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Veneza: o paradoxo do turista | Sara Neves

VENEZA: O PARADOXO DO TURISTA

 

Este Verão, estou a ter a oportunidade de passar três meses em Veneza. Conhecer um lugar como turista ou como residente, mesmo que por um curto período de tempo, são experiências muito distintas e que podem oferecer perspectivas diferentes da mesma cidade. Os pequenos detalhes da vida quotidiana revelam novas facetas, particularidades impossíveis de observar na correria do turismo massivo e acelerado, particularmente tangível em Veneza.

 

 

 

Em 2019, Veneza recebeu mais de cinco milhões e quinhentos mil turistas, em 2022 o número de residentes ficou abaixo dos cinquenta mil. Um olhar frio e analítico sobre estes dados pode concluir que Veneza serve e pertence mais aos turistas que aos seus residentes. A ideia de cobrar um bilhete de entrada na cidade, uma medida para gerir os fluxos turísticos e incentivar visitas fora da época alta, tem sido largamente discutida, e a sua implementação adiada. 

 

Não há dúvidas de que é necessário tomar medidas para proteger as cidades do turismo, ainda assim, medidas como esta levantam questões de várias naturezas. Pagar um bilhete para poder ver e desfrutar de uma cidade, parece oficializar, e até legitimar, o ambiente e consequentes comportamentos de parque de diversões já sentidos. Contribui, assim, para a desumanização das cidades, distanciando-as das suas funções primárias, do propósito da sua gênese. 

 

Parece uma prática relativamente generalizada entre turistas, referirem-se aos turistas como um grupo ao qual não pertencem. A vontade de afastamento desse rótulo tem implícita a mensagem: “nós somos diferentes dos outros”. É comum ouvirmos turistas queixarem-se “dos turistas”. É igualmente comum recebermos sugestões de lugares para visitar enquanto turistas, que contam com a preciosa qualidade de não serem lugares turísticos, ou ainda, de serem lugares sem turistas. É o paradoxo do turista.

 

 

Ao mesmo tempo, parece difícil visitar uma cidade e decidir com tranquilidade não visitar as suas principais “atrações”. Apesar das filas, do calor e do preço há coisas que são “obrigatórias” mesmo que largamente distantes dos interesses de quem visita. Parece haver uma lista a cumprir, de preferência guiada por alguém que nos vai dizendo curiosidades – por vezes inventadas – o tipo de curiosidades que nunca tivemos interesse em procurar sobre as nossas próprias cidades. É curioso como, muitas vezes, as mesmas pessoas que esperam horas numa fila para visitar a Basílica de São Marco, nunca entraram naquele edifício notável pelo qual passam todos os dias no caminho para casa. Também é curiosa a forma como são seleccionadas as atrações que entram na lista do “must see”, essa lista universal e despersonalizada. Veneza tem uma imensa oferta cultural e artística, mas muitos dos lugares que abrigam as obras dos grandes mestres estão vazios, pois não fazem parte da dita lista, e o turismo massivo não tem tempo nem vontade para uma pesquisa mais aprofundada. Mesmo os lugares que têm o privilégio (ou o infortúnio) de estar nessa lista, na maioria das vezes, são visitados apenas de forma rápida e superficial. No outro dia, um amigo contava-me que quando visitou Portugal foi à Livraria Lello no Porto. Disse-lhe, recebendo um olhar de espanto, que não passaram assim tantos anos desde de que era “só” uma livraria, num espaço muito bonito sim, mas apenas uma livraria na qual, provavelmente, muitos moradores da área nunca entraram. Para quem visita o Porto hoje parece difícil imaginar essa indiferença quando pessoas de todo o mundo se alinham numa fila para visitar este lugar “obrigatório”. 

 

 

Da janela do meu quarto vejo um cruzamento de canais o que permite assistir às caricatas estratégias de regulação do trânsito de gôndolas, como por exemplo o aviso de mudança de direcção, o pisca, depender das cordas vocais do condutor. Obviamente o aspecto mais distintivo de Veneza são os seus canais, que determinam que a sua dinâmica seja diferente das outras cidades. Tudo é adaptado a uma vida flutuante: ambulâncias, transportes dos bombeiros, recolha do lixo, transporte de materiais de construção, transporte de obras de arte para a Biennale e outros eventos. Embora existam barcos-táxi, para além de muito caros, dificilmente conseguem levar alguém até à porta do seu alojamento. É frequente ver quem se tenha esquecido desse “detalhe” na hora de fazer as malas. No mundo de informação em que vivemos hoje parece irreal que alguém chegue a Veneza sem um conhecimento prévio mínimo, no entanto, uma guia turística contou-me que já lhe perguntaram onde ficava a paragem de metro. 

 

Dizer que Veneza é uma cidade bonita é um eufemismo. Os palazzos espalhados pela cidade são muitas vezes referidos pelas suas fachadas, mas ao entrar podemos observar que o seu interior é igualmente fascinante, com largas escadarias, tectos altos e meticulosamente trabalhados e vistas sobre os canais. Mas não só os palazzos merecem ser mencionados, também as igrejas, algumas particularmente faustosas com vários tipos de mármore nas suas fachadas, as casas, as inúmeras pontes e as estreitas vielas transparecem uma estética muito cuidada, de cores quentes e detalhes fascinantes. Até mesmo o hospital conta com incríveis Trompe-l’œil e baixos relevos em pedra na sua fachada.

 

 

Embora continue a ser completamente fascinante e prazeroso o simples acto de sair à rua e passear na cidade, é interessante observar como o tempo provoca uma normalização da vista, tornando o que no início era causa de deslumbramento num pano de fundo para a vida quotidiana.

 

Fotografia de Sara Neves

Arquitecta de profissão, Sara Neves é de Gondomar, estudou na Soares do Reis no Porto, e mais tarde, na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Durante o curso, fez intercâmbio de um ano no Rio de Janeiro. Desde 2017, vive em Macau onde trabalha num escritório de Arquitectura, principalmente em projectos de obra pública. 

O gosto pelas viagens começou cedo e hoje já visitou mais de 30 países, em 4 continentes e em diferentes tipos de viagens.

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