Durante milénios, a humanidade pertenceu a um imaginário coletivo em
que o sujeito universal era o Homem. Apesar de estudos sobre papéis
sexuais (Talcott Parsons,1956), o papel majestático e de poder da figura
masculina não se punha em causa.
Os estudos sobre os homens só se projetaram após o desenvolvimento
dos estudos feministas (Aprender a Ser Homem. Lígia Amâncio. 2004).
Muito mais tarde descobriu-se que a sexualidadeé fluídae que os géneros
feminino ou masculino se encontram em construção.
A nomeação da homo ou da heterossexualidade não é apenas social ou
cultural, mas política.
Os estudos tradicionalistas das diferenças entre sexos encontram-se
baseados em estereótipos.
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, diz a célebre frase: “Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher”.
Beauvoir abriria o caminho para o conceito de género enquanto
construção social e cultural.
Com as tendências do pós-modernismo, cada vez mais se questiona o
estatuto de mulher enquanto estádio imutável.
Oconceito degénero não se desligados conceitos deraçaouetnia,classe
social e enquadramento histórico.
Toda a nossa linguagem é sexuada. Diz Susan Bordo que “Quer nos
agrade ou não, na cultura presente as nossas actividades são codificadas
como masculinas ou femininas e funcionarão como tal no sistema
prevalecente das relações de poder entre os sexos” (1990). (Francesca
Rayner, in Dicionário da Crítica Feminista. 2005).
Os feminismos tradicionais realçam a maternidade, a importância de uma
ética e de uma moral específicas.
Os feminismos pós-modernos representam essa tal rutura com os
feminismos mais antigos.
Em França, as teses de Luce Irigaray visam já a construção de um
feminino bem longe das lógicas masculinas dominantes (Maria Luísa
Ribeiro Ferreira, in Dicionário da Crítica Feminista. 2005).
O branqueamento da homossexualidade enquanto performance é a
recusa da politização do ser homossexual. Como todos os grandes
movimentos inovadores, a construção da homossexualidade é um grito
político em torno de uma maneira diferente de estar no mundo, de
questionar os poderes estabelecidos, de propor uma alteridade à
heteronormatividade absoluta.
Esta homossexualidade enquadra-se nos movimentos pós-materialistas,
numa problematização sobre papéis sociais, ambientais, organizações
políticas, questões de raça, transgenderismo, novas abordagens sobre o
corpo.
Há muito medo na sociedade portuguesa. Sociólogos, sexólogos e
psicólogos clínicos lideram os grandes questionamentos sobre a fluidez
dos géneros. São estudos académicos que raramente chegam ao público
comum.
Na imprensa, há muita discussão sobre estas novas conceções. António
Guerreiro, Eduardo Pitta, Ana Luísa Amaral e Miguel Vale de Almeida são
os articulistas que melhor desempenham a função de críticos e
especialistas das sexualidades alternativas, fluidas e políticas.
Porquê políticas? Quando uma pessoa chega a um grupo para jantar, se
é heterossexual, pertence ao universo moral da razão construída desde a
pré-história até à atualidade. Sobre essa pessoa não se nomeia a
sexualidade senão nos possíveis parceiros heteros que for conhecendo.
Imaginemos o contrário. Um gay vai jantar com um grupo de amigos. Os
outros são heteronormativos, mas “tolerantes”. O gay agradece a
“tolerância”. À partida, dele próprio, quando é nomeado pelo Outro, diz-se
prontamente a sua orientação sexual. Os amigos intelectuais “toleram” e
“gostam” daquele ser estranho. Em meios mainstream, é olhado de
soslaio. Quase que pede perdão pela sua orientação sexual e os
paradoxos e, em volta dessa orientação, resolvem-se em piadinhas e
risos. É notória a presença, algo alcoviteira, da melhor amiga hetero do
gay. Fica feliz em encontrar parceiros possíveis para o seu amigo
“esquisito”. Essa amiga propagandeia por todo o lado que tem um amigo
gay, que é um “querido”. Os homens, na sua majestade, calam-se,
reservados. As mulheres, por sua vez, querem todas conhecer o gay de
serviço. Esta é a situação atual do gay nas sociedades democráticas e
liberais.
Noutras sociedades, o gay é morto, espancado ou preso. Os grandes
fundamentalismos religiosos odeiam gayse lésbicas,e mesmo as religiões
mais tépidas só “aceitam” desde que haja uma confissão do “pecado”.
Um pequeno excerto de uma história em Londres. A Gay Liberation Front
(GLF) constituiu-se em 1970.
Em Inglaterra, como na maior parte dos países, a medicina classificava a
homossexualidade como uma doença com presumível cura. Os Estados
rotulavam-nacomo antinaturale indecente.As Igrejascondenavam-na.Os
heterossexuais perseguiam e reprimiam os gays. Os próprios ativistas da
GLF disfarçavam-se de heteros para conseguirem alguma aceitação.
Até que, inspirada pelo slogan Black Power, surgiu com o slogan Gay is
Good!
Havia imensos heteros piedosos que ficaram horrorizados com este
slogan.
Foram organizadas manifestações em bares que recusavam a entrada de
gays e lésbicas. O psiquiatra Hans Eysenck defendia os eletrochoquespara a cura de semelhante mal.A GLF crioua primeira linha
telefónica de apoio a homossexuais, um serviço psiquiátrico e um jornal.
(Peter Tatchell. QX Mardi Gras Day Guide. 2000).
A assunção da masculinidade nunca foi fácil no centro de
questionamentos de sexualidades. O símbolo do macho man, nos anos
50, era John Wayne ou o homem que fumava Marlboro. Nos anos 70, na
androginia dos trajes femininos e masculinos (Jeans e camisas coloridas),
houve uma réstia de esperança para que a heteronormatividade se
autoquestionasse e outros modelos pudessem fluir. Pura ousadia hippie.
Os anos 80 iniciaram o fim das androginias dos anos 70.Começavam,nos
media, as publicidades femininas para uma mulher feliz: enamorada,
casada, branca, “emancipada”, com bebés e eletrodomésticos.
