Sociedade

Falemos das mulheres do Couço | Alice Caetano

Na pequena freguesia do concelho de Coruche, distrito de Santarém, o Couço apresenta-se-nos como uma planície areenta, cujo solo seco é pobre em alimentos, com Verões quentes e de fortes trovoadas e com Invernos de geada e de vento Norte, mesmo em frente à confluição do rio Sôr com o Raia, originando o Sorraia – o maior afluente do Tejo.

 

A estrutura de latifúndio criara distintas classes sociais em que as relações de trabalho se desenhavam desiguais, baseadas na hierarquização e domínio, sem adequadas condições de trabalho. O labor agrícola, como o cultivo do arroz na várzea, a monda do milho no sequeiro, o corte do mato e a extração de cortiça exigia grande conhecimento resultante das memórias antigas e da resistência física. O trabalho duro, mal remunerado trazia sofrimento às famílias, porque até as crianças trabalhavam. Na alimentação predominava a sopa de saramagos ou de beldroegas com feijão, ou com pão, se o houvesse. 

 

Os movimentos rurais ocorridos em Portugal trazem à cabeça o Couço. Exemplo de um grupo local que prorroga a luta pela sustentação das representações emblemáticas que, vindas do passado, lhes confere a manutenção do estímulo à resistência: não se deixar cair!

 

Seareiros, jornaleiros sazonais, praças de jorna, mais tarde a maquinaria a roubar trabalho, já de si mal remunerado, são os elementos nutritivos do crescimento dos movimentos colectivos. Do outro lado, havia que calar as reivindicações desta gente, politizada e revoltosa. 

 

Quando os últimos homens do Couço foram presos pela PIDE vieram buscar as mulheres.  Os interrogatórios, as torturas e as condenações sem julgamento, sob a hegemonia de um sistema supremo deixou marcas na carne e no pensamento dos homens e mulheres.

 

Falemos então dessas mulheres, porque estamos em Março, o mês em que tanto se discorre sobre elas. Considero que o melhor certificado para as definir ou caracterizar ficaria sempre aquém do que elas representam, por isso, optei pela transcrição de alguns excertos dos seus testemunhos fornecidos à investigadora Paula Cristina Antunes Godinho: 

 

“Quando eles apareciam a bater à porta, sempre fora de horas, às três e quatro da manhã, era quando eles apareciam. De dia ninguém os via. De noite, iam buscar a guarda, o cabo da guarda, e depois iam com ele. Fazer as prisões.” (Virgínia Garcia dos Reis).

 

 

Era como se uma pessoa quando fosse para a PIDE para ser interrogada, era como se fosse para a morte. Eu estava lá na Pide e quando nós vínhamos para Caxias era como se fossemos para a nossa casa. O inferno era tão grande, tão grande, dentro das salas da PIDE que quando nós chegávamos à sala a Caxias era uma alegria.” (Olímpia Brás).

Estive lá 66 horas sem dormir, a baterem-me, entortaram-me aqui o nariz, não vê que eu tenho isto aqui torto? Entortaram-me o nariz. O meu corpo era só nódoas negras, (…) Um pide que está casado com uma rapariga aqui do Couço, que é o «Dr. Ovelha» disse assim: «Dispam-na toda aí nua e ponham-na aí em cima de um banco aí com vocês todos de volta que eu vou gostar de ver ela estar aí toda nua”. (Maria Madalena Henriques).

 

 

Quando eu o vejo vir, tive tanto medo! Quando eu o vejo vir, cheirava a vinho…Quando ele veio que tomou conta de mim, depois da Madalena já me ter batido tanto, tanto, e que veio directamente a mim e disse assim «Agora é que a gente vai ajustar contas.» E fecha a janela, arregaça as mangas da camisa, com o casse-tête ali em punho… As primeiras pancadas que eu apanhei foi assim. Foi ela, e depois veio ele novamente. Esteve uma hora a bater-me. Uma hora a bater-me! E então, quero dizer que ele veio com a pistola e assim aos encontrões com a minha cabeça à parede (eu estava encostada à parede, assim do lado da porta, a porta além e eu aqui) e batia-me com a cabeça na parede. E disse «Eu mato-te, minha puta, minha comunista!» Tirou-me os brincos, deram-me cabo deles, entortou, fiquei com a orelha na última. Para baterem, deram-me cabo dos brincos. Foi a Madalena, mas um não foi capaz de o tirar, e ficou todo torcido aqui. Eu tinha dores na orelha, uma coisa parva dela andar a querer tirar-me os brincos. Então, quer dizer, ele encosta-me então com a pistola. «Eu mato-te!», eu disse: «Mate!». Ele disse «Minha puta, minha comunista, que nem do teu filho te lembras!» E assim aqui com a mão para eu não falar (eu babei-o todo!), e disse assim. «Não sou, e não sou, e não sou!», (…) Eu não lhe respondi nada, nadinha, nadinha.” (Maria da Conceição Figueiredo).

