Cultura

Trechos das novelas que compõem Aí onde não cabe (Editora Patuá) | Alexandre Brandão

 

 

De Zerinho ou um

Dico volta a si

 

Largado na calçada entre olhares enfurecidos e frases hostis, Dico compreendeu que se lançara com demasiada sede ao pote. Queria-se excêntrico e não excessivo. Como de outras vezes, essa espécie de encontro com seu compromisso íntimo e indivisível o apaziguou. Não buscava, ao contrário do que pareceu ao tio e inclusive a si mesmo, a vadiagem, o desregramento, a aventura pela aventura. 

 

Doíam-lhe a perna direita e o peito, o que não o impediu de ensaiar longas passadas vagarosas. Não balançaria mais o rabo invisível para o primeiro sorriso humano — promessa de osso — que surgisse à sua frente.

 

Acertou o passo ao ritmo ditado por alguma esfera interior que ele mesmo desconhecia. As pernas se abriram mais que de costume, e os pés tocaram o chão com força em passadas de quem tem pressa e uma quase certeza de que a pressa não lhe serve mais. Talvez buscasse a estação apenas para confirmar que o bonde já havia passado. 

 

Tarde. Muito tarde. 

 

A manhã não demoraria muito a cacarejar aliviada por ter chocado mais um sol.

Blasco depois da guerra 

 

Quando Blasco saiu da guerra, voltou os olhos para seu povo, no caso, Astride e o cachorro. Estavam largados à própria sorte. Sentia um pouco de culpa, mas, apesar dos pesares, soubera protegê-los das jogadas inescrupulosas impetradas por seus inimigos. 

 

O momento exigia a revisão total de sua estratégia. Tornaria sua atuação empresarial mais agressiva, porém esqueceria ressentimentos pessoais. Precisaria circular, mais do que nunca, em torno do poder constituído, ainda que não o fizesse de corpo presente, colocando-se como braço em sua defesa em vez de ameaça. 

 

Em meio a tanto planejamento, animado pela experiência grandiosa que o embate anterior lhe trouxera, Blasco soube da gravidez de Astride. No início, alegrou-se por saber que o namorado dela enfim tomara uma atitude de homem.

 

Conclusões precipitadas: Delcídeo era o pai. O homem que saíra vitorioso da guerra ganhava um tardio ferimento.

 

Um monstro estaria por nascer e, de maneira alguma, Blasco gostaria de ver associado seu empreendimento à geração de uma besta. Como primeira medida, trancou em seu quarto os dois traidores, gentinha miúda que, enquanto ele lutava para garantir o futuro de todos, ficara entregue à mais deslavada promiscuidade.

 

Durante dias, o clima entre os três foi dos piores. Astride inventava tarefas intermináveis, ora limpando cantos de armário, ora polindo fundos de gavetas ou passando a ferro as roupas fora de uso, próprias de outra estação. O cachorro percorria o cômodo, deitava-se ao pé da cama, botava as patas na soleira da janela para olhar o céu e, não raro, emitir os mais doloridos uivos.

 

Blasco recolheu-se em reflexão: como acolhera aquele amigo lambão, dando-lhe posição importante em sua vida? E aquela desqualificada? Deveria ter desconfiado de ambos.

 

Não, arrependimento não caía bem em um homem de sua envergadura. O preço das ações de suas empresas, notadamente os jornais e redes de televisão, disparara após os acontecimentos que, na versão oficializada por essas mesmas empresas, desbarataram umas das quadrilhas mais perigosas do mundo. 

 

Ganhar mais e mais dinheiro era o seu porto de chegada, que, uma vez alcançado, imediatamente transformava-se em porto de saída para nova expedição em busca de mais dinheiro. Não lhe faria bem ficar perdendo tempo com Astride e Delcídeo.

 

Sensato seria dar aos dois um trocado para sumirem do mapa. Nenhuma retaliação. Agir feito um bom cristão ou a mulher que um dia, sem mais nem menos, deu-lhe de bandeja os números que serviram de porta de entrada à vida recente, boa e luxuosa. Isso mesmo.

 

Quem limparia suas coisas? Quem morderia seus adversários? Quem seria sua presença lá fora? Quem abanaria o rabo invisível para ele? Quem, mesmo sem saber, espantaria o galo que não desistia de cantar ao pé de seu ouvido? Deveria raciocinar muito antes de renunciar a isso que lhe custara tão caro.

 

Um filho de ser humano com cachorro, não um qualquer, mas um que já passara pela condição humana, replicava seres da Grécia Antiga. Lembrava-se bem das aulas de história e sabia ser comum, antes de Cristo, casamento entre animais e pessoas, ainda que um ou outro pudesse servir de disfarce de algum deus. Quem não se interessaria pelo reaparecimento de seres de um passado remotíssimo? Sob a mão de Blasco, a besta estaria em breve nas principais lojas do ramo, conquanto não se soubesse ao certo que ramo era esse. Mexeu os pauzinhos, fez contato com pesquisadores de renomadas universidades e encontrou logo aliados para a grande aventura científica. Na verdade, na comunidade científica, tudo foi tratado como uma grande galhofa, uma forma de ganhar um dinheiro fácil, mas isso, na visão de Blasco, não tinha importância nenhuma. Aliás, deu visibilidade aos seus negócios, inclusive no exterior, e mais dinheiro ainda para suas empresas.

 

A harmonia voltou a reinar no 607. 

 

Quando entrou naquele quarto de hotel, Blasco não imaginava ficar trancado sem sequer descer ao saguão, aproveitar a piscina ou jantar no restaurante. 

