Cultura

Existencialismo, ética, filos, sofia e anarquia | José Manuel Simões

Foto de Krys Amon na Unsplash

No Rio de Janeiro, DuArte Camões organizava umas viagens com umas turistas que conhecia no Sky Live do Rio Othon, aproveitando para conhecer novos lugares, Búzios, Cabo Frio, Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo; ia à praia no Posto 6; tomava o café da manhã no botequim do senhor João, minhoto de Melgaço, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana; na Globo fazia umas pontas – duas ou três aparições na novela “Cambalacho” – muitas figurações com o Chico Anysio onde interagia com muita gente famosa, mais com músicos do que com atores. 

Certa vez encontrou-se com Djavan. O cantor contava que aqueles dias de chuvas torrenciais tinham provocado imensos danos, inclusive na sua vivenda onde “cave e garagem foram inundadas e, em poucas horas, o meu jipe e o descapotável ficaram submersos”. Ao seu apurado ouvido, Djavan proferiu “jipe e descapotável” num tom que lhe soou a vaidade e não evitou pensar que este eterno jovem então acabado de ser avô nasceu numa das zonas mais pobres, autêntico gueto de Maceió, Alagoas, o mesmo Estado que viu nascer outros seres, alguns menores, como Collor de Melo que tem orgulho em ostentar torneiras de ouro na casa de banho da sua mansão. Filho de uma lavadeira que trabalhou no duro para cuidar de cinco filhos, Djavan foi submetido ao convívio com o preconceito. “Nasci pobre e negro, tive que lutar muito para ser o que sou. Escalei o Mundo, conheci gente de todas as raças e condições sociais, superei dificuldades”, assumia. O artista, que jogou futebol no meio campo de um time, o CSA, por onde também passou Scolari – então chamado de “Cabeça de Nenê” porque, após tentar jogada de ataque, voltava para a defesa balançando a cabeça de um lado para o outro; que deixou o seu primeiro grupo – que tinha nome de substância alucinógena, o LSD –, mulher e filha e veio para o Rio em busca do que conseguiu; não disfarçava o orgulho enquanto colocava a bola vermelha no buraco mais distante de um bilhar de snooker. Percebia-se que se sentia jovem, que gostava de si, sobretudo, imaginava, quando se via ao espelho. Djavan tem um elevado grau de sofisticação, rosto, corpo e jeito de menino. Enquanto colocava mais uma bola na gaveta, revelava as influências concretistas na forma como joga com as palavras e os encadeamentos ao estilo haikai. Versava sobre o amor que, “por ser encantado, é um grande laço para alimentar armadilhas”, quando entrou na sala Flávia Virgínia, a filha, 17 anos talvez, linda, ele com o olhar pasmado na beleza. Djavan bateu subtilmente com o taco no bilhar: “A notícia de que ia ser avô teve sobre mim o efeito de uma bomba. Convivi com muitos tabus ao longo da minha vida mas nenhum tão pesado quanto este. Fiquei com a sensação de que estou mais para lá do que para cá. Assustei-me. Reconheço que não tenho a maturidade necessária para cumprir de forma exemplar o papel”. Quis o destino que Djavan voltasse a ser pai. Perguntou- lhe como se sentia com uma filha mais nova que o neto e a resposta deixou-o a magicar: “É preciso ter sorte na vida. Até para atravessar a rua”. 

Certa noite, ao entrar no casarão em que morava com um amigo do Canadá constatou que lhe tinham roubado a mochila, roupa, aparelho de som; a sensação de ter sido um rapaz do Rio Grande do Sul que tinha albergado gratuitamente na noite anterior. Foi à Galeria Alaska, onde se tinham conhecido, e lá estava ele, de costas, vestido com o casaco roxo que tinha pertencido ao Sousa Pereira do Porto, a mochila às costas. “Seu sacana. Merecias que eu te desse uma tareia aqui em frente a toda a gente. Tira já o casaco e passa para cá a mochila”, ordenou-lhe, visivelmente nervoso, o posto de polícia do outro lado da rua. 

Como que para fugir da realidade chegou a casa e foi ler o que tinha na cabeceira, “Livro de Versos”, “Estou cansado da inteligência”, Fernando Pessoa, aqui na voz de Álvaro de Campos, o heterónimo que lia como o que estava de ressaca da bebedeira de absinto do dia anterior: “Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções. Uma grande reação aparece. Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo. Na casa antiga da quinta velha. Pára, meu coração! Sossega, minha esperança fictícia! Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui…”. O poema tinha sido escrito 5 dias antes de seu pai ter nascido, 13-6-1930; dia de Santo António; de repente estava cheio de saudades da família. 

