Santa Ana
sua boca vermelha
sangrando na noite
sangrando sangue meu
meus lábios
mordidos com força
ainda sentem o gosto
de seus seios
qu’inda estão
nas minhas mãos
e que ficaram marcados
do vermelho escorrido
de meus lábios
que sustentaram
sua sede de vampira
a doida da corte
a dona da noite
de aquário
por pouco não me fura
a jugular
feito onça
feito felina
que sabe matar
mas não faz questão se a fome é pouca
uma deusa de um povo pagão
não aguento a falta
na minha mão
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fotografo meus dedos
amarelecidos
(lembro do Pedro)
consumo, assim
meu corpo
e o tempo,
a memória
o cigarro
comido pelo fogo
minha garganta
não suporta tudo
o que meu coração
vagabundo
quer guardar
o mundo em mim
isso tudo dói
enquanto o cigarro queima
deixo uma brasa cair
no meu abdômen
e sinto queimar
aperto com o antebraço
e o sinto queimar
estou vivo
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gosto de cozinhar pelado
dá tesão
a altura do fogão
e a minha
colaboram
o sangue esquenta
circula pelo corpo —
igual a aveia na frigideira de ferro —
e chega no coração
daí, a gente começa a pensar
besteira
e gostosura
a comida pronta
o tesão quente
vem
vem comigo
me comer
vem me dar
enquanto esperamos
o sol esfriar
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atire numa maçã
equilibrada na minha cabeça
não se preocupe
você não vai errar
meus miolos também são
doces
e adstringentes
não tem erro
atire em mim, Burroughs
eu não me importo
em roubar versos
nem flores
se forem belos
Uma coisa bela é um júbilo eterno
e nosso amor não passa de um tigre
de papel
que range
ruge
treme
morde
e mata
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sem essa de canibalismo
eu quero comer é você
sem facas
sem garfos
sem pontas
tudo por inteiro
deixemos que a voz
seu gemido apenas
rasguem
sem sangue (talvez um pouco)
somente meu dente
na sua carne
meus lábios nos seus
suas mãos me apertando em desespero
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Finitude
para Helena e Ulisses
sinto-me preso
num drama de Beckett
numa escadaria
a troco de nada
esperando ninguém
sem força
nem para pendurar a corda
que arrebentaria
como falar de uma coisa
sem falar sobre a coisa?
Aquela corda lá no alto
pode arrebentar
e aí
será o fim
chegando cedo
para onde você vai
será o fim de um sonho
somente
nada demais
cortante
como as sílabas de uma guitarra
alucinada
em estado de graça
1001 notas por segundo
e as gotas
da chuva eterna
na janela
já cansada
de ser observada com desejo
liberdade
os gatos sabem
você não
nem eu
eu vou sair sem abrir a porta
e não voltar jamais
Coloquei a finitude no bolso
em pouco tempo
estará escura
consumida pelo tempo
como um cigarro
um carlton amarelo
azul
verde
tanto faz
eu acho que eu só não sei
you better roll another joint my friend
e venha
venha dançar
dance comigo a dança da forca
enquanto não estamos pendurados
enquanto ainda podemos
meu amor
eu e você sabemos que a corda está sempre pronta
dance comigo a dança da forca
por toda a degradação nesta terra
dance comigo a dança da forca
tão desorientada quanto você pode
a árvore já está ali há muito tempo, querida
mas logo será queimada
ou cortada
os animais têm fome
o homem devora o mundo
pelas beiradas
não sobra por onde se jogar
nem adianta
por isso tirei as pilhas dos relógios
mas não só
também por isso
tenho fome
alimente-me
de tudo
pasto
água
diversão
e arte
sinto que limpo minhas mãos
somente para sujá-las depois
fazendo um poema
[“fazer um poema” seria um tipo de pleonasmo etimológico?]
pode pousar
pode parar de fumar
vê que a fumaça tá mais densa?
eu coloquei sementes
antes do filtro
pra amargar e avisar
sobre o fim
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por mim, eu ficaria
te comendo
a vida inteira
sexo
aberto no campo
expandido
escondido —
tempo
de nossos corpos
mas eu posso?
quando e quanto é uma vida
inteira?
para mim
eu quero
passar os séculos de cada instante ouvindo seus gemidos sem respirar lambendo seu corpo inteiro sem o peso inútil da alma
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Meditações
Para Jerônimo B.
durante a meditação da tarde
mandei umas cinco pessoas para o inferno
(incluindo você)
e pensei em três formas diferentes de suicídio —
para me incluir
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eu quero morrer
na sua boca
se estou vivo ainda
meu bem
você sabe por que
tenho vontade de morrer
de manhã
tenho vontade de morrer
à noite
fumo dois baseados
de manhã
fumo dois baseados
à noite
e adio
a vontade outra
de te matar
na minha boca
pequenas quebras
no tempo
fissuras
a eternidade viva em cada orgasmo
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Os olhos de Isis
os olhos de Isis encontraram os meus
e eu sei:
são perigosos os encontros inadvertidos de olhares,
sustentá-los poderia provocar o
transbordamento do vocábulo silenciado.
no entanto, Isis não sabia
ela sustentou
eu também queria o caos
aquele azul infinito
onde nasceu e mora
o meu vazio
foram diversos encontros
ela não me conhecia
talvez tenha se perdido
na profundidade dos meus olhos
de esfinge
sem diferença entre íris e pupila
decifra-me que eu te devoro
Caio V. Selva é poeta, performer e tradutor. Ensina português e inglês, revisa, traduz e edita livros e textos. Co-fundador da editora independente Revistaria e co-organizador da revista de arte Anturragem. Organizou, juntamente com outros artistas de Florianopólis, o Núcleo d’Explosão da Palavra — grupo de leitura e de performances a partir das Galáxias, de Haroldo de Campos. Sua tradução do livro do escritor chileno Rodrigo Naranjo, Cor de saúva, está em processo de publicação.