Cultura

EU-LEITOR ELA-LÍNGUA | Fabrício Marques

1.

 

Eu a penetro

e ela arde-se flórea

e ela entrega-se em favos

e ela pega carona

em meu hálito e juntos saímos

Leme

Leblon

Marina da Glória 

Lapa

Arpoador

Pedra da Gávea

 

Carrego-a comigo: mistérios

Ela se deixa carregar: montanhas

 

Minha ela, meu elo 

com o mundo

e o ardor inflexível das coisas

 

Alguém arranha

a superfície das letras, 

à procura

do sentido oculto 

entranhado nas palavras

 

(Marcamos um encontro

bem onde as palavras se desbotam. 

Alguém não foi, e eu não soube.)

 

2.

 

Língua: um código comum

para que todos se desentendam 

em jogos de amar e aprender 

fingir e recompor

traduzir e somar 

cantar e dividir

entre outras ocupações

 

Em um passeio aéreo percorro 

Leme

Leblon

Marina da Glória 

Lapa

Arpoador

Pedra da Gávea

Mas antes de alcançar esses lugares

chego nas palavras que os nomeiam.

 

Essas palavras derretem na boca de quem fala

e deslizam para o interior de ouvidos atentos

 

3.

 

Não digo sueño 

Não digo dream 

Não digo traum 

Não digo rêve

mas à revelia de mim 

Eu digo

(ela me obriga a dizer) 

sonho.

 

E eu sonho que ouvi Rita dizer: desfiambre-me.

E eu digo linde e blenda 

e digo borco e gargalo e 

digo gládio e enigma 

com todo o meu ser

 

4.

 

Cobogó 

Parangolé 

Cobogó 

Parangolé 

Cobogó 

Parangolé

 

-Que foi isso, maquinista?

 

-São só trilhos a ranger no entressonho

São vagões metálicos percorrendo a paisagem corrompida 

São as primeiras folhas que brotam, depois da chuva

É o ruflar de plumas a erguerem-se em voo 

É o murmúrio de mil corações batendo

Uns nos outros

 

5.

 

Na ausência de luz, ninguém reconheceu as vozes que chegavam. 

E que som aquele refluindo no súbito luar?

Românico? Moçárabe? Tupi? Provençal?

Para quem está no escuro, tanto faz o sotaque da lua. 

Língua-oiti, da família das rosáceas.

Língua de lagarta ziguezagueando

que se lança e se recolhe na via oblíqua.

Língua de com ela permitir-se linguagens intocadas.

O que falamos não é a língua, é secreta arquitetura 

Istmo a unir terras desoladas,

Iguaria oferecida a todos, mas que poucos recebem.

Língua-pária, cercada pela América espanhola e já toda retorcida. 

Três vezes língua ambarina, língua laboriosa:

lusa-me, lusa-me, lusa-me.

 

6.

(Ela)

 

Toque teu riff em paz, cara, toque teu pinho, 

Imprima teu ritmo no mundo avesso ao teu ritmo

Toque teu banjo, malandro, teu clarim e outros metais 

Martele tua tecla, bróder, teu cravo na amplidão 

Prefira teu sax teso, meu rei, os pistões de tua trompa 

Bata teu bumbo, irmão, e acorde os de lá e os de cá

 

7.

 

Parangolé 

Cobogó 

Parangolé 

Cobogó 

Parangolé 

Cobogó

 

-Que foi isso astronauta?

 

-São só planetas se alinhando, ao capricho de vogais e consoantes 

É a vertigem insubstante da Terra vista de cima

É a tempestade que desperta os circunstantes

São olhos que se encontram no rumor do abraço pressentido 

É o murmúrio de mil corações batendo

Uns nos outros

 

8.

 

Língua de organza e crepom, ainda não lânguida, 

soltando escamas dissipadas no pó do chão.

Língua em mim tão monstruosa, do tamanho da estrela diminuta. 

Língua-guelra, língua do admirabilíssimo ão.

Língua de uma cidade chamada Cristália. Ou Jotuomba. 

De um lugar conhecido como Sofotulafai.

Ou Saramenha. Ou Tlon. Ou Sardanapalo.

Língua dos negros de Tabatinga, pé preto no barro branco 

(Será a mesma que acompanhava os dinossauros de Peirópolis 

até desaguar em palavras como nelore, gir e guzerá?)

Língua em bis, de todas as águas e de todos os fogos, 

que me faz companhia na noite mais longa do inverno.

Todos olharam para trás e foram transformados em sol, por erro de revisão. 

E saíram todos lançando raios de luz no musgo e na madeira oca.

 

9.

(Ela)

 

Toque tua tabla de cor e alteado, tua gaita veloz 

Afine o fole, meu velho, as cordas de tua viola

Toque teu bongô, nego, que percute no jardim dos sonhos 

Dedilhe tua lira, parceiro, e sem pressa ajuste o pandeiro 

Toque teu baixo, leve na flauta o que agora desafina, 

batuque teu tambor, camarada, teu límpido tantã

 

(Na noite alta a música das esferas

impõe tua orquestra à inaudível usura dos dias)

 

10.

 

Eu a amo

e de volta ela me ama

com a precisão de um troço doido que, num esforço último,

afasta o caos despede o acaso e se infiltra

entre palavras que se unem

para fazer um poema: este poema.

 

fotografia de Fabrício Marques. Autor da fotografia: João Marcos Rosa.

O poeta brasileiro Fabrício Marques (1965, Manhuaçu, Minas) é autor de quatro livros de poesia, e uma antologia dessas reuniões de poemas foi lançada em 2019: Fuera del alcance de la memoria (Vallejo&Co), acessível no link:

https://issuu.com/vallejoandcompany/docs/fuera_del_alcance_memoria_pdf_2019

#fabríciomarques

Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
1
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura