Cultura

Crônica: Nélida Piñon e o livro das horas | Raquel Naveira

NÉLIDA PIÑON E O LIVRO DAS HORAS

 

Separei hoje todos os livros de Nélida Piñon (1937-2022), que estavam em minha estante. Muitos livros autografados, sublinhados, vivenciados em meu espírito de leitora que a acompanhava há décadas.

 

Nélida era amiga gentil, fascinante na oratória, fonte de inspiração, modelo de vida dedicada à literatura. A literatura como energia, delírio, aventura. Era arguta na inteligência, simples e sofisticada ao mesmo tempo. Visitou-nos em nossa casa em Campo Grande, numa noite fria e estrelada. Sempre me dizia toda vez que nos encontrávamos: “_Naveira é nome galego. Aquele que constrói naves.” Sim, navegar é preciso, Nélida. É a ordem antiga dos marinheiros fenícios e o mar é a imaginação. 

 

Dentre a pilha de livros, escolho este de capa cor de mármore: Livro das Horas. Os Livros das Horas eram livros de orações que as pessoas consultavam como oráculos para encontrar sentido e consolo para as aflições da existência. No seu particular Livro das Horas, Nélida alia sua capacidade de contar histórias ao patrimônio precioso de sua memória. Logo no princípio ela anuncia: “Não vivi sem resultados, minha vida não foi inóspita.” Família, viagens, leituras, objetos da casa, história, amigos escritores como Rachel de Queiroz, anotações, frases de escriba, declarações de amor à vida e à língua portuguesa, formação literária, mitos revisitados, pequenos arrependimentos, o tempo refletido no espelho, o caráter dramático e emocionado de artista da palavra, tudo está ali, nas horas descritas.

 

A certa altura, Nélida confessa que lê a vida dos santos, as hagiografias, analisando atentamente neles a tentação do pecado e como cada um reagiu diante dos reclamos de sua humanidade, pois não há vida sem pecado, sem deslizes que desagradem a Deus. Justificando o título do livro, Nélida se lembrou de Wilgefortis, a santa mais excêntrica da Idade Média, patrona das mulheres barbadas, condenada à morte por seu próprio pai, um rei luso. Explica ela: “Wilgefortis, por exemplo, cedo ganhou o estatuto de santa. Desconfio que, além dos méritos próprios, pesou a sua estranheza. Lá está ela no Livro das Horas, as folhas iluminadas com o raro esplendor de seu enredo. Ao manusear a página que a ela se refere, seu martírio me é incompreensível. Como compreender a fé que a animava e levou-a à morte? Enquanto penso em seu martírio, esqueço o livro das orações. E não peço por ela e nem por mim. Constato que rejeito a salvação ao preço do horror.”

 

Num outro ensaio, Nélida, em sua discreta elegância, fala sobre seu relacionamento de amizade com o instigante poeta Bruno Tolentino, o autor do Livro das Horas de Sóror Katharina. Bruno, segundo Nélida, “foi belo na juventude, brilhante e atrevido. O espírito atilado e a habilidade verbal afugentavam os passageiros do cotidiano verbal. Uma fúria que ainda persiste.”

 

Sobre um encontro que teve com o questionador poeta Tolentino, ela recorda: “Desejo encerrar o questionário para falarmos do passado de Clarice Lispector e Marly de Oliveira. Quando nós três íamos visitá-lo no sítio, em Jacarepaguá, onde criava galinhas, colhíamos frutas, legumes e ovos, enxotávamos as moscas. No alpendre, saboreávamos o café e as rosquinhas. Na hora do almoço, a comida mineira, que vinha à mesa, era de boa cepa. Ríamos e sentíamo-nos jovens e eternos, na iminência de adquirir um amadurecimento que inevitavelmente envenenaria o nosso futuro.”

 

Durante a visita, Tolentino insiste em fazer perguntas filosóficas e capciosas à Nélida, ela o dissuade de prosseguir, mencionando a poesia dele, o bilhete carinhoso que encaminhara a ela dias antes. Ele aceita o desfecho da entrevista e ela enaltece seus olhos em chama, as memórias que tinham em comum. Nélida constata então que todos, Tolentino, Clarice e Marly, já se foram. Ela é a única sobrevivente. E chora.

 

O Livro das Horas de Nélida Piñon nos mostra que quando nos entregamos a um ofício e ao aprendizado do amor “as horas não passam em vão.”

 

Fecho a capa cor de mármore. Conheci Nélida e Tolentino. Li Clarice Lispector e Marly de Oliveira. Sou eu agora a única sobrevivente. “Vou morrer e nada sei”, escreveu Nélida. Choro.

 

RAQUEL NAVEIRA

 

Fotografia de Raquel Naveira

A escritora Raquel Naveira é brasileira, nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Título de Doutor em Língua e Literatura Francesas pela Faculdade de Nancy. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP). Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE)  e na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade. Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis. O mais recente é o livro de crônicas poéticas LEQUE ABERTO (Guaratinguetá/SP: Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal “O TREM” (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Ciências e Letras de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.



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