Os homens, viris, seguros, sempre prontos para uma conquista, iniciaram
um percurso de “embelezamento” que vai até à depilação total dos dias de
hoje e os peitorais alargados que os jogadores de futebol exibem.
Sabe-se de algum caso desviante no futebol? Há muitos anos, na
passagemdo séculoXXpara o XXI,suspeitou-se deumcaso emPortugal.
Os jornais e as televisões explodiam.Os “pecadores”tiveram de se afastar
das luzes da ribalta, apresentar esposa e filhos (traços de masculinidade
segura) e, com o passar das memórias, cada um seguiu o seu percurso,
anonimamente.
Em Portugal, nos dias de hoje, sobre as masculinidades não pode recair
uma dúvida. As mulheres, se solteiras, ou têm namorado ou são
“estranhas”. Se, por acaso, vivem em par numa casa, está assumido o
escândalo.
Desde 2010que os homossexuais se podemcasar civilmente, mas,se por
hipótese um homossexual for pai biológico de um menino, por morte do
pai a criança não é entregue ao cônjuge. Fica com uma avó, com uma tia
ou numa instituição social, se a mãe biológica não estiver presente.
Recentemente falou-se do caso de Fabíola Cardoso, com dois filhos
biológicos e portadora de um cancro. A cônjuge, com quem ela partilha as
crianças, não existe legalmente na relação com os filhos.
Os partidos políticos que negaram a coadoção tiveram uma atitude
política. Não se trata de uma “escolha” entre um homem e uma mulher.
Trata-se da vida de crianças. Trata-se de uma restrição abusiva em
relação aos homossexuais que têm os seus filhos biológicos.
Se uma lésbica quiser engravidar, tem de exibir o seu parceiro homem. À
lésbica não se reconhece a reprodução medicamente assistida. A lésbica
é uma cidadã de segunda. O gay, ao não poder ser pai de pleno, é um
cidadão de segunda. Não é por acaso que os políticos mais à direita no
espetro partidário, se querem ausentar, entre pingos de chuva, desta
decisão política.
Sobre as Igrejas já sabemos. Os homossexuais têm de se manter castos
e em casal, o mais “puros” possível.
Enquanto a publicidade erótica submete os heterossexuais a um clima
orgásmico tirânico, os “outros”, os que não se nomeia por serem cidadãos
de segunda, deverão remeter-se ao anonimato e ao silêncio.
O erotismo é sempre perspetivado pelo olhar universal, ou seja, o
masculino. Nesse olhar podem coexistir desde o par heteronormativo ao ménage à trois: duas mulheres rodeando um homem, na mesma cama.
Trata-se de uma fantasia masculina muito erotizada.
Os cidadãos de segunda, além da menoridade, são considerados
promíscuos.
Em 2015 ainda não se ultrapassou esta milenar fórmula heteronormativa
dominante.
“Masculinidade e feminilidade constituem formas de pensar,
dizer e fazer, socialmente construídas em diversos planos da
vida em sociedade, incluindo os das relações entre homens,
entre mulheres e entre homens e mulheres”.
(Aprender a ser Homem. Lígia Amâncio. 2004)
Inimigos da inovação são os mitos populares baseados em
arquétipos e que incidem biologicamente sobre a interligação de
fêmeas e machos. As vulgatas cientificistas sobre macacos, abelhas
ou formigas condicionam-nos para uma harmonia universal baseada
na reprodução e na procriação.
Os estudos feministas conseguiram, por entre as poeiras, trabalhar
muitas questões.Os estudos sobre a masculinidadeesperarammuito
tempo pela revista especializada Men and Masculinities, fundada em
1999 (Aprender a ser Homem. Lígia Amâncio. 2004).
Antes da “invenção” da homossexualidade havia o sodomita, a quem
era atribuído um determinado ato sexual. Seguiu-se-lhe o
homossexual, que é uma espécie de categoria da natureza humana.
Uma perversão. Uma extravagância. Uma menoridade biológica
(Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010)
Freud não considerava a homossexualidade biológica. Considerava-
a social.
Nos anos 50, Kinsey propôs escalas intermédias entre
homossexualidade e heterossexualidade. (Sexualidades em
Portugal. Sofia Aboim. 2010)
Os Essencialistas veem a identidade como inata e fixa. Os
Construcionistas, além de verem na sexualidade um produto de um
processo de construção social, veem a homossexualidade e
heterossexualidade como dimensões fluidas, mutáveis e
contingentes ao longo da vida. (Sexualidades em Portugal. Sofia
Aboim. 2010).
Os estudos queer interpelam o que é ser desviante ou normal, dado
que há um continuum, fluido, na sexualidade de cada um.
(Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010).
Butler, em Gender Trouble (2004), desmonta completamente os
rituais fabricados do feminino e do masculino.
“A diferença sexual precisa de ser materializada em
corpos e actos para “existir” realmente enquanto diferença
social.”
Sofia Aboim
A masculinidade hegemónica estende-se às instâncias do social, do
cultural e do político.
Existem masculinidades mais hegemónicas do que outras.
Masculinidade não se confunde com um determinado papel sexual
masculino (Aprender a ser Homem. Lígia Amâncio. 2004).
Para problematizar, vejamos a opinião de Miguel Vale de Almeida
(Teoria Queer e a Contestação da Categoria “Género” in Estudos
Gays, Lésbicos e Queer. 2004):
“EmPortugal,asnoções de comunidade,cultura,epolítica
homossexual, precisariam de avaliar os três estádios do
movimento (homofilia, gay e queer) e proceder ao
bricolage conceptual e estratégico que a situação
portuguesa de semi-periferia e atraso estrutural permitem
(…), em vez de subscrever um modelo
desenvolvimentista, (…)”
A questão da semiperiferia do estádio gay e queer em Portugal faz algum
sentido.
Quando Sofia Aboim, num vasto espetro de questionário sociológico,
percecionou que, num universo de mais de 3 500 inquiridos, somente 0.5
% de mulheres e 0.9 % de homens declararam a sua homossexualidade
(havendo cerca de 5 % dos indivíduos que declararam bissexualidade),
concluímos o peso profundo da heteronormatividade na sociedade
portuguesa. (Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010).
