HINO À MULHER
(és escrava e vilipendiada)
És candeia és ameia és veia
És útero és sonho és fome és longe
És solidão paixão intacta precisão
(és escrava e vilipendiada)
És moinho és feno és bicho és vida
És barco és sede és tanta és desmedida
És prazer és demanda és mãe és viúva
És vaguear és essência és pulsos
(és escrava e vilipendiada)
És espaço és fundo és sotavento és intento
És palavra és seios és explosão
És toda tu coração silêncio vazão
És rua és bolso és desejada
(és escrava e vilipendiada)
És bosque és inchada és bússola
És azulejo és ilha és água magoada
És norte sul enseada equinócio fraga
És peixe num imenso lago morrido
És o tudo és a razão da substância
És Eva és o pecado que mora ao lado?
És o absoluto tangível
O inteligível o infalível
(és escrava e vilipendiada)
Já passou o tempo do mundo, já passou o tempo da marmota e do carapau.
Já passou o tempo da bisca lambida, já passou o tempo do bombom.
Agora é altura de cobrir o peito de mantas e conquilhas.
Só resta o cadeirão em que falava durante horas contigo, Pai.
Pudesse eu evadir-me por breves instantes e saltar e dançar no Beaubourg.
Para que serve o tempo?
Para te relembrar enquanto arranco tábuas e cuspo borbotões.
POEMA À AMIZADE
Quero-te assim
Triste alegre ou em lágrimas
Dou-te água salsa sem palavras ácidas
Reabro-te o caminho de volta
Não te exijo fidelidades ou lápides
Quero-te assim
Tocha de um olhar
Pele e liturgia
Ouço-te
As palavras soltam-se no dia a dia
Posso já não te abraçar como dantes
Mas estou aqui
Na alegria e na melancolia
Os desfiladeiros que passem
Quero-te assim
Como és para mim
SÃO HORAS DE VOLTAR
Dei-te a minha fala dei-te as arcas da neve do sol nos moinhos
São horas de voltar
Nos insetos que contemplo guardadora
A fúria de amar
Os vincos do desejo
As mordidelas sem pejo
Dei-te a minha fala dei-te as arcas da neve do sol nos moinhos
No teu corpo a minha mandíbula curta
São horas de voltar
A música é a doçura do existir
Os meus vidros estão sujos do meu bafo
São horas de voltar
Um epílogo
A invisibilidade dos pés magoados das bailarinas
Devoro o crepúsculo algures numa foto tua
Lavo as omoplatas com que te resguardei no ano passado
São horas de voltar
Meto no bolso um boneco de peluche que me ofereceste
Cartilagem
Unhas crescidas
São horas de voltar
Os muros de uma quarentena no mundo inteiro
Os príncipes finalizaram as suas funções
As princesas estão enfastiadas em casa
São horas de voltar
Escutando Wagner
Rodopio em ti
Fotos, vídeos, memórias
Rasgar
Transitar
Figuração
São horas de voltar
Habito num convés
Sou fusível sou má rês
POEMA À ÁGUA
Lentamente numa garganta de pedra uma mão na sebe
Lentamente num fuso horário uma manga
O ferro o mar a ínsula
O rio
-a água i-
A chuva
Gotas na estrada
Imerso o diapasão
Deixaram os portos
Deixaram os barcos
O que pertence aos oceanos é a vida não o plástico
Humedecida a retorta
Gargalha a porta
Por esse rio acima
Sôbolos rios
O parto
Já não parto
A sobreda
Ranchos
O vestido na banheira
O duche
A bacia
O alpendre
A baía
O que pertence aos oceanos é a vida não o plástico
Peixes e mamíferos
Marmota
Depenada condição
(Despejar o lixo no mar)
Caos
Os pedaços de estanho e de ranho
A torneira vazia África
As piscinas da nossa conveniência
Os resorts
O turismo abundâncias
Não cortes o riacho com a tua pedra morrida
Relembrar a lágrima
Nós somos sobretudo água
As nuvens e a água
Os dilúvios da Bíblia
As arcas de Noé
Episódios de um Titanic estrondo
O navio sem Deus
Naufrágios
Virginia Woolf morreu afogada
Porque assim quis
Num dia de março, 28
Uma toalha molhada
O calor e o frio
Os conquistadores dos mares
Depenada condição
-A Natureza também se revolta-
Água não és mágoa
Mas quantas vezes te maculamos
Na nossa oca odisseia
Água, Paideia
E TOMBAS CAÍDA
Abres a noite, se os teus braços ovais, e tombas caída
Abres a noite, se o compasso e a fúria, e tombas caída
Abres a noite, se o sândalo e o infinito, os lábios de vermelho e carmim
Abres a noite, se a cortina se os seios, uma garça e mais um bocejo
Abres a noite, se imolas o peito nesse quarto sem jeito e tombas caída
Ali o parapeito, se largaste o desejo, e tombas caída
NEM TUA NEM DA LUA
Nem tua nem da lua
Recomeço os caminhos, tinjo as unhas
Sou sal poesia e alguma melancolia
No recorte da linha, palavras ao fundo
Uma esparsa alegria com aletria
Recomeço os caminhos e tinjo as unhas
De uma cor que não é tua nem da lua
Na minha mão o coral
De um destino incerto de quem não é deste mundo
Mas navega nem bem nem mal
ÉS MAIS UM NA RUA, RAPAZ
És mais um na rua
Rapaz porque não és capaz de te habitares em paz
Rapaz não és novo não és velho não és fugaz
Não és cinzento não és do sul não és lilás
Não és bonito não és feio, és rosto oculto
Em silêncio
Recolhido
Alforge cansado desmedido
Com quem falas quem te escuta quem te entende desde tempos atrás
Se não tens namoro se não tens filhos nem um pátio amigo?