 

Depois de pensar sobre isso, chegou à conclusão de que fora a mão do destino que o prendera ali, portanto, aceitava os fatos e ponto final. Vivia feliz. A solidão inicial, com a chegada de Astride e do cachorro, virou apenas um episódio esporádico controlado pelo próprio Blasco. Quanto ao sexo, houve a falsa vidente e a vigarista da loura, além das “amantes” virtuais, presentes algumas vezes, ausentes noutras. Estas, se não eram matéria viva e palpável, pelo menos não lhe traziam problema. Divertia-se. 

 

Soava em repetidas manhãs o cocoricó daquele galo único, ave disposta a arrastá-lo até a beira do precipício. Uma mulher de carne e osso não poderia ocupar mais do que um único espaço, o espectro de uma Leônia ocupava muitos. 

 

Nas vezes em que se via metido nessas filosofias mofinas, tratava de encontrar uma distração. Via televisão. Namorava na internet. Ganhava ou inventava jeito de ganhar dinheiro. Depois de um tempo, passou a jogar cartas com Astride e o cão, este cada dia mais lesado, provavelmente pelo peso da idade, pois, como se sabe, um ano de vida humana equivale a sete da vida de um cachorro. Verdade seja dita, Blasco estava enfadado com tudo isso, com viver preso a esse mundo.

 

Iria à rua. 

 

— Mas aonde o senhor vai? O que vai fazer? — Astride quis saber.

 

— Vou consultar uma apantomante.

 

No quarto, nem um ai, nem um au, Astride e Delcídeo não faziam a menor ideia do que era uma apantomante, e não se meteriam no assunto. Blasco abriu a porta, pisou no corredor, por onde andou sem pressa, tomou o elevador, passou pela portaria, o que causou algum espanto e nenhum questionamento, e, num pulo, alcançou a calçada. 

 

Passeou pelas ruas mais do que conhecidas, arrastando-se com visível lentidão, até chegar ao bairro onde viveu pobre e infeliz. A padaria não mudara em nada. A farmácia… Lembrou-se da mulher que lhe ditara os números da sorte. Melhor sair dali.

 

Para atravessar a rua de prédios baixos assobiou.

 

Para cruzar a rua do canal enfiou as mãos nos bolsos.

 

Para certificar-se de que não se tratava de sonho, beliscou o braço direito com a mão esquerda.

 

No meio da noite, entrou em um bar sombrio, distante de seu bairro, onde se espalhavam alguns homens ali e, em breve, um solitário mais adiante. Não havia mulheres. 

 

O solitário meteu o braço nas garrafas ao alcance de suas mãos. Parecia transtornado. Os fregueses o jogaram no olho da rua, acatando a voz do dono do bar, que, sem sair de trás do balcão, exigiu ainda que não se deixasse um níquel no bolso do pulha; no prejuízo não ficaria.

 

Blasco, ao ver o sujeito expulso levantar-se e caminhar resignado rua afora, pagou a própria conta e, comandado sabe-se lá por que motivo, o seguiu. 

 

Dico sentou-se no banco da praça e, cabisbaixo, parecia evitar olhar para frente, talvez temendo deparar com a turma que lhe roubara o dinheiro. Blasco acomodou-se a seu lado.

 

O adiantado da hora encontrou-os cansados a ponto de não engatarem assunto. Vez ou outra se avaliavam. Imediatamente Dico voltava a ruminar a grama com o olhar. Blasco buscava no ar o galo incansável.

 

Cocoricó. 

 

Nascia o dia.

 

Cocoricó.

 

 

De O Anjo ouve os Noturnos

O jantar, o vinho e a rosa

 

Encontrei Malu já na portaria do prédio de minha mãe. Trazia uma rosa vermelha, bem vermelha. O vermelho é um chamado à vida, se explicou. Dar uma rosa, coisa de namorado, é uma forma de dizer a sua mãe que a vida está aí, perene e sensual, como sempre é — mal completou, perguntou se seu ponto de vista seria entendido. Eu a abracei — o que vinha fazendo de forma recorrente — e respondi que sim, ela entenderia. 

 

Mamãe entendeu e abraçou minha amiga com espontaneidade e entrega. Em seguida, chamou a visita para ajudá-la. As duas foram à cozinha, escolheram o jarro, cortaram algumas folhas, tiraram espinhos, jogaram uma aspirina na água para dar sobrevida à rosa. Por fim, enfeitaram a mesa com a rosa túmida.

 

Comemos queijos, tomamos vinho. A conversa seguiu amena, não falamos de meu pai, o luto passou ao largo. Malu contou com humor sobre suas “coisinhas” de mulher solteira, num mundo ainda tão machista. Rimos. Minha mãe, já um pouco alta, disse para que nós duas não nos deixássemos levar pela paixão do corpo. Aquilo pendurado nos rapazes é uma arma poderosa que enlouquece a gente, mas é preciso se controlar, ficar fria e engolir o cérebro deles. Sua fala carregava ironia, tanto é que voltamos a rir, mas também um certo tom de sentença. Noutras circunstâncias, ouvir isso da mulher que não era tocada pelo marido me deixaria encabulada, surpresa, atônita até, porém, entre rosas, vinho, queijo e o suflê, que estávamos prestes a comer, tudo não passou de uma conversa miúda entre mulheres. Tudo ficou no ar, alegre e túmido, feito a rosa.

 

Foto de Alexandre Brandão

Alexandre Brandão, em seu décimo título, Aí onde não cabe (Editora Patuá), volta à prosa depois de duas coletâneas de poesias lançadas em 2020 e 2022. O livro reúne duas novelas e reafirma a parceria do escritor com o artista plástico Ricardo Tamm, responsável pela concepção gráfica, capa e ilustrações. Zerinho ou um, uma das novelas, ganhou o primeiro Prêmio Flipoços de 2022. O autor é cronista da revista Rubem (rubem.wordpress.com) e mantém o blog No Osso (noosso.blogspot.com).

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