As ensaístas Ana Luísa Amaral e Gabriela Moita referem a emergência,
nos anos 90, do movimento LGBT, bem como a legislação de março de
2001sobrea regularização das uniões defacto.Mas asmesmasensaístas
não esquecem que, em 1995, acerca da homossexualidade, o político
católico António Guterres disse que era um assunto que não lhe agradava
particularmente (Público. 17 de setembro de 1995).
O próprio Cavaco Silva, interrogado sobre o casamento entre
homossexuais,considerava essa situação não adequada numa sociedade
em que o casamento é a génese da verdadeira família (Visão. 21 de
dezembro de 1995).
Em 1997, no Ministério da Administração Interna, os homossexuais não
poderiam ser polícias por serem anormais sexuais, invertidos e
personalidades psicopáticas. (Como se faz (e se desfaz?) o armário. Ana
Luísa Amaral, Gabriela Moita. 2004).
Num inquérito à população portuguesa, datado de 1997, 69 % rejeitavam
os casamentos homossexuais e 50 % ainda viam na homossexualidade
uma doença (Visão. 26 de Jjnho de 1997). Nesta mesma lógica, os
terapeutas portugueses apresentamuma homofobia interessante doponto
de vista analítico.
Nos dias de hoje, com o desenvolvimento do movimento LGBT, já existem
alguns terapeutas com um olhar neutro em torno das alteridades. Mas, o
conceituadíssimo sexólogo e psiquiatra Allen Gomes, numa obra que mais
tarde destacaremos, apresenta um paternalismo empático para com as
minorias.
A homofobia é tão fortemente enraizada nesta sociedade que até os gays
e as lésbicas interiorizam essa mesma homofobia.
Aquando dos dias do Orgulho Gay, sabemos de muitos homossexuais que
repudiam as manifestações coloridas e entusiásticas, travestizadas, de
algumas centenas de pessoas.
Numa cultura fortemente patriarcal, e à medida que nos aproximamos dos
anos 20 do século XXI, há mais individualismo e interação com as
tecnologias, e cada vez mais afastamento de várias camadas da
população em torno da política, dos partidos, dos ideais politizados.
Nuno Carneiro e Isabel Menezes vão mais longe no isolamento dos
homossexuais no seio de um público normativo. Falo da “camuflagem, do
faz de conta ou da vida dupla a que a ausência de modelos positivos e
encorajantes, (…) possivelmente violentos, a que se vota frequentemente
esta “minoria escondida”, assim designada por Fassinger (1991) ao
sublinhar que a “invisibilidade se deve a uma rede complexa de atitudes
sociais negativas e estigmatizantes” (Paisagens, Caminhos e Pedras.
Nuno Carneiro e Isabel Menezes. Estudos Gays, Lésbicos e Queer. 2004).
Para McIntosh, muitos homossexuais aceitam e suportam a
homossexualidade como uma condição. De menoridade, pensamos nós.
De menoridade,de falta de autoestima,de depressão face ao preconceito.
As normas identitárias no domínio do género (o gay é menos masculino, a
lésbica é menos feminina), podem ser uma tirania. (Paisagens, Caminhos
e Pedras. Nuno Carneiro e Isabel Menezes. Estudos Gays, Lésbicos e
Queer. 2004).
E os silêncios? O silenciamento é opressivo, tal como os ruídos que o
homossexual ouve à sua volta.
Falámos há pouco de cidadania de segunda. A exclusão, a desproteção,
as ambiguidades, contornam o finissecular século XX para o XXI.
O casamento civil, em 2010, foi uma primeira proposta de inclusão.
Os discursos oficiais sobre feminino/masculino são de um basismo
confrangedor: ao feminino associa-se, além da passividade, a beleza, a
fragilidade, a eroticidade, a juventude e a aposta numa futura Mãe. Em
relação ao masculino, pretende-se um homem viril, não importa a idade,
com status, ironia, culto, charmoso.
Se um homem é casado não importa, se olha detalhadamente o corpo de
outras mulheres é “natural”.
Uma mulher casada, mesmo no século XXI, não vai sozinha a um bar:
junta-se com um grupo de amigas para apreciar um ambiente,
comentando, quase sem olhar, um ou outro elemento masculino. A
masculinidade cúmplice, com uma estrutura global de poder e as
chamadas “diferenças” entre sexos tem de ser contestada, visando uma
masculinidade que coexista com uma feminilidade (Aprender a ser
Homem. Lígia Amâncio. 2004).
A sociedade portuguesa, com a sua proclamada “tolerância”, integra no
centro as várias margens. Desse centro à invisibilidade dessas mesmas
margens vai apenas um passo (Crueldade e Crueza do Binarismo. Teresa
Levy. Estudos Gays, Lésbicos e Queer. 2004).
O espaço da masculinidade dominante é ocupado pela profissão fora de
casa. Por exemplo, nos dias de hoje, com o desemprego acentuado, há
homens que se sentem menorizados ao não ocuparem o tempo fora de
casa e estando sujeitos a depressões silenciadas, porque um homem não
foi feito para estar dentro da habitação.
Há um outro traço da masculinidade que normalmente se evita referenciar:
como a masculinidade é dominante e os homens detêm “poder”, muitas
mulheres abusam psicologicamente de muitos deles, e ainda são
assediados moralmente. A atitude masculina do silêncio e da vergonha de
afirmara condiçãodevítima (doméstica ououtra)deixa os homens frágeis,
recorrendo, sem dizer a ninguém, a um antidepressivo de ocasião, até
porque um homem não chora.
A masculinidade de domínio tem esse lado perverso. O homem ocupa o
espaço público, mas na intimidade tem medo de uma performance menos
boa, tem medo de não ser aceite pelos pares, tem medo de assédios de
chefias e não sabe com quem comentar ou desabafar.
