Poesia & Conto

Poemas | Cecília Barreira

Foto de Krišjānis Kazaks na Unsplash

HINO À MULHER

 

(és escrava e vilipendiada)

És candeia és ameia és veia

És útero és sonho és fome és longe

És solidão paixão intacta precisão

(és escrava e vilipendiada)

És moinho és feno és bicho és vida

És barco és sede és tanta és desmedida

És prazer és demanda és mãe és viúva

És vaguear és essência és pulsos

(és escrava e vilipendiada)

És espaço és fundo és sotavento és intento

És palavra és seios és explosão 

És toda tu coração silêncio vazão 

És rua és bolso és desejada

(és escrava e vilipendiada)

És bosque és inchada és bússola 

És azulejo és ilha és água magoada

És norte sul enseada equinócio fraga

És peixe num imenso lago morrido

És o tudo és a razão da substância

És Eva és o pecado que mora ao lado?

És o absoluto tangível 

O inteligível o infalível

(és escrava e vilipendiada)

 

Já passou o tempo do mundo, já passou o tempo da marmota e do carapau.

Já passou o tempo da bisca lambida, já passou o tempo do bombom.

Agora é altura de cobrir o peito de mantas e conquilhas.

Só resta o cadeirão em que falava durante horas contigo, Pai.

Pudesse eu evadir-me por breves instantes e saltar e dançar no Beaubourg.

Para que serve o tempo?

Para te relembrar enquanto arranco tábuas e cuspo borbotões.

 

POEMA À AMIZADE

 

Quero-te assim

Triste alegre ou em lágrimas

Dou-te  água  salsa sem palavras ácidas

Reabro-te  o caminho de volta

Não te exijo fidelidades ou lápides

Quero-te assim

Tocha de um olhar

Pele e liturgia

Ouço-te

As palavras soltam-se no dia a dia

Posso já não te abraçar como dantes

Mas estou aqui 

Na alegria e na melancolia

Os desfiladeiros que passem 

Quero-te assim

Como és para mim

 

 

 

SÃO HORAS DE VOLTAR

 

Dei-te a minha fala dei-te as arcas da neve do sol nos moinhos

São horas de voltar

Nos insetos que contemplo guardadora

A fúria de amar

Os vincos do desejo

As mordidelas sem pejo

Dei-te a minha fala dei-te as arcas da neve do sol nos moinhos

No teu corpo a minha mandíbula curta

São horas de voltar

A música é a doçura do existir

Os meus vidros estão sujos do meu bafo

São horas de voltar

Um epílogo

A invisibilidade dos pés magoados das bailarinas

Devoro o crepúsculo algures numa foto tua

Lavo as omoplatas com que te resguardei no ano passado

São horas de voltar

Meto no bolso um boneco de peluche que me ofereceste

Cartilagem

Unhas crescidas

São horas de voltar

Os muros de uma quarentena no mundo inteiro

Os príncipes finalizaram as suas funções

As princesas estão enfastiadas em casa

São horas de voltar

Escutando Wagner

Rodopio em ti

Fotos, vídeos, memórias

Rasgar 

Transitar

Figuração

São horas de voltar

Habito num convés

Sou fusível sou má rês

 

POEMA À ÁGUA

 

Lentamente numa garganta de pedra uma mão na sebe

Lentamente num fuso horário uma manga 

O ferro o mar a ínsula

O rio

-a água i-

A chuva

Gotas na estrada

Imerso o diapasão

Deixaram os portos

Deixaram os barcos

O que pertence aos oceanos é a vida não o plástico

Humedecida a retorta

Gargalha a porta

Por esse rio acima

Sôbolos rios

O parto

Já não parto

A sobreda

Ranchos

O vestido na banheira 

O duche 

A bacia

O alpendre

A baía

O que pertence aos oceanos é a vida não o plástico

Peixes e mamíferos

Marmota

Depenada condição

(Despejar o lixo no mar)

Caos

Os pedaços de estanho e de ranho

A torneira vazia África

As piscinas da nossa conveniência

Os resorts

O turismo  abundâncias 

Não cortes o riacho com a tua pedra morrida

Relembrar a lágrima

Nós somos sobretudo água

As nuvens e a água

Os dilúvios da Bíblia

As arcas de Noé

Episódios de um Titanic estrondo

O navio sem Deus

Naufrágios

Virginia Woolf morreu afogada

Porque assim quis

Num dia de março, 28

Uma toalha molhada

O calor e o frio

Os conquistadores dos mares

Depenada condição

-A Natureza também se revolta-

Água não és mágoa

Mas quantas vezes te maculamos

Na nossa oca odisseia 

Água, Paideia

 

E TOMBAS CAÍDA

 

