Cultura

Achegas para uma história dos cantares do povo do Brasil | Lucyane De Moraes

Na épica grega, as epopeias advinham dos Aedos (poetas-cantadores) e dos Rapsodos, (costuradores de cantos), aqueles que “costuravam” canções, fixando o texto oral pela escrita. É um momento da literatura antiga que traduz acontecimentos relatados em atos exemplares, funcionando como modelos de comportamento, mantenedores das tradições.

 

Responsáveis pela difusão de locuções urdidas na oralidade, desde antanho ao tempo presente, sua circulação deve-se muito também às obras de Hesíodo, Esopo, Platão, Aristóteles, Teofrasto, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Fedro, seguidos por escritores latinos como Cícero, Horácio, Sêneca, Plauto, e Virgílio, entre tantos. Somam-se a eles autores europeus dos períodos medieval e renascentista, com destaque para Alfonso X, Chaucer, Dante, Boccaccio, Cervantes, Basile, Camões, Rabelais, La Fontaine, e outros.

 

No Brasil, autores como Renato Almeida, Gilberto Freyre, Machado de Assis, Luiz Edmundo, Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Álvaro Moreyra, Mário de Andrade, Ariano Suassuna e José Ramos Tinhorão, para citar apenas alguns, tornaram possíveis, por meio de relatos “ouvidos” em todo o país, rememorar textos e sons musicais nunca escritos que sobreviveram de boca em boca. 

 

São esses os Cantares do Povo que apresentam infindáveis diferenças referentes às igualmente infindas culturas diferenciadas, traços comuns determinados não somente por certos tipos de conteúdos semelhantes, mas, também, pela forma qualificada da variação apresentada como elemento de expressão. É natural que seja assim, considerando o fato de tais manifestações serem transmitidas primordialmente de forma oral, contando com estruturas métrica, rítmica e rímica de grande variedade. Vale, portanto, reafirmar – sempre e mais – que essas formas tradicionais de criação representam a mais pura manifestação da inteligência do homem comum, gerada e favorecida pelas condições do meio, valorizada por fatores históricos determinantes.  

 

Significa dizer que a passagem da oralidade para a escritura resume um complexo procedimento de recriação que consiste em verter uma “voz” para o universo textual, processo esse no qual a matriz, originalmente performática, cede espaço para uma sua transformação em termos sígnicos. Ocorre ainda que tal processo constitui também uma genuína forma de tradução, uma vez que, por meio do trasladar de uma linguagem a outra, se constrói outra forma de apreensão de um mesmo conteúdo, modificado em termos de linguagem. 

 

Sobre esse processo, entre tantos exemplos de caráter universal, vale lembrar no nordeste do Brasil da lendária, mas pouco conhecida peleja entre Inácio da Catingueira e Francisco Romano (o Romano da Mãe D’água), acontecimento exemplar ocorrido no ano de 1870 na feira da Vila de Patos, interior da Paraíba, durante oito dias consecutivos, de acordo com “o que é contado” e citado, “letteralmente”, por Ugolino do Cabugi, Leandro Gomes de Barros, Leonardo Mota, Silvino Pirauá, João Martins de Athayde, Chagas Batista e Ariano Suassuna.  

 

Inácio:

Me tirem de um engano:
Me apontem com o dedo
Quem é Francisco Romano,
Pois eu ando no seu piso
Já não sei há quantos anos.                                                       

Romano:

Negro, me diga o seu nome
Que eu quero ser sabedor,
Se é solteiro ou casado,
Aonde é morador,
Se acaso for cativo,
Diga quem é seu senhor. 

Inácio:

Eu sou muito conhecido,
Aqui nesta ribeira,
Este é o seu criado
da Catingueira.
Dentro da Vila de Patos,
Compro, vendo e faço feira.                                                                                                                                                                 

Romano:

Negro, vieste a Patos
Procurando quem te forre
Volta pra trás, meu negrinho
Que aqui ninguém te socorre;
E quem cai nas minhas unhas
Apanha, deserta ou morre. 

Inácio:

Seu Romano, em vim a Patos
Pela fama do senhor,
Que me disseram que era
Mestre e rei de cantador;
E que dentro de um salão
Tem discurso de doutor. 

 

Inácio da Catingueira, cantador negro e analfabeto, improvisador de versos e escravo de um fazendeiro de nome Manuel Luiz, exprimiu-se por uma linguagem própria, através de um “contar-cantado” próprio, traduzindo a tradição de forma própria por meio da livre reinterpretação de fontes muito antigas que remontam a práticas medievais ibéricas, revelando aspectos inequívocos, mas nem sempre aparentes, de profunda erudição1

 

Nos mesmos termos artísticos, mas em condições sociais contrárias, Francisco Romano Caluete, também criador de versos de improviso, foi um pequeno produtor rural, alfabetizado e, portanto, “um dito” representante oficial do mundo das letras, cultura essa contraposta pelo próprio senso comum àquela da esfera da oralidade representada por Inácio. Originalmente concebidas, “é costume se dizer” que as criações de ambos apresentavam desenvolvimento melódico sofisticado, bem como estruturas rítmicas elaboradas e métricas de grande inventiva, revelando claramente as fontes preexistentes a que se reportavam. 

                                                                                                   Romano: 

Olha que eu tenho
Força e muita inteligência,
Não me falta no meu estro
A veloz reminiscência;
Muitas vezes tenho dado
Em cantador de ciência. 