Se a feminilidade e a masculinidade fossem, para além de trajetórias
diferenciadas, lugares, eles próprios investidos de poderes não
hegemónicos, os homens libertar-se-iam do tirânico estatuto de ser
homem.
A linguagem entre pares, quer na masculinidade quer na feminilidade, é
um agregador e difusor de estereótipos. Tolson (1983), num projeto de
estudos que recorreu a entrevistas, realçou um pequeno discurso de um
talhante inglês (António Manuel Marques. Os Trabalhos da Masculinidade
in Aprender a Ser Homem):
“Todos os carniceiros são iguais. Quando você os vê
reunidos, são sempre os mesmos motivos de conversa – o
sexo, as mulheres, está a ver? Falamos em calão o dia inteiro
(…) o sexo vem à baila o dia todo”.
Tolson, 1983
Os discursos da feminilidade são referentes à forma como se seduz os
possíveis namorados,as maternidades,as melhores Bimbys e Nespresso,
sonhos e fantasias de enamoramentos impossíveis, mas o sexo enquanto
prática está ausente.
Os anos 70, no decurso dos hippies e de Woodstock, foram anos de
mudanças. Falou-se da crise da família. Ariès, em 1973, referia que
durante os séculos XVII e XVIII não havia uma função afetiva de família.
Existia, sim, um homem fora a trabalhar nos campos e a mulher em casa
a construir os quotidianos das refeições, das vastas proles, dos
convidados, enfim, das sociabilidades privadas.
A emersão do amor romântico surge mais para os fins do século XIX,
quando os casamentos, alguns, deixaram de ser um compromisso de
heranças entre duas famílias.
E hoje? Com a total “liberdade” de escolher quem quisermos não é bem
assim. Uma rapariga branca que apresente o namorado negro à família
burguesa, preconceituada, no quadro da mentalidade portuguesa, é um
drama existencial,é a parentalidade a exercer pressões, é o racismo, esse
profundo mal que o Ocidente ainda não resolveu, que predomina sobre
todos os outros aspetos.
Liberdade? Só entre pares, classes sociais, as mesmas, nada que possa
coagir e amedrontar a parentalidade, também ela conservadora e muito
pouco amiga de desvios.
E se, por um mero acaso, um rapaz leva o melhor amigo, entretanto
namorado, para jantar no espaço da família perfeita? O pai fica logo
assustado, sem ainda saber do que se trata. A irmã pergunta ao nosso
protagonista se o amigo é um “bom partido”, a mãe, mais atenta, reprime-
se toda para não chorar copiosamente com o “drama” que se irá
desenrolar. Sair do armário falando à família e apresentando o
companheiro de uma forma “natural”. Tragédia. O pai, para não se
confrontar com a alteridade do filho, ausenta-se rapidamente. A irmã, que
já desconfiava, coloca-se a um canto manobrando o smartphone
furiosamente. Resta a mãe, que olha com tristeza para aquele par,sempre
com a esperança que tudo seja efémero e que o filho reencontre o
“caminho”.
Não há praticamente nenhum homossexual que não saiba o que é sair do
armário junto da família mais próxima.
Registei, há bocado, um caso simples, sem gritos, sem violência.
Mas vamos para uma família de ciganos com as milenares tradições que
os caracterizam. Duvido que um cigano homossexual se atreva a dizê-lo
à família. Provavelmente fugirá da cidade ou do país, em busca, não de
aceitação, mas da celebérrima “tolerância”.
Coloquemos um outro caso: uma filha proveniente das maiores famílias
portuguesas apresenta a namorada junto do pai banqueiro e da mãe com
título monárquico. Obanqueiro até podeser cínico,a mãe nobiliárquica diz
à filha para ela fazer um casamento de conveniência, deixar um herdeiro
e ter simultaneamente, em anonimato, uma namorada.
As parentalidades conjugadas desde a infância até à juventude estão
despertas e vigilantes acerca de alguns desvios dos seus filhos.
No casodos meninos,se andamdesdepequeninos a brincarcombonecas
e a gostar de vestir roupa feminina, os próprios pais os colocam no
terapeuta normativo que tentará “salvar” aquela alma.
A menina-rapaz, apesar de tudo, sofre menos na infância e na
adolescência que o seu amigo das roupas femininas. É que a
masculinidade dominante coloca o rapaz com a sua playstation, corridas
de carros e jogos masculinizantes e a rapariga/arrapazada, pensa a
família, é uma fase a que logo se seguirá o enamoramento por um
“intelectual”, após o que virá um enlace abençoado.
Nos locais de profissão, os homossexuais raramente saem do armário,
com medo de percalços ou mesmo do desemprego.
Nos núcleos deamizade,os chamados heterossexuais tolerantes admitem
um ou outro amigo gay. Não há mulher heterossexual que não conheça
um amigo gay: faz parte da “fauna”. O branqueamento da
homossexualidade através das pequenas “tolerâncias” ajudam as
masculinidades dominantes a reproduzirem-se e a conduzirem as
margens para o centro.
A sexologia trabalha muito a homossexualidade. Nada melhor do que ler
o sexólogo e psiquiatra Allen Gomes na obra Paixão,Amor e Sexo (2004).
Em 1999, a revista Science refere a descoberta do gene gay.
“Os próprios dados genéticos sugerem a necessidade de ter
em conta importantes factores de ordem ambiencial para o
eclodir de um determinado comportamento, normal ou
patológico”.
Allen Gomes
Mais um case study que o sexólogo refere: dois gémeos homozigóticos,
em 1966. Um dos gémeos no decorrer da operação fica sem o pénis. Os
médicos aconselharam os pais a educar o menino sem pénis como uma
menina.
O bizarro da situação é que o médico mostrava fotografias pornográficas
aos gémeos para que cada um soubesse do papel masculino e do papel
feminino e incentivava os pais dos gémeos a copularem em frente do
menino/menina para que se habituasse na respetiva distinção de papéis.
O médico em questão demonstrava o primado do ambiente sobre a
natureza.
Mas, em 1979, a BBC investigou e o menino/menina tinha atividades
claramente masculinas e não se adaptava ao género feminino.
