Cultura

Dois poemas de Constantinos Kaváfis | Paulo Martins

Quem teve a oportunidade de ler a monumental obra de Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria (Justine, Baltazhar, Mountolive e Clea), certamente saiu com a impressão, assim como eu, de que sua maior inspiração foi a poesia do poeta de origem greco-otomana, Constantinos Kaváfis. O fato de ter morado naquela cidade egípcia à beira do Mediterrânio e próximo do delta do Nilo, pode ter dado a Durrell o impulso inicial, inevitável a todo escritor. Mas a poesia de Kaváfis ─ que não só nasceu como também faleceu em Alexandria, tendo lá passado a maior parte de sua vida ─ certamente lhe forneceu os fundamentos imaginários e a irradiação lírica para escrever esta epopeia amorosa da cidade que, em todos os quatro volumes do romance, aparece como seu mais verdadeiro e importante personagem. Kaváfis a cantou inúmeras vezes em sua obra. E o romancista, cativado por sua poesia e ao mesmo tempo pela cidade que lhe acolheu, encontrou os elementos naturais para ligar uma coisa a outra, e, consequentemente, para a fabulação extraordinária que é este romance sem paralelo no gênero. Já na primeira página do primeiro volume, Justine, Durrell alerta, numa nota:

 

“Todos os personagens desta história, a primeira de uma série, são invenções, assim como a personalidade do narrador, e não têm semelhança alguma com qualquer pessoa viva. Apenas a cidade é real.” (Grifo meu).  Lá pela metade da narrativa, ao falar do escritor Arnauti, seu evidente alter-ego, cujo romance Moeurs é uma espécie de regressão de seus personagens principais, dele assim se refere Durrell:

 

“Não se poderia esperar mais de um forasteiro talentoso que, quase por acidente, perfurou a carapaça rígida e mundana de Alexandria e acabou descobrindo a si mesmo.”

 

Por isso é que, mais adiante, falando de Justine, atesta ferinamente que “toda cidade é uma prisão”.

 

Que quis dizer Durrell com a sentença irreversível “apenas a cidade é real”? Creio que ele se sentia à vontade para tergiversar abundantemente em torno de seus personagens, quem sabe inspirados em outras fases de sua vida e em outras cidades, mas que sentia necessidade de ser fiel ao espírito de Alexandria. É possível, então, que seus personagens tenham sido criados exatamente como extensões anímicas daquela cidade egípcia, pelo menos da época em que a história transcorre, nos primórdios da II Guerra Mundial. Disso decorre a grande capacidade criadora do romancista e aventureiro inglês que, como diplomata, viveu em tantas cidades do mundo em sua heroica trajetória.

 

A relação aqui suscitada mereceria uma tese acadêmica ou ao menos uma dissertação de mestrado ou doutorado, por algum aluno(a) em busca de um tema especial ligado à literatura inglesa. Neste caso, no entanto, ele(a) teria que ter empatia. Fica aqui a dica, um tanto suspeita, pois, afinal de contas, está sendo dada por um apaixonado dobrado: pelo romancista e pelo poeta. Ou seja, por alguém que derrama pelos poros esta empatia.

 

A relação dos escritores com suas cidades é um tema fascinante e já mereceu um ensaio de minha lavra intitulado “As cidades e a literatura”. Seja qual for a cidade examinada, não há como não se enxergar certas marcas fatídicas na literatura que as aborda. Por exemplo: Buenos Aires nos contos de Borges, ou Lisboa nos poemas de Fernando Pessoa. O mesmo acontece com Durrell e Kaváfis em relação a Alexandria, mesmo que não conheçamos esta cidade do Oriente e tenhamos poucas referências dela, tão distante que é de nossa realidade (salvo, talvez, pelo famoso Farol de Alexandria, que na adolescência nos era apresentado como uma das Maravilhas do Mundo). Se invertermos os termos de autor e cidade, a sensação não será diferente, pois os autores e suas cidades eleitas são inseparáveis.

