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Editorial: A vigésima terceira silly season | Alfredo Soares-Ferreira

[Editorial de Agosto 2023 – Revista InComunidade]

 

Um alerta de Paul Simon, que consta do tema “The Sound of Silence“, escrito no longínquo 1964, clamava a escuridão como velha amiga (“Hello darkness, my old friend…”). Nele, o Autor dizia ver pessoas falando sem falar, ouvindo sem ouvir e sem ninguém que ousasse perturbar o som do silêncio. Muito provavelmente, é mesmo isso que ora acontece, particularmente nesta época, baptizada de silly season, uma coisa mal definida, mas com a especificidade de ser mesmo tola, parva, ou até estúpida, inventada na Inglaterra e exportada para o resto da Europa (pelo menos), com outras designações, das quais a mais adequada será até a francesa, la morte saison ou a estação morta. Sem notícias.

 

Mas elas (as notícias) existem. Algumas tristes, outras infames, a maior parte delas sem qualquer interesse que não seja o arquivo imediato, ou o caixote do lixo, real ou virtual. Aqui ficam duas, podiam ser muitas mais, mas estas ilustram o século em que vivemos. 

 

A primeira, de 11 de Julho, o Dia Mundial da população dá conta que existem em Portugal mais de 400 mil idosos a viverem em risco de pobreza. Os dados são revelados pela PORDATA e contam que, para 90% das pessoas com 65 ou mais anos, a reforma ou pensão é a principal fonte de rendimento e que o valor máximo é de 551 euros por mês e que, na maior parte dos casos, o valor é inferior a 420 euros.

 

A segunda, de 17 de Junho, conta a estória de uma “influenciadora digital”, categoria de pessoa que, segundo Carmo Afonso, integra “uma nova face do empreendedorismo” e conta com “…pessoas que vendem marcas e que promovem o seu próprio modo de estar na vida como tendo valor para o colectivo”. Pelos vistos, uma senhora que partilhou a sua experiência como mãe e educadora de uma criança de 3 anos, terá inventado uma forma “deliciosa” de acabar com as birras da filha, metendo a criança em água fria durante um determinado tempo. 

 

Há uma intervenção plástica de Banksy, um mural de 2011, que foi colocado no bairro financeiro Canary Wharf, em Londres, ao lado de um prédio vago dentro de um espaço rectangular para anúncios e onde se pode ler, “Lamentamos. O estilo de vida que encomendou encontra-se esgotado” (no original, “Sorry, the lifstyle you ordered is currently out of stock”). Podia ser quase um manifesto anti-tudo, porque parece por vezes estar tudo ao contrário. 

 

Na vigésima terceira silly season da era pós-moderna em que se tornou a usura neoliberal do século XXI, é bom que se diga que o descanso de notícias que era dantes propiciado ao cidadão, durante os meses de verão, é hoje vilipendiado pela voragem mediática daquilo que mais não é que o espectáculo execrável da propaganda. Que conduz, como é reconhecido por alguns, à mais pura alienação. Lembramos aqui as palavras do saudoso Manuel João Gomes, no prefácio que escreveu para o “Discurso Sobre a Servidão Voluntária” do filósofo francês Étienne de La Boétie: “Hoje, como no tempo de La Boétie e Montaigne, a alienação é demasiado doce (como a coca-cola) e a liberdade demasiado amarga, porque está próxima da solidão. E da loucura”.

 

Após termos ficado “insustentavelmente mais leves” depois da morte de Kundera, apesar do “peso” da sua mensagem, reclamamos algum descanso, praia ou campo, muito sol, que, como diz o Caetano, nos enche …de alegria e preguiça”. Mais vale isso, que alinhar na patetice, apadrinhada pela época ou por aquela sonsice, própria dos que nos tomam por parvos e tontos, mesmo fora da época, ou estação silly

 

20 Julho 2023

Alfredo Soares-Ferreira

Fotografia de Alfredo Soares-Ferreira

 

Alfredo Soares-Ferreira é Autor de várias intervenções, comunicações e publicações relacionadas com Cooperação e Educação para o Desenvolvimento, em Portugal, Angola, Cabo-Verde, Espanha, Guiné-Bissau, Itália, Moçambique e Timor-Leste. É Consultor de Projectos Educativos e de Inclusão Social de algumas instituições, nacionais e internacionais. É membro dos Colectivos  “Porto Com Norte, Fórum de Cidadania”, “Fórum Manifesto”, “Liberdade e Pensamento Crítico” e “Tanto Mar”. É co-Autor de “Portugal, Revolução, Unidade Socialista” (1977), “Bracarenses na crise académica de 1969” (2019) e “Paranhos em Poesia, Antologia Poética” (2021). É Autor de “Reflexos do Rio Torto” (2014) e “Rio Torto- A Nascente” (2021). É Licenciado em Engenharia de Telecomunicações, pós-graduado em Gestão e Estratégia Empresarial e em Administração Educacional. Actualmente aposentado de funções públicas, foi Engenheiro e Professor em diversos graus de ensino, secundário, profissional e superior.




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