Retornemos à história. Aos catorze anos, depois de iniciadas terapias com
estrogénio, o menino/menina sentia-se rapaz. Conseguiu finalmente a
reatribuição do tão ambicionado sexo masculino. Nunca apresentava
amigos ou amigas, e aos 25 anos casou com uma mulher muito mais
velha, adotando os seus três filhos (Paixão, Amor e Sexo. Allen Gomes.
2004).
O sexólogo Allen Gomes é a favor dos fatores hormonais pré-natais no
género masculino ou feminino. Resumindo: é a natureza que manda.
Como ficamos? Construção social e cultural ou biologia e natureza?
A Sociologia opta pelo Construcionismo. A sexologia, e muita da
psiquiatria, pelo Essencialismo. Aliás, estas predisposições “naturais” são
um sossego para as masculinidades dominantes.
Continuando com Allen Gomes em torno do travestismo e do
transgenderismo, “O travesti tem uma identidade e orientação sexual
típicas do seu sexo, mas que se veste e comporta socialmente como o
outro sexo.”
Allen Gomes
Na obra The Well of Lonelyness, de Radclyffe (1928), a personagem
principal é uma lésbica que se quer passar por homem. Compra fatos e
sapatos masculinos, num alfaiate, o que suscitaria dúvidas sobre a sua
verdadeira sexualidade. Essa lésbica vivia com a sua amante e partilhava
um círculo de mulheres modernas onde se realçava a roupa masculina.
Virgínia Woolf,emOrlando(1928),remete a roupae o traje para algomuito
mais esconso. Orlando ia mudando de sexo e daí os respetivos trajes. O
chamado fato completo feminino poderá institucionalizar um certo
travestismo feminino. As feministas dos anos 70 veriam com escárnio
estas representações.
A ensaísta Butler, ao referir Tootsie (1982) e Some Like It Hot (1959), diz
que o travestismo não é uma mera imitação, dado que a
heterossexualidade hegemónica é ela própria uma imitação da sua
idealização (Gender Trouble. J. Butler. 1990. Travestismo in Dicionário da
Crítica Feminista. Francesca Rayner.2005).
No artigo de Nelson Alves Ramalho (e outros. Género e Vulnerabilidade:
Intervenção com Travestis em contexto de Prostituição de Rua in Coming-
out for LGBT. 2010) as travestis são trabalhadoras do sexo, muito na base
da prostituição de rua. Ora, Allen Gomes nem sequer vê no travesti a
possibilidade de ser uma prostituta. Pelo contrário, a história natural de um
travesti é evoluir de um comportamento privado para um comportamento
público. Ao travestismo privado, classifica-o como uma parafilia, e ao
público classifica-o como uma perturbação da identidade do género
(Paixão, Amor e Sexo. Allen Gomes. 2004).
O caso de Gisberta, que foi morta violentamente por um grupo de rapazes
homofóbicos, transporta-nos para uma realidade quase invisível: as
travestis e as pessoas transgénero.
AllenGomes diz que os transgenderque não modificamos órgãos genitais
são como drag queens. São mulheres com pénis (Paixão, Amor e Sexo.
Allen Gomes. 2004).
As travestis que investem na prostituição em Lisboa, num contexto de rua,
têm fortes possibilidades de estarem infetadas com a SIDA.
(Nelson Alves Ramalho e outros. Género e Vulnerabilidade: Intervenção
comTravestis emcontextodeProstituiçãode RuainComing-outforLGBT.
2010).
Continuando com o trabalho de Nelson Alves Ramalho e outros, num
inquérito a 66 travestis, cinco eram mulheres cissexuais, das que se
representam como travestis, dividem-se em dois grupos: o primeiro não
ingere hormonas nem silicone e apenas adotam a linguagem do meio; o
segundo grupo, embora mantenha o pénis, através do silicone e
intervenções cirúrgicas apresentam-se como mulheres. Nesse inquérito,
as travestis foram previamente homens. (Nelson Alves Ramalho e outros.
Género e Vulnerabilidade: Intervenção com Travestis em contexto de
Prostituição de Rua in Coming-out for LGBT. 2010).
Uma das travestis, no âmbito do inquérito, disse:
“O homem quando vem à procura de uma travesti não vem à procura
de cona. Vem à procura do pau. Não querem cá já operadas. A
fantasia de um homem que vem à procura do travesti é o corpo
feminino,a maneira de a gente de vestir,calçar;as pinturas e …aquilo
que temos escondido. Os clientes perguntam és operada?, tens
picha? Se tens picha, eles querem. Se não tens, já não querem.
Entendes?”
(17 de fevereiro de 2013 in Género e Vulnerabilidade)
No referido inquérito acrescenta-se a vulnerabilidade da proteção sexual,
visto que a maior parte dos clientes não apreciam preservativos e gostam
de tudo ao natural.
Outra questão colocada, nesse âmbito, é o relacionamento afetivo das
travestis com os namorados. Diz uma travesti:
“O meu companheiro é heterossexual! (…) uma das minhas
exigências enquanto meu homem é isso. Passivos, por favor não!
Sou só eu. (…) passiva sou eu na cama. (…) O meu companheiro
nunca viu o meu sexo. Nunca tocou. (…)
(Catherine, 12 de março de 2012 in Género e Vulnerabilidade).
No interessante inquérito que continuamos a seguir, outras
vulnerabilidades se acrescentam: o consumo de bebidas alcoólicas e
drogas. Como se reforça, muitas travestis recorrem ao silicone realizada
por “bombadeiras”: a “bombadeira” é a travesti que ajuda as colegas e
amigas na transformação corporal, através do silicone. (Nelson Alves
Ramalho e outros. Género e Vulnerabilidade: Intervenção com Travestis
em contexto de Prostituição de Rua in Coming-out for LGBT. 2010).
Claro que existe o acompanhamento médico para as travestis que podem
esperar, às vezes, anos. O sistema clandestino traz gravíssimos riscos
para a saúde, mas, como de costume, não há uma preocupação pública
em relação às travestis ou aos transgender.