És marinheiro das palavras e dos cadilhos
À volta dormem comem mentem pintam
E a ti nem girassóis nem tâmaras
Te abrigam
És mais um na rua, rapaz
És clarão numa noite escura tal fábula que perdura
EM CONTRAMÃO
Em contramão almoçava ceava
Pernoitava murmurava dizia
Como um tapete de Arraiolos
Era fuga arrabalde sebe e distância
Ignorado no chão e nas luas
Compunha plumas e coretos
Enquanto o albatroz dormia
Em contramão pensava e agia
Num cofre armazenava túneis de relógios sem bermas
Já não sentia revolta dor ou trevas
Era fuga arrabalde sebe e distância
Compasso das noites e das preces
Com água fria se despedia do meio-dia
Dos alpendres das vestes e das ilhas
E MESMO ASSIM MENTES
Tanto fogo tanto ardor
A tua pele na minha
(E eu à tua berma a beijar o desejo que já não sentes
E mesmo assim mentes)
Esta ferida urge e é evidente
Esta dor que eu sinto é um calção de suor
Eu preciso de dentes de molas de um farol
Eu quero compor um pente
Um poema uma canção uma salada saloia e insolente
Um feijão uma crisálida numa ribanceira num ermo quente
(E eu à tua berma a beijar o desejo que já não sentes
E mesmo assim mentes)
RANGER DE DENTES
Ranger de dentes
A cómoda
As mãos para além da morte, vão para além do toque
Agora não podemos esculpir o abraço
Agora a interdição das pedras e da doce mãe
Agora os carreiros deleitam-se na boca que guardo de ti
A margem
O vinho
(Eternamente se abatia um sobreiro para os velórios dos mortos)
Ranger de dentes
Oxímoro
Renovada a espécie
Renovado o Sertão
A Amazónia desperta de um sono longo
Ranger de dentes
Arranquei as flores
Planto árvores nos terrenos
Não quero esse cravo nem essa rosa
Fotossíntese
Oxigénio
As mãos para além da morte, vão para além do toque
A poesia é frugal
A loucura preenche o vácuo
Depois hás-te confidenciar-me sobre o relógio que me ofereceste
O eixo
Renovado o Sertão
A Amazónia desperta de um sono longo
Tu e a elegia
Sem geometria
Não me ofereçam flores
Não matem os catos
Plantem plantem germinem
Reunamos os litorais e festejemos a alegria
JÁ NADA ESPERO
Já nada espero
Nem a morte nem a vida nem o logro
Como deve ser bom morrer em Paris num hotel lúgubre
(se a noz fosse lembrança
eras o meu forro)
Já nada espero
Nem a morte nem a vida nem o logro
Como deve ser bom amaciar o vazio com uma borra de café e ruir na dissipação de um morro
Já nada espero
Nem a morte nem a vida nem o logro
Já existi em tempos e em palavras com as quais já não corro nem demoro nem oiço
Já nada espero
Nem a morte nem a vida nem o logro
Agora o interlúdio é o toldo do meu desespero
Já nada espero já nada quero já não me inquieto
Já nada sorvo
CECILIA BARREIRA
Cecília Barreira (1957-2024) era professora de Cultura Portuguesa na FCSH/UNL. Foi autora de muitos livros de poesia e ensaio. Colaborou em várias revistas, entre elas a Incomunidade.