Na semana seguinte levaram-lhe tudo o que havia para levar lá de casa. Todo o dinheiro, um acordeão que uma amiga lhe emprestara, de novo o aparelho de som, o televisor, até a roupa. Ficou sem nada e com medo. “Se chegam aqui para me roubar o que já não há, e eu estou em casa, matam-me”, receou baixinho, preocupado, percebendo que tinha que ir embora do Rio. Foi pedir um visto para os Estados Unidos, recusado por ter colocado na profissão “escritor” e não ter conseguido justificar o título. Lamentava ter que ir naquelas condições; por deixar a televisão onde tinha feito muitos amigos, alguns músicos famosos com quem trocou maiores afinidades. 

Cabisbaixo, dirigia-se à sala onde mais tarde iria fazer figurações para o Chico Anysio e casualmente encontrou-se com Tom Zé. Quase que esbarraram um no outro à entrada do elevador, um sorriso cúmplice maior que o seu tamanho – ainda mais pequeno e franzino do que ele o imaginava – um recíproco sopro de satisfação, de mansinho para não espantar, “um abraço, ora pois, pois”, passados cinco minutos de conversa. Chamou-lhe nordestino do mundo e disse-lhe que ele merece figurar na galeria dos “Músicos Património da Humanidade”. Desconhecendo que desde o Tropicalismo sabia da sua existência – altura em que já levava eletrodomésticos para o palco e tinha criado o sampler brasileiro, átomos e partículas de células musicais vanguardistas – Tom Zé e o português pareciam velhos amigos de anos sem se verem, língua aberta em pleno cio, entrando os dois num processo de improvisos rimados ao sabor de uma certa doidice quando um hippie que parecia acabado de chegar do ano de 1969 – tranças louras do mesmo tamanho das barbas e vestes peruanas – chegou rastejando a sola gasta das chinelas: “Oh monstro sagrado, bode anarquista, homem dos sons misturados no além”; venerava, cigarro de enrolar apagado por entre os dedos amarelos. 

Falou Tom Zé pegando-lhe na mão: “fique sabendo meu querido que quem me chamou isso foi David Byrne, dos Talking Heads, quando me levou para a sua editora, a Luaka Bop, e lhe apresentei os meus “instromenzés”. Ficou ali ouvindo-o contar de forma deliciosa peripécias de uma existência musical iniciada “porque em menino eu era muito feio e raquítico e se não fosse a voz e o violão nunca nenhuma garota iria sequer olhar para mim”. Naquela tarde fez tocar os tais dos “instromenzés” (lixadeiras, pedras, batedeiras), deu-lhe com humor, malícia, rock, forró, cantando melodiosamente e com fel: “quem foi que vendeu as armas ao Iraque?” enquanto investia nuns passos de dança do “chamegá” e enfatizava um vocabulário gestual a que nem sequer faltou um dedo enfiado no nariz e ao mesmo tempo outro a ser chuchado. 

Pese embora as carradas de humor que Tom Zé destilava, ele mantinha-se num estado de melancolia, pesaroso, angustiado por sentir que estava a chegar a hora de partir do Rio de Janeiro, desfiando na memória os momentos bons, os amigos, as saudades do passado e do futuro. Levava consigo estórias, aventuras e gente, muita gente que tinha deixado nele marcas eternas, como a família Caymmi, sobretudo o pai, Dorival, vizinhos em Copacabana, um homem com um coração do tamanho do mundo, bondade infinita, um amor cada vez mais raro. Recordou-se daquela tarde em que tocou para si e tudo pareceu ficar infinito quando o olhou nos olhos e disse: “você é gente boa”. Falou como se fosse o avô que todos gostaríamos de ter, como se a tranquilidade que irradiava contagiasse, como se as palavras, com aquela voz de timbre grave e inconfundível que usava para descrever a vida de gente humilde e trágicas histórias contadas de forma pura e simples, nos embalasse em águas plácidas. 

Retinha na memória os seus olhos turbos, claros, o jeito único de ser, de cantar e contar a paisagem baiana como ninguém, qual jogo feito de diferentes ritmos, como as músicas que parece agora escutar ao longe, leve murmúrio de leveza e saudade de um tempo, “um bom tempo”, esse mesmo tempo que não para e que faz com que não queira mais evitar as lágrimas por causa da inevitável partida. Foi a casa da família do punk Betão e também o aconselharam a ir embora. Tinha um tio, irmão da mãe, que trabalhava em São José do Rio Preto, que fosse para lá. 