Voltando a J. Butler (Gender Trouble. 1990), numa análise que faz do
fenómeno drag (travestis no masculino e feminino) e de passing (homens
passando na sociedade por mulheres e vice-versa), permite à teoria queer
estabelecer fronteiras cada vez mais fluidas entre sexo, sexualidade e
género.
A teoria queer não aprova qualquer naturalidade biologizada do género e
da sexualidade.
Probyn e Groszapelam a que queerse transforme em verbo: queeringtem
mais a ver com um trabalho em evolução.
No universo queerchama-se cada vez mais a atençãopara as afetividades
e os simbolismos. Daí a rotura dos queer com os feminismos mais
conservadores. Em Portugal, a teoria queer ainda não tem expressão.
(Francesca Rayner, in Dicionário da Crítica Feminista. 2005)
Mas retornando a Allen Gomes e à questão da violação. O que a
caracteriza é a violência de um ato sexual, exercido por um ou mais
homens, sobre uma mulher apanhada de surpresa. O psiquiatra fala de
outro tipo de violação: realizada por amigos ou namorados que querem ir
pela força até ao fim das relações físicas, sem consentimento. (Paixão,
Amor e Sexo. Allen Gomes. 2004).
O psiquiatra refere alguns estereótipos sexuais que as masculinidades
admitem como verdade: quando uma mulher diz não, quer dizer sim;
quando uma mulher consente alguns contactos, tem que se ir
obrigatoriamente até ao fim; as violações existem porque as mulheres são
provocadoras. (Paixão, Amor e Sexo. Allen Gomes. 2004).
Com estes três argumentos reunidos, por serem milenares, torna-se muito
difícil combatê-los nas masculinidades hegemónicas.
O psiquiatra em questão refere um estudo de Mary Koss, nos EUA, em
1988, no qual se concluiu que 15,4 % de mulheres foram violadas e 12,1
% tinham sido vítimas de tentativas. Na sociedade portuguesa, uma em
cada três mulheres será violada física ou psicologicamente por um Outro.
Allen Gomes fala dos efeitos psicológicos dramáticos das violações. Os
violadores não têm propriamente um perfil comum. Há outro tipo de
violadores a que as mulheres se submetem, silenciosamente, às vezes
durante anos, às vezes por toda a vida: a exercida pelos maridos. (Paixão,
Amor e Sexo. Allen Gomes. 2004).
Os investigadores estão a par da violência que a construção social das
masculinidades acarreta.
Nos espaços escolares, as raparigas mais eroticamente apetecíveis, são
assediadas pelos rapazes e, às vezes, pelos professores (Violência
escolar e a Construção Social de Masculinidades. Carlos Barbosa. in
Aprender a ser Homem. 2004).
Tal como nos afirma Carlos Barbosa, as masculinidades requerem ações
organizadas em grupos.
Como nos informou a socióloga Lígia Amâncio, não há uma predisposição
biológica para a violência do género masculino. Há, sim, práticas sociais
associadas a comportamentos de violência, por parte de grupos de
rapazes e de homens. Não há nenhuma essência no ser feminino ou
masculino: há sim, um modo de viver cultural e relacionalmente no
masculino e no feminino.
O espaço escolar é profícuo na construção social do género. No seu
envolvimento existem quatro categorias (Violência escolar e a Construção
Social de Masculinidades. Carlos Barbosa. in Aprender a ser Homem.
2004): 1.ª: relações de poder; 2.ª: divisão do trabalho; 3.ª: padrões
emocionais; 4.ª: simbolização (Violência escolar e a Construção Social de
Masculinidades. Carlos Barbosa. in Aprender a ser Homem. 2004).
Os homens constituem a autoridade e o poder. Os padrões emocionais
escolares relacionam-se normalmente com as sexualidades. Todo o
conhecimento é “generizado”.
Os rapazes definem muito bem o que pretendem incorporar: a autoridade,
o domínio sobre as raparigas. A violência como competição (Violência
escolar e a Construção Social de Masculinidades. Carlos Barbosa. in
Aprender a ser Homem. 2004).
Vejamos o depoimento de uma rapariga de catorze anos:
“Eu acho que os rapazes ou os homens têm uma tendência mais
violenta. (…) talvez porque se calhar, as mulheres crescem um pouco
mais depressa a nível psicológico e mental (…) eu acho que talvez os
homens sejam mais influenciáveis na questão da violência (…). As
mulheres tendencialmente são mais calmas”.
(Violência escolar e a Construção Social de Masculinidades. Carlos
Barbosa. in Aprender a ser Homem. 2004).
Os desportos encontram-se na referenciação da agressividade. Podem
ser um escape. O que interessa aqui expressar é a associação da
agressividade com a masculinidade (Violência escolar e a Construção
Social de Masculinidades. Carlos Barbosa. in Aprender a ser Homem.
2004).
A violência física no espaço público sobre as raparigas não é bem vista.
No espaço privado, no anonimato, tudo é possível. A mulher, mesmo na
publicidade dos media ou na construção cultural que adquiriu, é submissa
e maternal.
Os rapazes, para além de dominadores, predominam no espaço público.
É vulgar que à noite, nas cidades, sejam vistas mais pessoas do sexo
masculino do que do feminino. A noite, com os seus pavores e as suas
marginalidades, é dominada pelas masculinidades, numa relação de
autoridade e domínio.
Os rapazes homossexuais ou de etnias diferentes são postos à margem.
Em Portugal, encontra-se enraizado secularmente o chamado racismo
tolerante. Mesmo aquando das colonizações de quinhentos e durante os
largos séculos colonizadores, a ideia que o português produziu de si
próprio é que não seria racista. Mas o racismo existe.
Nos estudos de género, a abordagem que os media realizam acerca de
estereótipos de representações de masculinidades e feminilidades é muito
interessante.
As mulheres, na publicidade, são muito erotizáveis para vender carros,
perfumes e outros produtos representativos do que o olhar masculino
prefere. Nas séries televisivas já há advogadas, polícias, assassinas, o
que nos leva a pensar que a comunicação social se encontra atenta à
evolução profissional do género feminino.
