

1.
Eu a penetro
e ela arde-se flórea
e ela entrega-se em favos
e ela pega carona
em meu hálito e juntos saímos
Leme
Leblon
Marina da Glória
Lapa
Arpoador
Pedra da Gávea
Carrego-a comigo: mistérios
Ela se deixa carregar: montanhas
Minha ela, meu elo
com o mundo
e o ardor inflexível das coisas
Alguém arranha
a superfície das letras,
à procura
do sentido oculto
entranhado nas palavras
(Marcamos um encontro
bem onde as palavras se desbotam.
Alguém não foi, e eu não soube.)
2.
Língua: um código comum
para que todos se desentendam
em jogos de amar e aprender
fingir e recompor
traduzir e somar
cantar e dividir
entre outras ocupações
Em um passeio aéreo percorro
Leme
Leblon
Marina da Glória
Lapa
Arpoador
Pedra da Gávea
Mas antes de alcançar esses lugares
chego nas palavras que os nomeiam.
Essas palavras derretem na boca de quem fala
e deslizam para o interior de ouvidos atentos
3.
Não digo sueño
Não digo dream
Não digo traum
Não digo rêve
mas à revelia de mim
Eu digo
(ela me obriga a dizer)
sonho.
E eu sonho que ouvi Rita dizer: desfiambre-me.
E eu digo linde e blenda
e digo borco e gargalo e
digo gládio e enigma
com todo o meu ser
4.
Cobogó
Parangolé
Cobogó
Parangolé
Cobogó
Parangolé
-Que foi isso, maquinista?
-São só trilhos a ranger no entressonho
São vagões metálicos percorrendo a paisagem corrompida
São as primeiras folhas que brotam, depois da chuva
É o ruflar de plumas a erguerem-se em voo
É o murmúrio de mil corações batendo
Uns nos outros
5.
Na ausência de luz, ninguém reconheceu as vozes que chegavam.
E que som aquele refluindo no súbito luar?
Românico? Moçárabe? Tupi? Provençal?
Para quem está no escuro, tanto faz o sotaque da lua.
Língua-oiti, da família das rosáceas.
Língua de lagarta ziguezagueando
que se lança e se recolhe na via oblíqua.
Língua de com ela permitir-se linguagens intocadas.
O que falamos não é a língua, é secreta arquitetura
Istmo a unir terras desoladas,
Iguaria oferecida a todos, mas que poucos recebem.
Língua-pária, cercada pela América espanhola e já toda retorcida.
Três vezes língua ambarina, língua laboriosa:
lusa-me, lusa-me, lusa-me.
6.
(Ela)
Toque teu riff em paz, cara, toque teu pinho,
Imprima teu ritmo no mundo avesso ao teu ritmo
Toque teu banjo, malandro, teu clarim e outros metais
Martele tua tecla, bróder, teu cravo na amplidão
Prefira teu sax teso, meu rei, os pistões de tua trompa
Bata teu bumbo, irmão, e acorde os de lá e os de cá
7.
Parangolé
Cobogó
Parangolé
Cobogó
Parangolé
Cobogó
-Que foi isso astronauta?
-São só planetas se alinhando, ao capricho de vogais e consoantes
É a vertigem insubstante da Terra vista de cima
É a tempestade que desperta os circunstantes
São olhos que se encontram no rumor do abraço pressentido
É o murmúrio de mil corações batendo
Uns nos outros
8.
Língua de organza e crepom, ainda não lânguida,
soltando escamas dissipadas no pó do chão.
Língua em mim tão monstruosa, do tamanho da estrela diminuta.
Língua-guelra, língua do admirabilíssimo ão.
Língua de uma cidade chamada Cristália. Ou Jotuomba.
De um lugar conhecido como Sofotulafai.
Ou Saramenha. Ou Tlon. Ou Sardanapalo.
Língua dos negros de Tabatinga, pé preto no barro branco
(Será a mesma que acompanhava os dinossauros de Peirópolis
até desaguar em palavras como nelore, gir e guzerá?)
Língua em bis, de todas as águas e de todos os fogos,
que me faz companhia na noite mais longa do inverno.
Todos olharam para trás e foram transformados em sol, por erro de revisão.
E saíram todos lançando raios de luz no musgo e na madeira oca.
9.
(Ela)
Toque tua tabla de cor e alteado, tua gaita veloz
Afine o fole, meu velho, as cordas de tua viola
Toque teu bongô, nego, que percute no jardim dos sonhos
Dedilhe tua lira, parceiro, e sem pressa ajuste o pandeiro
Toque teu baixo, leve na flauta o que agora desafina,
batuque teu tambor, camarada, teu límpido tantã
(Na noite alta a música das esferas
impõe tua orquestra à inaudível usura dos dias)
10.
Eu a amo
e de volta ela me ama
com a precisão de um troço doido que, num esforço último,
afasta o caos despede o acaso e se infiltra
entre palavras que se unem
para fazer um poema: este poema.


fotografia de Fabrício Marques. Autor da fotografia: João Marcos Rosa.
O poeta brasileiro Fabrício Marques (1965, Manhuaçu, Minas) é autor de quatro livros de poesia, e uma antologia dessas reuniões de poemas foi lançada em 2019: Fuera del alcance de la memoria (Vallejo&Co), acessível no link:
https://issuu.com/vallejoandcompany/docs/fuera_del_alcance_memoria_pdf_2019
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