invasão de famílias deslocadas da guerra e outras, provenientes do interior, atraídas pelas oportunidades e sonhos da cidade. 

 

Com o decurso dos anos, o imóvel tornara-se perigoso para os próprios ocupantes, tendo resultado no desalojamento compulsivo das famílias, sob olhares vorazes de interesses imobiliários, que pediam a demolição total do edifício: já cogitavam a construção de uma moderníssima torre, para escritórios – das maiores da África subsariana, diziam ávidos – Todavia, uma forte corrente da sociedade defendia a restauração, apesar de estarem cientes que se desembolsaria avultadas fortunas.

 

Kassanje e companheiros respiravam o cheiro do desprezo da sociedade. Marginalizados, ensaiaram uma martirizada peregrinação, em busca do tecto sonhado, tendo-o encontrado naquele antigo pedaço do polígono florestal, onde, agora, acabavam de receber o fresco ultimato do desalojamento. 

 

Enquanto resistia ao mau cheiro da água, Kassanje recolheu o seu improvisado colchão de papelão, deslocando-se para outra extremidade, buscando encontrar um local mais aconchegante, para continuar a dormir. Trazia amparado, no outro braço, a manta, e foi-se aproximando do espaço onde dois seguranças privados, que guarneciam a vivenda, ao lado, resistiam ao mordaz peso da sonolência. 

 

Os passos de Kassanje espantaram o sono do latagão Lucas Kapenda, um dos seguranças. Este o mirou, já desfeito do sono, e esforçou-se para esboçar um sorriso solidário. Entretanto, encolheu os ombros, dando a entender que gostaria de fazer algo mais por eles. 

 

O interior de Kiari Kassanje era invadido por uma revolta, quando mergulhasse os pensamentos nas crueldades do destino. Viajando nas lucubrações, sonhava: “quão bom seria se, no mundo, a solidariedade social não se escondesse nos bolsos cheios de ganâncias consumistas dos que podem”; “que bom seria se os poderosos plantassem uma semente de amor em cada alma sufocada, para germinar a dignidade humana a eles subtraída”. Perguntava-se “como poderia ludibriar o futuro paralítico que o destino lhes honrava?” 

 

Manteve-se ali, imóvel, a olhar para o outro segurança da casa, completamente vencido pelo sono. Dormia sentado, com a cabeça estática, totalmente inclinada para baixo, como se tivesse hipnotizado; todavia, as mãos continuavam a segurar a velha arma AKM, numa prontidão alienada. 

 

O silêncio da rua, amiúde, era ferido pelos roncares de carros que, com os seus faróis, encandeavam a ténue iluminação do local. Naquele instante, Kassanje, com os olhos marejados de lágrimas, invejou o homenzinho que dormia, completamente varrido pelo cansaço do dia e, novamente, vadiou nos sonhos, por ora, irrealizáveis: “ai, quem me dera, poder desfrutar de uma noite de sono bem dormida, para enxugar, por algumas horas, o drama que teima em ensombrar a minha miserável sina”. Porém, como ele poderia dormir se os mosquitos e baratas com que lutava; as ratazanas com as quais celebrara, inconscientemente, o pacto de convivência e o orvalho, que molhava a sua própria consciência, questionavam-no, como seria o dia de amanhã!?

 

fotografia de Bendinho Freitas. Autor da fotografia: Luís Aguiar.

Bendinho Freitas Miguel Eduardo nasceu a 25 de Maio de 1971 em Luanda. Jurista, licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto UAN e Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Recursos Humanos, pela Católica-Lisbon School of Business and Economics e Universidade Católica de Angola. 

Foi Professor, tendo leccionado história em escolas secundárias de Luanda e Língua Portuguesa no Centro Pré-Universitário da mesma cidade. É funcionário público, quadro do Ministério da Energia e Águas, onde exerce o cargo de Director de Recursos Humanos. 

É membro da União dos Escritores Angolanos (UEA). Publicou os livros “A Pitoresca Etnia das Palavras”, poesia, edição da UEA 2016 e “Silentes Vozes d’Árvores, poesia, edição da Mayamba Editora 2019.  

Para além de trabalhar a poesia, dedica-se, paralelamente à produção da prosa, com colaborações ocasionais nos jornais angolanos, onde publica crónicas, contos, ensaios e artigos de opiniões.

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