Tanto se espalhou, na Europa, a notícia da morte de Milan Kundera que enfim ela chegou. A cada ano esta fake news se repetiu ad nauseam; os periódicos se precaveram com o obituário. Qual o motivo? Talvez a sentença que o romancista não deveria, jamais, conceder entrevista. “Maldito seja o escritor que permitiu pela primeira vez que um jornalista reproduzisse livremente suas opiniões! Ele começou o processo que só poderá levar o escritor ao desaparecimento: aquele que é responsável por cada uma de suas palavras.”
No entanto, gostava muito do diálogo e no ensaio, no qual se destacou. A ponto não somente de teorizar sobre a origem do romance moderno, mas fundir a filosofia no próprio romance, quem sabe a sua maior contribuição no romance do século XX: “Eis aí sempre o mesmo erro do qual nunca nos livramos, o erro dos erros: pensar que a relação entre a filosofia e a literatura se dá num sentido único, que os ‘profissionais da narrativa’, já que são obrigados a ter ideias, não podem fazer mais que tomá-las emprestado aos ‘profissionais do pensamento’. Nesta perspectiva, se postou à frente dos existencialistas franceses, Camus, Sartre.
Sua obra monumental foi a “Insustentável Leveza do Ser”, donde a filosofia e a literatura deram as mãos, o código essencial: “Ao escrever A insustentável leveza do ser me dei conta de que o código desse ou aquele personagem é composto de algumas palavras-chave. Para Tereza: o corpo, a alma, a vertigem, a fraqueza, o idílio, o paraíso. Para Tomas, a leveza, o peso.”
Nesta obra seminal o título deveria ser o Planeta da Inexperiência. Filho de músico, compôs o enredo como uma partitura. “A ordem dos movimentos de uma sinfonia ou de uma sonata foi determinada, em todos os tempos, pela regra, não escrita, da alternância dos movimentos lentos e dos movimentos rápidos, o que significava quase automaticamente: movimentos tristes e movimentos alegres.” Nos advertiu que somos – sempre seremos – eternos amadores. Trafegamos da infância para a adolescência, depois de compreender a mentira dos pais, sem nos situarmos. Não sabemos da juventude, do casamento, da velhice. Tudo é novidade. Que bom, e frágil, assim somos cerzidos! “Sai da infância sem saber o que é a juventude, casa-se sem saber o que é ser casado, e mesmo, quando entramos na velhice, não sabemos para onde vamos: os velhos são crianças inocentes de sua velhice. Nesse sentido, a terra do homem é o planeta da inexperiência.”
Sobre a arte do romance foi ele quem resgatou a herança depreciada de Cervantes, o precursor do romance moderno. Se Nabokov, premido pelas suas aulas do curso de Humanidades, na Universidade de Harvard, se esforçava para menosprezar Alonso Quijano, Kundera o elevava ao patamar merecido: anti-herói, o cavaleiro que nos levou da poesia épica até à prosa: “Dom Quixote explica a Sancho que Homero e Virgílio não descreviam os personagens ‘tais como eram, mas como deveriam ser para servir de exemplo de virtude às gerações futuras.” Com o Cavaleiro da Triste Figura é diferente: “Dom Quixote é vencido. E sem nenhuma grandeza, pois imediatamente tudo fica claro: a vida humana como tal é uma derrota. A única coisa que nos resta diante dessa inelutável derrota que chamamos de vida é tentar compreendê-la. Eis a razão de ser da arte do romance.”
Também esta palavra – resgate – se poderia associar à memória de Kundera. Quem, senão ele, nos lembrou da monumental trilogia de Hermann Broch – que abarca trinta anos da história europeia -, Os Sonâmbulos? “Broch descobriu um território desconhecido da existência.” Foi Kundera quem nivelou, em termos de transcendência, Broch a Proust, Thomas Mann e Musil: os grandes painéis do século XX. Na Paris dos grupos de intelectuais, e dos cancelamentos, prestou solidariedade a Emil Cioran, um dos primeiros a frequentar a lista proibida dos convidados.
Tolstoi, Dostoiévski, Rabelais, Diderot, tantos os grandes merecedores da sua atenção, mas principalmente Kafka, Musil, Broch, Gombrowicz – os solitários, “a plêiade dos grandes romancistas da Europa Central”. E nas franjas da periferia teve o privilégio de manter contato – a partir de uma inusitada visita a Praga – com escritores latino-americanos, Júlio Cortázar, Gabriel Garcia Marques e Carlos Fuentes. Admirava muito Ernesto Sábato.
Amante da arte. Quando se planejou editar um livro dos retratos e autorretratos de Francis Bacon, Kundera foi convidado para escrever um ensaio com inspiração em sua obra. Era o desejo do próprio Bacon, para quem foi Kundera que o despiu, num texto publicado anteriormente na revista L’Arc. Esse texto inspirou uma parte considerável do Livro do riso e do esquecimento. Uma vez mais, Kundera inovou. Assim termina o texto – que abre o livro de Ensaios Um Encontro:
“O que nos resta quando chegamos até aqui?
O rosto;
o rosto que esconde ‘esse tesouro, essa pepita de outro, esse diamante escondido’ é o ‘eu’ infinitamente frágil, tremendo em um corpo;
o rosto no qual fixo meu olhar a fim de encontrar nele uma razão para viver este ‘acidente destituído de sentido que que é a vida.”
Outros dos seus temas preferidos foram o kitsch e o humor. Ele reconhecia um stalinista, desde seus 20 anos, alguém que necessitava temer, pela maneira como sorria. “O senho de humor é um sinal confiável de reconhecimento. Desde então, vivo aterrorizado ao ver que o mundo está perdendo seu senso de humor.”
E antes de tudo devotou sua vida e criação intelectual contra o totalitarismo, que tem lá sua atração metafísica: “O totalitarismo não é apenas o inferno, mas também um sonho no qual todos vivem em harmonia, unidos por uma vontade e uma fé comuns, sem segredos uns dos outros.”
Exilado para a França nos anos 70 se arriscou na língua francesa, A Cortina, aliás um belo livro, talvez a síntese de sua pretensão de mescla de filosofia e literatura. Um aviso da terrível crise espiritual – a maior de todos os tempos, segundo seu amigo Sábato -, o inumano vencendo o humano, pelo rompimento do vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Quanto mais veloz o tempo, maior o esquecimento. A experiência se torna rara e os fantasmas que assolaram o século anterior, retornam como espectros atuais e ameaçadores.
Caiu um dos últimos intelectuais do século XX, aqueles forjados na universalidade e humanismo, cada vez mais raros nos dias atuais. A cortina se rasgou para sempre.
Flávio Sant’Anna Xavier é Procurador Federal desde 1997. Autor de obras e artigos jurídicos na área do Direito Agrário e Administrativo. Autor do livro de contos “Guris” (2016).