Inácio:

Seu Romano eu só garanto
É que ciência eu não tenho,
Mas para desenganá-lo
Cantar consigo hoje venho;
Abra os olhos, cuide em si,
Pra não perder seu desenho. 

                                                                                              Romano:

Inaço faça um favô,
Me diga lá num repente
Qual é a dor que mais dói,
Que mais atormenta a gente.
Eu penso que o panariço
É dorzinha impertinente; 

Inácio:

Mas porém tem muitas outra
Que eu lhe digo, no repente:
Ferroada de lacrau

Faz o pé ficar dormente;
Tem outra dô condenada,
É pisá-se em brasa quente. 

 

Musicalmente traduzida, trazida na bagagem de nossos colonizadores e mantida viva aqui no Brasil por meio de repetidos processos de reprodução oral, equivale dizer que manifestações como essa, espontânea, rica e diversificada, traduzem procedimentos cultos, tradicionais, presentes nas fontes letradas e nos elementos formais de suas composições, ao mesmo tempo em que sintetiza uma cultura que por isso mesmo ultrapassa as fronteiras de seu próprio meio. 

 

Nesse sentido, pode-se afirmar que ambos os cantadores encontram-se, por assim dizer, na companhia de, por exemplo, três dos trovadores mais estimados por Dante Alighieri, como Bertrand de Born (embora condenando o aspecto belicista de sua poesia), Arnaut Daniel (alçado ao ponto mais alto da tradição lírica Provençal por sua inventiva formal, seus neologismos e por suas rimas de grande complexidade – ‘cora rima’) e Bernard de Ventadorn (do qual o poeta florentino cita explicitamente um trecho de Can vei la lauzeta mover, em seu ‘Purgatório’), todos tendo em comum, sem qualquer nível de valoração, a arte da “voz” traduzida para as letras. 

 

Da mesma forma, fundamenta também a prática de ambos os cantadores nordestinos um antigo fragmento de texto manuscrito denominado A arte de trovar, que precede as 1.560 cantigas que compõe o chamado Cancioneiro de Colocci-Brancuti 2, elaborado por volta do início do segundo quartel do século XVI, registrando a poesia de aproximados 150 trovadores e menestréis galego-portugueses dos séculos XII a XIV, como Airas Nunes, Paio Soarez de Taveirós Pedro Conde de Barcelos, João Garcia de Guilhade e Martin Codax, entre outros, destacando os próprios reis de Portugal Sancho I (1185 a 1211) e D. Dinis (1297 a 1325). 

 

Antecedendo os poemas e introduzindo o Cancioneiro, essa arte das trovas trata das regras do fazer de três principais gêneros poéticos desenvolvidos no norte da Ibéria do medievo, especificamente as denominadas cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer, compreendendo poéticas amorosa e satírica. 

 

Não por coincidência, vale assinalar que o pequeno compêndio da Arte de trovar3 registra também um subgênero denominado cantiga de seguir, modalidade na qual dois trovadores realizam desafios, respondendo um ao outro intercaladamente, comprovando serem as cantorias do nordeste do Brasil – os repentes – verdadeiras cantigas de seguir recriadas em nossos dias a partir de matrizes ibéricas do cancioneiro do baixo medievo. 

 

Dominando igualmente todos os processos idiomáticos de versificação oral e fundada em uma tradição ágrafa, é de se notar o aspecto de atualidade desta arte, concebida em sua totalidade, sendo inerente ao seu processo um estado de recriação permanente, determinando algo vivo, em constante transformação, identificada com modelos de produção e difusão culturais irreconhecíveis em um mercado global de comunicação que se contrapõe a esse tipo de narrativa em termos radicais.

 

Não é exagero, portanto, dizer que a arte de Inácio da Catingueira, bem como a de Romano da Mãe D’água se apoia em um saber secular, representando o ponto de chegada de conhecimentos muito antigos, diminuindo distâncias entre passado e presente, tradição e modernidade.

 

Notas

 

1 Vale assinalar que da mesma maneira que oral não significa popular, também, o escrito não significa, necessariamente, erudito.  

 

2 O códice foi elaborado na Itália, aproximadamente entre os anos de 1525 e 1526, por ordem do padre jesuíta italiano Angelo Colocci (1474-1549), que anotou, numerou e criou o índice de todas as cantigas, além de transcrever a Arte de trovar, atestando o grande interesse do humanista pela poesia antiga italiana, provençal e, em especial, a galego-portuguesa. Atualmente, integra o acervo da Biblioteca Nacional de Portugal.

 

3 Pode-se dizer que a Arte de trovar, pertencente ao Cancioneiro Colocci-Brancuti, acima citado, é de alguma forma herdeira de outros compêndios análogos escritos na antiguidade clássica, como por exemplo, a Poética, de Aristóteles (384-322 a.C.) e a Arte Poética, do poeta romano Quinto Horácio Flacco (65-8 a.C.), da qual também é herdeira. Nos dias de hoje, apesar de lacunosa e incompleta, as informações e as reflexões que oferece são importantes para o estudo dos nossos «cancioneiros».

 

Fotografia de Lucyane De Moraes

Lucyane De Moraes – Doutora em Filosofia. Professora de Estética e Filosofia da Arte. É autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin – Em torno de uma amizade eletiva, bem como de diferentes artigos com temas socioculturais.

Realiza projetos nas áreas de Literatura da Tradição Oral, Musicologia, Teatro, Dança e Cinema Documental tendo como foco a história da cultura e o pensamento social brasileiro.

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