Nos anos 70, as mulheres eram apenas donas de casa ou secretárias.
A velhice encontra-se praticamente ausente nos meios de comunicação;
quando muito, surgem em programas matutinos, referenciando memórias
passadas, ou atributos de filhos e netos.
Na sociedade ocidental, onde o envelhecimento cresce desmedidamente
e os jovens são cada vez menos,continua a optar-se pelo branqueamento
da velhice e a apologia dos corpos esbeltos, juvenis, apetecíveis.
Quando um determinado filme foca a velhice, vemos que essa película sai
rapidamente de cartaz. A velhice é um estádio de não ser.
Mas, adivinhemos a velhice com o abandono e a homossexualidade, e
teremos o quadro perfeito da solidão, das renúncias, das carências. A
mulher viúva que predomina nos centros das cidades do nosso país vê-se
abandonada nos cafés, com um café e um bolo resistentes e a esperança
que haja um qualquer interlocutor para falar do tempo ou das doenças.
Contudo, consideremos a homossexual envelhecida, sem parceira. Aí,
encontramos a ausência. Se souber manusear a internet, talvez o
Facebook ou um programa de televisão a ponham mais interativa com os
públicos.
A feminização do consumo de programas standard – telenovelas – onde a
base de tudo se encontra na exploração das emoções, absortos que são
os contextos sociais e económicos, é a outra face da feminilidade
enquanto vulnerabilidade.
Outro aspeto importante: desde 1896, nos primórdios do cinema, os
“maus” eram pessoas “incivilizadas”, loucos, negros.
Num estudo feito entre 1975 e 1984, os “pérfidos” eram árabes, negros ou
soviéticos.
Nos dias de hoje os “maus” pertencem sempre a minorias étnicas, árabes,
negros e russos.
As pessoas portadoras de deficiência estão quase tão ausentes como os
velhos. Quando aparece uma pessoa portadora de deficiência recorre-se
a uma cadeira de rodas, para patologizar a questão.
Os homossexuais entram muito devagar nas séries norte-americanas
mainstream e notam-se por efeminações e causarem risos pelo bom
humor que detêm.
Os obesos,que também já entram nas séries deque falámos, tambémsão
portadores de grandes ironias e de uma boa disposição que parece inata.
Se associarmos um gordo que é negro e por sua vez homossexual,
teremos o ranking completo das descriminações a que as sociedades
estão habituadas.
Porexemplo,a muito simpática e agradávellésbica EllenDegeneres:anda
totalmente vestida como um homem, com colete e laço, raramente fala de
homossexualidade, apresenta um sorriso e uma ironia do princípio ao fim
de um programa e exibe, sem problemas, o casamento com outra mulher.
Mas, a imagem que se atribui à lésbica comum é outra: masculina,sempre
de calças ou jeans, mal-enjorcada, cabelos muito curtos, baixa, gordinha,
com umas feições desfeadas, pouco atrativa, antipática, etc.
Como desconstruir esta tão estereotipada imagem da lésbica?
Por oposição, o gay é bonito, veste bem, combina as cores, é magro, alto
e dizem as mulheres “que pena ele ser gay…”
A masculinidade na lésbica assusta sobretudo o género masculino,que se
sente ameaçado por seres tão esquisitos.
As heterossexuais olham com bonomia e condescendência para a lésbica
que conhecem, boa confidente, sempre pronta a ajudar.
Todos estes símbolos apoteóticos do que é o ser feminino ou do que é o
ser masculino necessitam de um reenquadramento social e cultural para
que a individualidade de cada pessoa não seja ameaçada pela linguagem
do “normal” versus “anormal”.
Claro que a internetpoderá ajudarmuito a reconstruirsimbólicas,visto que
os media vulgares e os filmes representam quase sempre o belo, o bom,
numa sociedade que provavelmente nem sequer existe.
Em Portugal, as investidas nas telenovelas portuguesas pelo rasto das
homossexualidades são muito brandas; raramente se apresenta lésbicas,
aposta-se na imagem de gays anjos, que mal se tocam, nem se beijam.
Este é o ponto alto a que se pode chegar numa sociedade
tecnologicamente em paridade com outras, mas eivada de compromissos,
de preconceitos, de homofobias e de racismos.
Nas revistas femininas pressupõe-se desde logo que o leitor é
heterossexual. O relacionamento sexual é “normal”, positivo e desejável.
As jovens devem ser “femininas”, discretas e meigas. A primeira relação
sexual encontra-se dentro do padrão heteronormativo.
As mulheres são pressionadas para um consumismo compulsivo. Dentro
das lojas de moda não há roupas para mulheres obesas.A marginalização
da mulher mais forte confronta-se com uma sociedade em que os modelos
são hipermagros e a obesidade se encontra generalizada. (Corpo e
Imagem. Maria João Cunha. 2014).
Nas últimas décadas a mulher com mais de 30 anos aumentou bastante
de peso. Pelo contrário, as modelos apresentam um grau esquelético que
confronta a mulher comum, colocando-a a caminho de dietistas
fantasiosos e também eles tirânicos.
Confrontemos um pouco os nus femininos ao longo da história (Corpo e
Imagem. Maria João Cunha. 2014): para além da gordura dos nus de
Rubens, a mulher encontra-se sempre reorganizada em torno do peito e
das ancas.
As roupas e os trajes desenvolvem outras linguagens. É a construção da
identidade que está em causa.
“à medida que se avançava do século XX para o século XXI, o
sujeito – enquanto entidade estável e unificada – fragmentava-
se, na medida em que ia construindo várias identidades
contraditórias”.
(Corpo e Imagem. Maria João Cunha. 2014)
Não partilhamos do otimismo do sociólogoGiddens que,durante uma pós-
modernidade, haveria como que um corpo aberto.
Pelo contrário, apesar do individualismo dominante, os estereótipos do
feminino, mutilado e fabricado por múltiplas cirurgias plásticas, vai ao
encontro da fantasia masculina da Mulher/Eros/Mãe.
