Poesia & Conto

10 poemas de amor e morte | Caio V. Selva

Foto de JK Sloan

Santa Ana

 

sua boca vermelha

sangrando na noite

sangrando sangue meu

 

meus lábios

mordidos com força

ainda sentem o gosto

de seus seios

qu’inda estão

nas minhas mãos

 

e que ficaram marcados

do vermelho escorrido

de meus lábios

que sustentaram

sua sede de vampira

 

a doida da corte

a dona da noite

de aquário

 

por pouco não me fura

a jugular

feito onça

feito felina

que sabe matar

mas não faz questão se a fome é pouca

 

uma deusa de um povo pagão

 

não aguento a falta

na minha mão

 

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fotografo meus dedos

amarelecidos 

(lembro do Pedro)

 

consumo, assim

meu corpo

e o tempo,

a memória

 

o cigarro

comido pelo fogo

 

minha garganta

não suporta tudo

o que meu coração

vagabundo

quer guardar

 

o mundo em mim

 

isso tudo dói

enquanto o cigarro queima

 

deixo uma brasa cair

no meu abdômen

e sinto queimar

aperto com o antebraço

e o sinto queimar

 

estou vivo

 

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gosto de cozinhar pelado

dá tesão

a altura do fogão

e a minha

colaboram

 

o sangue esquenta

circula pelo corpo —

igual a aveia na frigideira de ferro —

e chega no coração

 

daí, a gente começa a pensar

besteira

e gostosura

 

a comida pronta

o tesão quente

vem 

vem comigo

me comer

vem me dar

enquanto esperamos

o sol esfriar

 

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atire numa maçã

equilibrada na minha cabeça

 

não se preocupe

 

você não vai errar

 

meus miolos também são

doces

e adstringentes

 

não tem erro

 

atire em mim, Burroughs

 

eu não me importo

em roubar versos

nem flores

 

se forem belos

 

Uma coisa bela é um júbilo eterno

e nosso amor não passa de um tigre

de papel

que range

ruge

treme

morde

e mata

 

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sem essa de canibalismo

eu quero comer é você

sem facas 

sem garfos

sem pontas

tudo por inteiro

deixemos que a voz

seu gemido apenas

rasguem

sem sangue (talvez um pouco)

somente meu dente 

na sua carne

meus lábios nos seus

suas mãos me apertando em desespero

 

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Finitude

 

para Helena e Ulisses

 

sinto-me preso

num drama de Beckett

numa escadaria

a troco de nada

esperando ninguém

sem força 

nem para pendurar a corda

que arrebentaria

 

como falar de uma coisa

sem falar sobre a coisa?

Aquela corda lá no alto

pode arrebentar

 

e aí

 

será o fim

chegando cedo

 

para onde você vai

 

será o fim de um sonho 

somente

 

nada demais

 

cortante

como as sílabas de uma guitarra 

alucinada 

em estado de graça

 

1001 notas por segundo

 

e as gotas

da chuva eterna

na janela

já cansada

de ser observada com desejo

 

liberdade

 

os gatos sabem

 

você não

 

nem eu

 

eu vou sair sem abrir a porta

e não voltar jamais

 

Coloquei a finitude no bolso

 

em pouco tempo

estará escura

consumida pelo tempo

como um cigarro

um carlton amarelo

azul

verde

tanto faz

eu acho que eu só não sei

 

you better roll another joint my friend

 

e venha

venha dançar

dance comigo a dança da forca

enquanto não estamos pendurados

enquanto ainda podemos

meu amor

eu e você sabemos que a corda está sempre pronta

 

dance comigo a dança da forca

por toda a degradação nesta terra

dance comigo a dança da forca

tão desorientada quanto você pode

 

a árvore já está ali há muito tempo, querida

 

mas logo será queimada

ou cortada

 

os animais têm fome

 

o homem devora o mundo

pelas beiradas

 

não sobra por onde se jogar

nem adianta

 

por isso tirei as pilhas dos relógios

 

mas não só

 

também por isso

tenho fome

alimente-me

 

de tudo

 

pasto 

água

diversão 

e arte

 

sinto que limpo minhas mãos 

somente para sujá-las depois

fazendo um poema

[“fazer um poema” seria um tipo de pleonasmo etimológico?]

 

pode pousar

 

pode parar de fumar

vê que a fumaça tá mais densa?

eu coloquei sementes

antes do filtro

pra amargar e avisar

sobre o fim

 

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por mim, eu ficaria

te comendo

a vida inteira

 

sexo

aberto no campo

expandido

escondido —

tempo

de nossos corpos

 

mas eu posso?

quando e quanto é uma vida

inteira?

para mim

 

eu quero

 

passar os séculos de cada instante ouvindo seus gemidos sem respirar lambendo seu corpo inteiro sem o peso inútil da alma

 

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Meditações

 

Para Jerônimo B.

 

durante a meditação da tarde

mandei umas cinco pessoas para o inferno

(incluindo você)

 

e pensei em três formas diferentes de suicídio —

para me incluir

 

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eu quero morrer

na sua boca

 

se estou vivo ainda

meu bem

você sabe por que

 

tenho vontade de morrer 

de manhã

tenho vontade de morrer

à noite

 

fumo dois baseados

de manhã

fumo dois baseados

à noite

 

e adio

 

a vontade outra

 

de te matar

na minha boca

 

pequenas quebras

no tempo

fissuras

 

a eternidade viva em cada orgasmo

 

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Os olhos de Isis

 

os olhos de Isis encontraram os meus

e eu sei:

 

são perigosos os encontros inadvertidos de olhares,

sustentá-los poderia provocar o 

transbordamento do vocábulo silenciado.

 

no entanto, Isis não sabia

 

ela sustentou

 

eu também queria o caos

aquele azul infinito

onde nasceu e mora

o meu vazio

 

foram diversos encontros

ela não me conhecia

talvez tenha se perdido

na profundidade dos meus olhos

de esfinge

sem diferença entre íris e pupila

 

decifra-me que eu te devoro

 

Fotografia de Caio V. Selva

Caio V. Selva é poeta, performer e tradutor. Ensina português e inglês, revisa, traduz e edita livros e textos. Co-fundador da editora independente Revistaria e co-organizador da revista de arte Anturragem. Organizou, juntamente com outros artistas de Florianopólis, o Núcleo d’Explosão da Palavra — grupo de leitura e de performances a partir das Galáxias, de Haroldo de Campos. Sua tradução do livro do escritor chileno Rodrigo Naranjo, Cor de saúva, está em processo de publicação.

 

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