O local era excecional. Montanhas, terras de café, gente especialmente boa e culta. Fez de imediato imensos amigos, reuniam-se todas as segundas feiras numa cave para tertúlias existencialistas, ética, filos, sofia e anarquia. Tom Jobim refugiava-se do mundo por ali, às margens do rio barrento onde tinha escrito e composto “Águas de Março” que outro António tocava na sua barraquinha enquanto servia cachaça com mel. 

O emprego era um misto de trabalho e de diversão, recebia os clientes na recepção, fazia sauna, jogava bola, dava águas às frondosas plantas do jardim, conversava. 

“Você vai com meu marido tirar o mel?” perguntou-lhe certa tarde a esposa do dono da quinta, a Margarida, duas filhas gémeas e um sorriso de bradar aos céus. Que sim, que ia. “Então venha cá em baixo a nossa casa, diga que tem sede, que eu lhe espero”. Mesmo que receoso foi o que fez. 

Margarida aguardava-o em trajes menores, assim que entrou na sala abeirou-se dele e beijou-o na boca, no rosto, no pescoço, atirou, tresloucada, a camisa de dormir ao chão, abriu-lhe o fecho das calças, e ele, “não, não pode ser. Isto não está certo. Seu marido está-me esperando. Não posso fazer isso”. Vestiu-se a correr, compôs-se, subiu a colina para continuar no mel enquanto pensava: “Meu Deus, que mulher louca. Atacou-me sem dó nem piedade. Melhor seria não ter ido lá”. Ao chegar perto do boss e das colmeias estava sem jeito; fez obviamente de conta que nada tinha acontecido. 

À noite, de regresso ao quarto, viu que havia um envelope no chão com uma carta. Era um poema de Margarida: “Você chegou de mansinho/ Com pés de veludo cutuca minha mente/ Minha imaginação/ De leve tocamos as estrelas/ Vértebra por vértebra. Embargo neste olhar/ Suas mãos me excitam/ 

Sua boca conhecedora da minha nesta espera que me sufoca. Crianças gritam pela mãe/ Avião sem teto no céu/ Mudo grito de socorro/ preciso seu corpo para aterrizar meu desejo”. Numa outra folha, um ps: “você está sendo entre os meus sonhos o mais lindo. Por favor, não me acorde”. 

Já dormia quando lhe bateram à porta – era o tio de punk Betão informando-o que o patrão tinha mandado dizer que quando amanhecesse não o queria ver mais por ali. 

Vestiu-se e foi para o bar do hotel fazenda, tentando entender o que tinha acontecido. Na verdade estava na cara. Mas como é que ele tinha sabido? 

Da mesa ao lado recebeu o convite para se juntar ao grupo e tomar uma cerveja. Entre inconfidências, que frequentemente cometia, à terceira Skol já contava o que lhe tinha sucedido “por causa da tarada”. Alguém o sossega dizendo-lhe que era amigo do dono do Rio Othon – onde ia com frequência quando morava em Copacabana – que se quisesse falava com ele e, como bom patrício que era, filho de transmontano, certamente que lhe arranjaria emprego. “Voltar para o Rio é que nem pensar”, desmarcou-se. “Vá lá falar com ele e depois decide o que fazer”, insistiu o colega com simpatia enquanto o tio do Betão, feito Dj, passava samba, derivado do lundu, do jongo e de outros ritmos africanos; seguido de uma variante mais solta e despreocupada, o pagode; o choro, com flauta, cavaquinho, piano, violão, bandolim, saxofone, trombone e clarinete. O tema “Tico-tico no fubá”, de 1917, desperta uma risada na mesa que dura até ao próximo tema, um baião, trazido do Nordeste por Luís Gonzaga, exímio sanfoneiro de comunicação imediata como prova o fato de às tantas estarem todos a dançar. 

A madrugada chegava com uma bossa nova de João Gilberto, cantor intelectualizado, conhecedor do jazz, iniciado em música erudita, fechando o bar com um iê-iê-iê do Jovem Guarda Roberto Carlos que lembrava os Beatles. Algo apreensivo, foi fazer as malas e, sem dormir, disse adeus a São José do Rio Preto.  

 

Fotografia de José Manuel Simões

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos. 

 

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