I
O menino investigava a tarde
e o silvo das locomotivas avisava:
o pai chegava, ia escutá-lo,
ouvir a sua voz e seu silêncio.
Os míticos lugares, as distâncias,
tudo emoldurava um pôr-de-sol chuvoso,
cortado de andorinhas,
acentuando o desmaiar do dia.
A terra, parto de segredos,
despertava com as nuvens carregadas,
com os sapos, os insetos, plantas
e o verde em brilho dos canaviais.
A voz dos violeiros, o cantar dos carros
e o odor dos últimos engenhos
misturavam cheiro e música, chuva e vento,
aos olhos do menino que esperava.
II
O poema nascia como um sopro
em direção à chama de uma vela.
O sopro a extinguia
e a chama uma vez mais
reacendia.
Existe algo distante nas palavras,
nas metáforas da infância,
nas imagens perseguindo um canto
e nas transformações de um dia
alucinando o sol antes da aurora.
Memória e palavra se completam
uma na outra, perseguindo sons,
dissecando as cores e o traçado
de rotas em que nos perdemos,
para sempre, na busca de um retorno.
Que tal redesenhar imagens,
o formato dos rios, as marés
de um tempo ausente e acalentado?
Um tempo de espectros e chuva,
inundação sem ritmo das almas.
III
O passado marca em nossas vidas
o rosto da espera.
Nos lugares visitados, descobertas prometiam
a esperança de outros dias.
Novas palavras foram ditas,
vocábulos noturnos
das horas inventadas.
Perseguimos a dor para feri-la:
condição de ser, forma inconsútil
no vazio dos espaços
que a memória constrói
para ter vida.
A arte das pontes, das igrejas,
o riso das velhas prostitutas e dos cegos
compuseram a partitura
de um cântico esquecido.
Marcamos encontro nas esquinas
que imaginávamos existir.
Chovia, era noite, o frio repetia
que o país era outro e outra a festa,
éramos estranhos entre nós
e a música nada nos dizia.
Sem que nada percebêssemos,
estávamos velhos e a lembrança nos trazia
algo sobre o tempo e a sua gosma fugidia.
IV
Era o instante da memória que vivia
o tempo das mudanças
e das sombras refletidas nos estios.
O tigre da memória e a sua sombra.
No lugar dos jardins, bosques sombrios
e onde foram caminhos, retinas assombradas.
Vou retirar da fonte o alívio das pegadas
e o esmorecer das tardes encobertas
pelo jorrar do pó das semelhanças.
Ali se deitarão nossos delírios
junto ao sereno, ao clamor e às despedidas,
vigília das noites espelhando seu cansaço.
Celso Japiassu: Poeta, articulista, jornalista e publicitário brasileiro. Trabalhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.
É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).