Precedido de duas décadas e meia, porém, sem se distar dos arroubos de um “menino curioso” e “traquino”, que, com todo o enlevo e sublevação, à nascente lírica, é despertado, Christovam de Chevalier concorre à poesia, mais uma vez, quando decide afluir da lida do tanto da vida (2024). Em sua coletânea recém-lançada, é possível vislumbrá-lo em sentinela do espaço veterano que ocupa no meio literário, entretanto, não sob o furto das vulnerabilidades da expressão existencial, à medida que o poeta se coloca para jogo e soçobra “à espera de alguma resposta/ que não virá […]” (p. 89), tanto quanto confessa “perder o que sequer encontrei” (p. 35). Sua devolutiva para isso: a reinvenção de sua forma de ser. Reinvenção, cumpre destacar, aboletada nas asas, contígua à arquitetura de um pássaro, que se almeja livre de “[…] miolo/ ou margem/ metrificação” (p. 21), para, desde logo, sistematizar sua “Arte poética” ‒ forjada de realidade, de Pessoa, e de aliteração, confessadamente, particular, porém, transferível a todos.
Dessa feita, (re)escrevendo os dias e a biblioteca, Christovam é intersecção a refletir o grafo de sua poesia-palimpsesto assaz entregue “à lida da escrita”. Ele a palmilha com seus inúmeros eus, suas várias faces, que, é certo, vão muito além de sete, conforme toda liquidez que a contemporaneidade o forma. É nesse estado, amalgamado espectralmente, que Chevalier é ouvido, intermediado ou “remixado”, como o próprio vai dizer, ao ecoar, por exemplo, Sá-Carneiro, com atualização no mundo digital ‒ “Eu não sou eu nem sou o outro/ sou qualquer coisa na internet” (p. 42) ‒ para se dividir, hesitando, entre “puto, pirata, peralta ou pivete” e até, com aceno ferinamente jocoso, aquilo que a voga do metaverso vem, em larga escala, difundido: ser “um voyeur da vida dos outros” (p. 42). Isso faz do poeta resistente à crítica de conjunto e o torna, por conseguinte, antenado com sua época, mas, também, codificado à leitura de múltipla escolha, vazada numa subjetividade partilhável além de perene.
Ao ensejo do verso, nomes e motes são resgatados por Christovam, caminhando de mãos dadas com e “pelo [seu] prazer de escrever” (e de ler). Confrades das letras e das artes em geral, tais como Arnaldo Antunes, Adélia Prado, Cacaso, Salgado Maranhão, Adriana Calcanhotto, Nelson Freire…, são presenças circunscritas na (inter)locução da lida do tanto da vida. Direta ou indiretamente, Chevalier as enlaça ao seu deslocamento no espaço-tempo e, ainda, engendra sentimentos de circunstância e de intermitência. Estes, por seu turno, quando não esvaziam, suspendem a lógica habitual e, no lugar dela, propõem a inflexão lírica, como forma de atender aos chamados do foro íntimo e da criação. Nesse sentido, reside a experiência significativa do modus operandi de Chevalier. Comparecem, aqui, e com razão aleatória de existir: prece, ilusão, saudade, distrato, controladores de voo, moça da flor encarnada, um som esquecido, noite sertaneja, o menino que amava plantas, mar bravio, acerto de contas… Todo o expediente assim disposto obedece ao exercício crítico, rigorosamente assimilado, porém, nem de longe, permite abdicar ou interditar o acesso. Ao contrário. A primazia na lírica de Christovam entronca na produção dos versos as melhores respostas à poesia leitora da (nossa) vida ou a de uma vida, poeticamente, lida, que, por isso mesmo, sabe, de um lado, “[v]ir[ar] pelo avesso/ o que reverbera” (p. 37), e de outro, admitir a fugacidade do nosso tempo, qual o “[…] amor da semana passada […]” que se esvai “[…] na manhã nublada” (p. 50).
REFERÊNCIA:
CHEVALIER, Christovam de. Da lida do tanto da vida. Rio de Janeiro: 7Letras, 2024.
Letícia Ferro é editora e crítica literária, com doutorado em Estudos Literários pela UFG. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com