Cultura

O “exílio” de cada um de nós no romance de André Caramuru Aubert | Edney Cielici Dias

Foto de Alexander Pogorelsky na Unsplash

 

Neste mundo em constante transformação, os indivíduos, as famílias, as sociedades se moldam em movimentos e contingências, em presenças e ausências compulsórias, em objetividades e, sobretudo, subjetividades que formam a identidade de cada um. Termos como globalização, interdependência, fluxos migratórios são repetidos à exaustão e poucas vezes é colocado foco na dimensão existencial disso tudo, isto é, na própria representação do que somos. O escritor brasileiro de ascendência suíça André Caramuru Aubert endereça oportunamente essas questões em seu oitavo romance.

 

“Exílios” (Faria e Silva, 2024) utiliza método empregado em trabalhos anteriores do autor: a escrita coloquial, despretensiosa em forma e trama, mas que endereça questões complexas e reveladoras ao adentrar uma perspectiva mais reflexiva.  De fato, o autor monta sua narrativa duplamente: (i) a partir de experiências pessoais que se desenvolvem em ficção e (ii) com base em fatos históricos que são analisados à luz da história – disciplina em que o autor é mestre. 

 

Assim se apresentam contextos tão reais como inusitados, em que um suíço e um franco-argelino se conhecem no sertão mato-grossense dos anos 50, em que os filhos deles se encontram apaixonados décadas depois, em que pensadores como Albert Camus e Frantz Fanon são trazidos à baila em garimpos da Amazônia, em que arqueólogos buscam vestígios da vila de Mazagão Velho no Amapá, esta, por sua vez, estabelecida com a mudança forçada dos moradores da fortaleza portuguesa de Mazagão, no Marrocos. Tudo conectado, mundializado e subjetivado.

 

Desenvolver essa receita sem desandar em pretensão e/ou superficialidade é certamente um risco, contudo Caramuru Aubert é bem-sucedido. Nesse sentido, ele cumpre o que se espera de um escritor de relevo, a saber, abrir perspectivas iluminadoras sobre questões de seu meio e de seu tempo.

 

Os retratos se alternam se se interligam ao trazer à tona realidades pouco conhecidas, como a de uma cidade na boca do sertão nos idos de 1956:

 

“Presidente Epitácio [SP] repousa na extremidade de uma vasta e nua planície com umas poucas árvores secas. É um terraço, ou varanda, a deitar os olhos sobre o rio Paraná. 

“É uma cidade só no nome. Nas ruas, o calor, e os que transitam de um lado para o outro, transformam a terra em poeira fina que forma uma grossa camada, na qual os pés afundam como se estivessem caminhando na neve. 

“Cachorros, carrocinhas puxadas a mão, gente de tudo quanto é tipo: gaúchos com botas de acordeão [bombachas: meu pai seguramente não conhecia a palavra], garotas negras com os rostos suados, mulatos com chapéus enormes, crianças. 

“Armazéns nos quais se vende de tudo: selas, facões, cordas, tecidos, instrumentos musicais, ferramentas, chapéus etc.”

 

E os relatos se estendem para a Argélia, para Santo Agostinho, para os conflitos de independência em Argel, para os racismos múltiplos, para os cercos à fortaleza de Mazagão, para os Mosteiro dos Jerónimos na Lisboa do século 18, para Macapá, para a São Paulo de hoje. Tudo conectado, mundializado e subjetivado em dilemas ancestrais e atuais. E esses retratos fazem sentido em conjunto, como no caso a aviação de alto risco dos garimpos amazônicos:

 

“[…] os pilotos do garimpo (e o próprio garimpo) nada mais eram (e são) do que uma versão contemporânea da extensa horda destrutiva europeia que não parou de avançar pelo Brasil desde 1500, horda que incluiu bandeirantes e boiadeiros, que destruiu a Mata Atlântica, que exterminou centenas de nações indígenas e que, não satisfeita com o estrago produzido localmente, ainda foi escravizar milhões de pessoas na África. E assim por diante.”

“Exílio” se verticaliza ao evocar a percepção subjetiva desses macroproblemas, o que é particularmente emblemático no seguinte trecho:

 

“Uma coisa é quando se lê que milhares de seres humanos foram expulsos de casa, e outra, muito diferente, é quando conhecemos as histórias individuais, os rostos e os nomes. Quando olhamos para as pessoas, vemos que o sentimento de exílio marca não só aqueles que enfrentaram pessoalmente as viagens, como Giraud e meu pai, como também as gerações seguintes. Um sujeito como Pedrão Preto, de quem falarei com mais calma no próximo capítulo, outro eterno desajustado, não seria também alguém marcado pelo exílio a que seus avós ou bisavós foram sujeitos ao serem arrancados da África para serem escravizados? E fico aqui pensando: ainda que numa escala muito menor, de onde é que vêm esses meus sentimentos de deslocado e de não pertencimento, que sinto desde criança e que até hoje não superei? O quanto disso não terei herdado de meu pai?”

 

O livro nos propõe essas reflexões não usuais, convida-nos a olhar nossas histórias de forma mais matizada e, portanto, mais rica. E justamente por isso vale a pena.

 

Fotografia de Edney Cielici Dias

O poeta brasileiro Edney Cielici Dias, autor de “Languagem” (Iluminuras, 2024) e “Cartas da Alteridade” (Selo Demônio Negro, 2020), é pesquisador doutor em ciência política, economista e jornalista.

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