Memória
Quando era criança, comia sementes do jardim
Tais pérolas negras que usaria ao pescoço
Quando era criança, mergulhava as mãos na terra dos canteiros
Tais lagos obscuros onde dormiam os meus segredos
E as flores, ou olhos com pestanas de pétalas
Vigilantes de delírios infantis, vigiavam-me
Eu era feliz, sozinha
Sozinha não só
Somente solitária e sonhadora
Serena e sensível à sensação de ser uma criatura
Sem pensar no laivo do solo que sujava a minha saia
Agora
Sonho
Quero ser uma árvore e falar com as raízes
Ver com os ramos
Pairar por cima de tudo
Com asas frágeis
Que duram um dia
Basta um momento curto e infinito para trepar no ar
Até que o tudo esteja longe demais para se sentir
E eu esqueça que o tudo existe
Com o seu ruído irritante
Fecho os olhos e ignoro que construímos prisões de betão e fábricas de fogo
Agora, na ausência, escuto e percebo
A cobra lá fora que deixou de sibilar
E o corvo na chaminé que abre o bico para falar
Mariana Bicudo Cunha nasceu em Lisboa. É Licenciada em Ciências Psicológicas (2016) pela FPUL e Mestre em Estudos Ingleses e Americanos (2019) pela FLUL. Foi a vencedora do 14º Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho (2022), na modalidade Poesia – Novos Talentos. A obra que recebeu este prémio, Onde Dormem os Cães, foi publicada pela editora Exclamação em 2023, dentro da coleção Novíssima. É investigadora do CEAUL e bolseira da FCT, com um projeto que estuda a obra poética e cinematográfica da artista americana Maya Deren, dentro do âmbito do Doutoramento em Literaturas, Artes e Culturas Modernas na FLUL.