Abres a noite, se os teus braços ovais, e tombas caída

Abres a noite, se o compasso e a fúria, e tombas caída

Abres a noite, se o sândalo e o infinito, os lábios de vermelho e carmim

Abres a noite, se a cortina se os seios, uma garça e mais um bocejo 

Abres a noite, se imolas o peito nesse quarto sem jeito e tombas caída 

Ali o parapeito, se largaste o desejo, e tombas caída

 

NEM TUA NEM DA LUA

 

Nem tua nem da lua

Recomeço os caminhos, tinjo as unhas

Sou sal poesia e alguma melancolia

No recorte da linha, palavras ao fundo

Uma esparsa alegria com aletria

Recomeço os caminhos e tinjo as unhas

De uma cor que não é tua nem da lua

Na minha mão o coral 

De um destino incerto de quem não é deste mundo

Mas navega nem bem nem mal

 

ÉS MAIS UM NA RUA, RAPAZ

 

És mais um na rua

Rapaz porque não és capaz de te habitares em paz

Rapaz não és novo não és velho não és fugaz

Não és cinzento não és do sul não és lilás

Não és bonito não és feio, és rosto oculto

Em silêncio

Recolhido

Alforge cansado desmedido

Com quem falas quem te escuta quem te entende desde tempos atrás 

Se não tens namoro se não tens filhos nem um pátio amigo?

És marinheiro das palavras e dos cadilhos

À volta dormem comem mentem pintam

E a ti nem girassóis nem tâmaras 

Te abrigam

És mais um na rua, rapaz

És clarão numa noite escura tal fábula que perdura

 

EM CONTRAMÃO

 

Em contramão almoçava ceava

Pernoitava murmurava dizia

Como um tapete de Arraiolos 

Era fuga arrabalde sebe e distância

Ignorado no chão e nas luas

Compunha plumas e coretos

Enquanto o albatroz dormia 

Em contramão pensava e agia

Num cofre armazenava túneis de relógios sem bermas

Já não sentia revolta dor ou trevas

Era fuga arrabalde sebe e distância

Compasso das noites e das preces

Com água fria se despedia do meio-dia

Dos alpendres das vestes e das ilhas

 

E MESMO ASSIM MENTES

 

Tanto fogo tanto ardor

A tua pele na minha 

(E eu à tua berma a beijar o desejo que já não sentes

E mesmo assim mentes)

Esta ferida urge e é evidente

Esta dor que eu sinto é um calção de suor

Eu preciso de dentes  de molas  de um farol

Eu quero compor um pente 

Um poema uma canção uma salada  saloia e insolente

Um feijão uma crisálida numa ribanceira num ermo quente

(E eu à tua berma a beijar o desejo que já não sentes

E mesmo assim mentes)

 

RANGER DE DENTES

 

Ranger de dentes

A cómoda

As mãos para além da morte, vão para além do toque

Agora não podemos esculpir o abraço

Agora a interdição das pedras e da doce mãe

Agora os carreiros deleitam-se na boca que guardo de ti

A margem

O vinho

(Eternamente se abatia um sobreiro para os velórios dos mortos)

Ranger de dentes

Oxímoro

Renovada a espécie

Renovado o Sertão

A Amazónia desperta de um sono longo

Ranger de dentes

Arranquei as flores

Planto árvores nos terrenos

Não quero esse cravo nem essa rosa

Fotossíntese

Oxigénio

As mãos para além da morte, vão para além do toque

A poesia é frugal

A loucura preenche o vácuo

Depois hás-te confidenciar-me sobre o relógio que me ofereceste 

O eixo

Renovado o Sertão

A Amazónia desperta de um sono longo

Tu e a elegia

Sem geometria

Não me ofereçam flores

Não matem os catos 

Plantem plantem germinem

Reunamos os litorais e festejemos a alegria

 

JÁ NADA ESPERO

 

Já nada espero

Nem a morte nem a vida nem o logro

Como deve ser bom morrer em Paris num hotel lúgubre 

(se a noz fosse lembrança

eras o meu forro) 

Já nada espero

Nem a morte nem a vida nem o logro

Como deve ser bom amaciar o vazio com uma borra de café e ruir na dissipação de um morro 

Já nada espero

Nem a morte nem a vida nem o logro

Já existi em tempos e em palavras com as quais já não corro nem demoro nem oiço

Já nada espero

Nem a morte nem a vida nem o logro

Agora o interlúdio é o toldo do meu desespero 

Já nada espero já nada quero já não me inquieto

Já nada sorvo

 

CECILIA BARREIRA

 

fotografia de Cecília Barreira

Cecília Barreira (1957-2024) era professora de Cultura Portuguesa na FCSH/UNL. Foi autora de muitos livros de poesia e ensaio. Colaborou em várias revistas, entre elas a Incomunidade.

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