Cultura

Sobre o que eu (também) penso | Letícia Ferro

Foto de Chris Jarvis

para M. Melhem

 

Sob o açoite das lembranças, é comum o pensamento serpear pelo vacilo da razão. De instante a instante, atravessa-se a existência no ensejo de não levantar os olhos para o que é e não o que se esperava que fosse. Com efeito, o exercício de memória se achega, ecoando reflexo e reflexão, que, quando se faz noite, obstrui a luz, dilata miudezas, alarga o vento, dança o coração ao compasso e à escuta da música do mundo. O tempo percute nos confeitos íntimos de nossa elaboração – rebrilhante na poeira permissiva que às pontas dos dedos a rasura se destina. O acesso à grafia variável do diário, pela janela da alma, abocanha a interpelação mais subjetiva. Nele, a cólera e o júbilo, então, revezam-se: a fidedignidade dos afetos só o é, pelo visto, insurgente apenas de um dos envolvidos, a ponto de extinguir de vez o beneficio da dúvida – um dia conferido ao partner. Algo sempre vai predizer? As relações em deambulação, quando para lá de excedidas, necessariamente encontrarão no engano (leia-se: solidão) seu melhor epíteto? O agito das mãos à frente do arrependimento, nesse caso, torna-se tardio. O marejo do olhar, inevitável. De repente, o brio, das mais variadas cores da íris, se amorna. E, logo, é preciso comprazer-se da ideia de “perspectiva”, qual a proposta por Didi-Huberman (2015). Na óptica dele, o modo como todas as coisas são fitadas não resulta em uma única rubrica de significado, mas carece que estas sejam consideradas dependentes, isto é, sob a égide dos seguintes escrutínios: sobre o que é que são avistadas, por que são convocadas, como são utilizadas e a que orientações se encontram a reboque. Corolário disso é o enfoque contraditório, porque multiforme, de se contemplar as coisas em sua potencialidade soçobrada, que pode irromper “de cima” – qual se identifica um “sobrevoo maníaco para vigiar, conquistar ou bombardear” (Didi-Huberman, 2015, p. s/p.) – ou “debruçado”. Porém, mesmo quando se está a ver de modo encimado, sentimentos como o de medo e vertigem poderão acometer os que se depararem com uma situação de perigo, como a de um paraquedas, por exemplo, que, no instante do salto, hesite em abrir. Ao passo que aqueles que se renderem a observar as coisas debruçando-se sobre elas tenderão a vê-las e a pensá-las no acesso à sua intervenção. Destaca-se, nessa forma de ver, a possibilidade de “[…] tornar inteligível a própria experiência sensível” (Didi-Huberman, 2015, p. s/p.). E é ao seu chamamento que essas linhas se dispõem a atender. Mesmo as sabendo em malogro, desde o princípio.

 

Que esbugalho, que aridez, que olhos – como sentir o outro, a alteridade apercebida de afetação e obliquidade, no pós-bem-me-quer? Pétalas de uma rosa a serem arrebatadas uma a uma, a contragosto do que era e-vidente? Afiar o gume da ingratidão no contexto das relações é como frequentar a escola do mundo ao avesso, nos termos de um Eduardo Galeano. A inconsistência, que em nada deve a de uma bad trip, permanece no horizonte, avulta toscamente o que há de perverso, agressivo, opressor. O dissidente é colocado à prova, em condução corada de assombro, pungência, extremismo, atropelos ao arrepio da lei, de posts de hates, de boca seca ou cala-boca. Os posts de acalanto, as filhas, a justiça, as artes, o Flamengo, o comprimido, o terço. A revisão do ocorrido, à tona de cada chamado, ilumina por sobre a vigília o movimento alheio – a sensação de desespero quando (não) se consegue fechar os olhos. 

 

Malgrado todo o corredor polonês possa se precipitar em tons de amarelo, é preciso atravessá-lo sem cair no equívoco da radicalidade: ausência definitiva não rima em nada com solução; ao contrário, só usurpa o direito à vida que, apesar de tudo, deve e merece ser celebrada. 

 

Referência

 

Didi-Huberman, Georges. Pensar debruçado. Trad. de V. Brito. KKYM/Ymago, 2015.  [Kindle] [eBook].

Fotografia de Letícia Ferro

Letícia Ferro é editora e crítica literária, com graduação, mestrado e doutorado em Letras, pela Universidade Federal de Goiás. Possui diversas publicações em periódicos especializados. Divide-se entre Goiânia e Rio de Janeiro. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com

 

Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
0
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura