InComunidade

EDITORIAL: A dissonância | Alfredo Soares-Ferreira

[Editorial de Fevereiro 2024 – Revista InComunidade]

 

Da interpretação formal da ausência de harmonia, ou acordo entre ideias, à concepção psicológica, que a classifica como uma perturbação, a dissonância está normalmente associada a uma atitude, ou seja, a um compromisso entre as vertentes afectiva, cognitiva e comportamental. Quando ele (compromisso) está em equilíbrio, a atitude existe. No caso contrário, entramos no domínio da dissonância cognitiva.

 

Pode ser aplicada na vida corrente, nas relações interpessoais e nas linguagens, escrita, falada  e musical. A passagem para a esfera política é uma outra margem, uma possibilidade de interpretação da falta de concordância.

 

O psicólogo francês Pierre Weil, um conhecido educador que apostava numa visão holística e transdisciplinar do conhecimento, publicou em 2003 uma obra intitulada “Normose, a patologia da normalidade”. O conceito de “normose” foi introduzido pelo antropólogo brasileiro Roberto Crema e pelo psicólogo francês Jean-Yves Leloup, na década de 90 e define uma espécie de patologia que tende a condicionar o próprio comportamento, no sentido de levar o cidadão a seguir a “norma”, ou seja, o conjunto de condutas tidas como “habituais” em termos sociais. O condicionamento deriva da suposta conclusão de que, se a maioria se comporta assim, esse comportamento é tido como o mais aceitável e, portanto, não deve ser questionado.

 

Associados àquela patologia, estão outras, como é o caso da designada “cibernose“, criada pelo psico-sociólogo francês, Van Bockstaele, para situar efeitos de atrofias de funções humanas e perturbações nas relações interpessoais devidas ao uso indevido, ou exagerado, dos meios informáticos. Um exemplo evidente, são as situações de ansiedade e pressão associadas à necessidade urgente de respostas imediatas às mais variadas solicitações.

 

O início de um novo ano tende a ser visto como portador de novidades, muito embora os tempos da modernidade do século XXI, nos tenham habituado a mais consonâncias, a saber, o designado “mais do mesmo”, afinal a continuidade do perverso sistema neoliberal. E assim, as pretensas novidades, são a obrigatoriedade da aceitação tácita das regras e normas que reforçam as desigualdades e cimentam a precaridade das condições de vida dos trabalhadores. E, se pior pudesse acontecer, tudo é feito em nome da harmonia e da concordância entre as partes, ou seja, da consonância.

 

Um conselho simples para 2024 poderia ser cultivar a dissonância. Lançar a semente, tratar do “produto” e colher possíveis frutos. Assimilar a ideia como um primeiro e necessário passo para a mudança social, um elemento de rompimento de consistência, no sentido que lhe atribui Habermas, quando diz que a participação dos cidadãos, nos países ocidentais, é uma falácia, por não significar modificações na deliberação. A jornalista canadiana Naomi Klein alerta-nos, na sua obra de 2017, que “Dizer Não, Não Basta” e que é necessário “Resistir às novas políticas de choque e alcançar o mundo de que necessitamos”, no apêndice ao título do livro.

 

Seremos realmente dissonantes em 2024? Poderemos, por exemplo, esperar alguma dissonância de Pedro Nuno, no Partido Socialista? E ainda, poderemos almejar nas Esquerdas alguma dissonância, traduzida num novo discurso e numa nova atitude? Sabendo que não basta a defesa e a reacção aos ataques de uma Direita que quer voltar ao passado, através de uma “aliança” ressabiada e completamente presa à sua prestação ao serviço dos capatazes europeus, a quem entregaram o País. E que dizer da sua interpretação daqueles que, sem possibilidades, viviam supostamente acima delas? A tomada de consciência dissonante poderá gerar espaços de diálogo e novas atitudes de denúncia do que não está bem e pode (e deve) ser descontinuado e simplesmente, substituído. E, a partir dessa tomada de consciência, o nosso maior desafio será impulsionar e dinamizar mecanismos de percepção e auscultação, para que se mantenha sempre viva a chama da intervenção crítica.

 

Na música, quanto mais próximas estiverem as duas notas, maior é a dissonância. Esta forma de arte que nos consola, traz-nos algum sossego na raiva aparentemente dissonante do saxofonista Sidney Bechet. Seja a ideia de libertação, o sinal supremo de dissonância para o novo ano.

 

21 Janeiro 2024

Alfredo Soares-Ferreira

Fotografia de Alfredo Soares-Ferreira



Alfredo Soares-Ferreira é Autor de várias intervenções, comunicações e publicações relacionadas com Cooperação e Educação para o Desenvolvimento, em Portugal, Angola, Cabo-Verde, Espanha, Guiné-Bissau, Itália, Moçambique e Timor-Leste. É Consultor de Projectos Educativos e de Inclusão Social de algumas instituições, nacionais e internacionais. É membro dos Colectivos  “Porto Com Norte, Fórum de Cidadania”, “Fórum Manifesto”, “Liberdade e Pensamento Crítico” e “Tanto Mar”. É co-Autor de “Portugal, Revolução, Unidade Socialista” (1977), “Bracarenses na crise académica de 1969” (2019) e “Paranhos em Poesia, Antologia Poética” (2021). É Autor de “Reflexos do Rio Torto” (2014) e “Rio Torto- A Nascente” (2021). É Licenciado em Engenharia de Telecomunicações, pós-graduado em Gestão e Estratégia Empresarial e em Administração Educacional. Actualmente aposentado de funções públicas, foi Engenheiro e Professor em diversos graus de ensino, secundário, profissional e superior.

Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
1
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:InComunidade