 

 

“Ah, não respondes, então entrego-te a uma mocinha muito boazinha que aqui aparece…». Então uma pide, chamava-se ela Ascensão, ou Assunção. Voltou-se logo a mim à pancada. Andei por baixo dos pés dela, que ela batia-me em sítios que me derrubava logo. Tinha mesmo sabedoria para bater. Urinei-me toda com os nervos.

 

Levei ali uma grande sova dela. Daí a um bocado saiu, e entrou um pide, homem.

 

Conversa para aqui, conversa para ali, sempre a iludir, e eu não ligava importância.

 

(…) Porrada daqui, porrada dali, até que dos cotovelos aos ombros, e dos joelhos à anca, aqui acima, estava preta como o luto.” (Maria Galveias).

 

“E então, foi uma luta que foi a noite inteira, ela vinha para o corredor porque ficava de tal maneira cansada, que vinha para o corredor abanar-se e entravam lá os Pides e riam-se :«Então essa não quer falar? Deixa que ela…mas fala». De tal maneira que ela deixou-me, de facto…eu fiquei, desde a cintura à curva da perna completamente preta, era preto mesmo. Mas eu tinha pensado, quando ela chegou e tinha posto o casse-tête em cima da mesa [interrupção], mas eu sabia que batiam porque já tinham batido a outras do Couço, que essas até tinham sido julgadas e tudo…mas tinham batido só com a mão. Portanto, ela pôs o casse-tête e eu pensei: «Se calhar, aquilo é para me meter medo», pois, pensei eu. Nunca pensei, porque até aí com casse-tête não tinham batido a mulher nenhuma…as primeiras mulheres a apanhar tinham sido as do Couço, tinham sido espancadas bem, mas tinha sido com a mão…e então a mulher era com o casse-tête e eu, nunca mais me esqueci, tinha uma saia branca toda plissada, que era daquelas plissadas à máquina. Portanto, ela batia-me e a saia enrolava para cima e depois começou a não fazer mais nada: levantava-me a saia e era directamente mesmo na carne, pois praticamente, pois estava com cueca só em cima. E portanto, a mulher ficava ofegante e ia para fora…portanto, levou a noite inteira naquilo.” (Maria Custódia Chibante)

 

Quando se escreverem tratados sobre as Mulheres, no Dia da Mulher, em Março, nunca se esqueçam das Mulheres do Couço.

 

Fotografia de Alice Caetano

Alice Caetano: Formação académica: Curso professores do 1º ciclo pela Universidade de Aveiro.
Licenciatura em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de ciências da Educação de Lisboa.
Profissão – professora do Primeiro Ciclo.

Livros publicados:

Poesia: “Depois do Ninho, a Água”; “Transmutações”.
Prosa poética: “Maçã de Zinco”.

Poesia, teatro e conto – “Espelho Convexo” (recomendado por Francisco Louçã).

Histórico-Biográfico: “Palco Sombrio – Guiné – Guerra Colonial e Actos Cénicos”  (recomendado por Francisco Louçã).

Livros em coautoria:

“Arranja-me um Emprego – crónicas e poesia para salvar o dia” – Editora Versbrava.

“Orgânico – Cinco Poetas, a mesma causa” (livro com carácter social) – Edição de autor.

“Xafir e a Feiticeira do Pântano” (infantil) – Alfarroba Publicações.

Participação na Antologia da Moderna Poética Portuguesa.

Participação em iniciativas do Movimento Democrático de Mulheres – MDM – com textos temáticos.

Membro do júri do Concurso “Aveiro Jovens Criadores”.

Poemas traduzido para italiano e publicados nas revistas Emergenza Climatica e Articoli Liberi.

Publicada pelo Jornal literário “RelevO” de Curitiba.

Realização de programas de rádio local de âmbito literário.

Escrita de prefácios em diversos livros de poesia.

Colunista na imprensa regional com artigos de opinião e crónicas políticas.

Segunda vencedora do 1º concurso de literatura polaco-português.

Distinguida pela Direcção Regional de Cultura do Centro como mulher de destaque no panorama cultural da Região Centro.

Elemento da Direcção do Grupo Poético de Aveiro.

Elemento do Clube de Leitura da Biblioteca Municipal Manuel Alegre em Águeda.

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