O projecto Twiggy, nos anos 60, reportava a uma androginia que teve o
seu apogeu nos anos 70.
Nos dias de hoje, a autorrepresentação corporal é inseparável dos
contextos histórico-sociais, do género, da etnia e de uma perceção
psicológica.
Na lógica das emoções por vezes há um caos interior, e no género
feminino existe a culpabilização, a fragmentação dos espelhos e uma
autoimagem menorizada face às televisivas esfíngicas personagens de
séries e telenovelas.
Apesar de o corpo estar sempre em construção, no feminino reforçam-se
as tiranias da beleza auto convencionada, daí decorrendo uma quase
marginalidade e submissão perante um interlocutor que se lhe refira.
Mais uma vez confrontamos género com velhice. A mulher velha é quase
sempre obesa e, como tal, assexuada. Nas séries e nos filmes, quando os
jovens imaginam adultos e velhos a terem relações sexuais uns com os
outros, surge a repugnância, o horror, como se aquelas pseudo imagens
fossem o local de monstruosidades.
Nunca se vê um velho a fazer sexo, excetuando, na ridicularização, com
uma jovem muito bela.
Não são só os velhos que são assexuados. São os portadores de
deficiência, os gordos, os designados feios, qualquer mulher a partir do
momento que se represente como Mãe.
Porque é que a Mãe se dessexualiza? Porque projeta um outro
investimento corporal, no lugar do filho, e ela própria materna, dialoga
acerca de bebés, crianças e outras questões específicas das
maternidades generizadas.
Ainda sobre o consumo e o apelo à compra imediata e compulsiva,
reorganiza-se um universo de símbolos na procura da distinção social
(Corpo e Imagem. Maria João Cunha. 2014).
Se verificarmos na televisão ou na internet o que as personagens têm
numa das mãos, enquanto interagem, descobrimos, um pouco
espantados, essa detenção: um copo de whisky, brandy, cerveja, em
suma, álcool. Podem passar séries e séries e as personagens em
interação bebem a todo o momento. Além de beberem, encontram-se
sempre em boa forma física: são vistos a correr, a andar de bicicleta, a
nadar, a fazer ginástica (Corpo e Imagem. Maria João Cunha. 2014).
É óbvio que o corpo é o repositório de todas as escolhas alimentares que
ponderámos aolongodavida.Amulher,coma suapredisposiçãogenética
para a procriação, tem de atender à largura das ancas e alguma barriga.
Já o homem, beneficiado geneticamente por hormonas ao longo da vida,
é propenso à designada “barriga do bem-estar”.
Questiona-se agora: os géneros são também biológicos? São-no
enquanto investimento que se produz no dia-a-dia.Mas,até nisso,existem
hábitos, construções e distinções.
No estudo de Elizabeth Peel, em forma de inquérito à comunidade gay em
Inglaterra (sendo que dizer comunidade gay soa estranhamente a falso,
preferindo nós universos queer) nota-se que a maior parte dos
participantes gosta das representações de casamento e filhos. A questão
que se coloca é: a heterossexualidade nas suas distinções prolonga-se no
imaginário queer, nos investimentos pelo matrimónio e pela adoção ou
reprodução biológica de filhos (Moving Behond Heterosexism. Elizabeth
Peel. in Coming-out for LGBT).
A maior parte dos homossexuais não tem uma relação pacífica com o
conceito de casamento. A perda da parentalidade, que ocorre na maior
parte das vezes, tem um grande impacto nas suas vidas. O casamento
civilmente atribuído quase que presta uma legitimação aos sujeitos
homossexuais que lhe prestam vassalagem.
A Igreja (ou as Igrejas) não demonstra uma boa convivência com a
homossexualidade. Desde a presumida castidade da Igreja Católica à
ausência pré-determinada por outras religiões, a opção queer é a de não
existência. Há comunidades católicas que incluem gays. É óbvio o
equívoco. Ainda se está em luta pelo preservativo heteronormativo. Todas
as outras lutas estão a anos-luz dos padrões do catolicismo.
Abordemos uma questão (sensível) e que o queering ainda não trabalhou:
o facto comprovado de que a comunidade gay e lésbica tem uma
representação do Outro/desejo que é, ela própria, uma incongruência. Os
gays desejam o corpo masculino, musculado e ativo. As lésbicas desejam
a feminilidade heterossexual atribuída à mulher/modelo.
O que é que acontece nesta aparente incongruência? O gay procura a
masculinidade hegemónica. A lésbica sente-se atraída pelas modelares
figurações do feminino. Nas mulheres, chegadas que são à reforma, há
por vezes consentimentos múltiplos, para que coexistam modelos
padronizados. Com os gays mais “efeminados”, a violência da sociedade
civil não lhe dá uma resposta. O gay menos “efeminado” é disputado, na
sua masculinidade, por todo um conjunto de indivíduos.
Estas questões não são politicamente corretas e, como tal, nem sequer
são abordadas em sede de movimentos LGBT.
À medida que o corpo feminino se diferencia cada vez mais do masculino,
enquanto construção, o paradoxo daquelas situações torna-se um
problema interior que cada homossexual transporta em si próprio, no
anonimato.
Apesar dos estudos queer irem bem longe no pensamento crítico do
género e das interações, não há uma resposta para estas procuras
individualizadas.
As interações sociais em sede de construção dos géneros ainda têm
muitos questionamentos por fazer e resolver. Não é fácil. Estão em causa
questões milenares, tradições seculares, superstições e mitos. A
racionalidade que se exige num universo de queering nem sempre é fácil
perante estereótipos, também eles ancestrais.
O corpo e a convivência que com ele temos é uma construção que não é
pacífica.
A medicalização quase obsessiva das homossexualidades,mesmo nos dias de hoje, revela compaixões e tolerâncias em vez da tão ambicionada indiferença pura.
Todos diferentes, todos desiguais.
Cecília Barreira leciona Cultura Portuguesa na FCSH/UNL. É autora de muitos livros de poesia e ensaio. Colabora em várias revistas, entre elas a Incomunidade.