 

Durrell imerge profundamente nas regiões do amor, do sexo, da amizade e da religião, quase sempre como se estes elementos fundamentais de nossas existências dependessem de uma senha indelével, a senha da própria cidade que lhes serve de espaço, sem a qual não pudessem se expressar. A certa altura de Justine, nome da personagem central do primeiro volume, como se fora impossível imaginá-la em outro contexto, Durrell crava esta sentença fatídica:

 

“Justine e sua cidade são iguais, pois ambas têm um sabor pronunciado, e, ao mesmo tempo, nenhuma personalidade.”

 

Esta “nenhuma personalidade”, no entanto, não significa a inexistência de uma alma que as ata, tornando-as inseparáveis, alma que se insere no âmbito do “sabor pronunciado”. Qualquer distanciamento futuro de Justine da cidade será inconscientemente indesejado e resultará “provisório”. Mesmo distante, ela continuará ali, mesmo não sendo dali. Em qualquer circunstância, sua decisão será sempre conflitante: no dia em que se evadir, carregará consigo remorso, culpa e fracasso. Não à-toa a personagem tem reflexões próximas de Fernando Pessoa, pois se inquirirá sempre, na esteira de seus dias: “Se eu pudesse não ser quem sou.”

 

Já Nessim, outro personagem marcante do romance, parece possuir uma consciência atávica de sua ligação com Alexandria. Um pequeno relato de Durrell deixa isso claro, a pretexto de dizer o mesmo do que se refere a Justine:

 

“Nessim já começara a percorrer o grandioso ciclo de sonhos históricos que substituíram em sua mente os sonhos sobre a infância e nos quais a cidade se precipitava ─ como se finalmente tivesse encontrado um veículo sensível através do qual pudesse expressar os desejos coletivos, os anseios coletivos que constituíam sua cultura. Ao acordar, via as torres e os minaretes impressos no céu exausto e cheio de poeira. Enxergava neles, como se en montage, as pegadas gigantes da memória histórica que jaz além da memória individual e serve-lhe de mentora e guia: de fato, é uma inventora, já que o homem nada mais é que uma extensão do espírito de um lugar.” (Grifo meu). Por isso é que, já na primeira página do romance, a respeito de uma tragédia que possa acontecer num lugar qualquer, sentencia que “é a cidade que deve ser julgada, ainda que sejamos nós, seus filhos, que paguemos o preço”. E no caso de Alexandria, trata-se do “grande lugar do amor, origem dos enfermos, dos solitários, dos profetas ─ enfim, de todos que tiveram seus sexos profundamente feridos.” Ou seja, Alexandria é a cidade de todas as tragédias interiores.

 

Em outro trecho, Durrell descreve um momento em que o narrador passeia pela cidade, por um bairro “onde zune a vida irrisória e concreta de homens e mulheres”. Após andanças no tempo e no espaço que lhe cerca, revela sentir-se “transtornado”, ao tentar encontrar palavras para descrever a si mesmo todo aquele bairro de Alexandria, suspeitando que em breve “ele seria esquecido, sendo revisitado apenas por aqueles cujas memórias tivessem sido apropriadas pela cidade febril, agarrando-se à mente dos velhos como traços de perfume na manga de uma camisa.” E arremata:

 

Alexandria: a capital da Memória.”

 

Descreve a cidade a seus pés observando as pessoas como se elas fossem, ao lado de ruas, prédios, jardins, árvores, flores, vento ou tempestade, construções humanas erigidas das emanações de todas essas coisas, revelando um processo histórico híbrido, em forma de tragédia:

 

“Atravessei devagar aquele extraordinário jardim humano, refletindo que uma cidade, como um ser humano, tem suas predisposições, apetites e temores. Cresce até a maturidade, anuncia seus profetas e declina até a senilidade, a velhice ou a solidão, que ainda é a pior de todas as coisas. Alheios à morte de sua cidade-mãe, os vivos permaneciam em plena rua, como cariátides sustentando a escuridão, com as dores do futuro pousadas nas sobrancelhas; observando insones aos caçadores de imortalidade através de toda a fatídica extensão do tempo.” (Grifo meu).

 

É claro que Durrell não perde tempo a falar bem ou mal da cidade, ou a descrevê-la fisicamente, salvo quando absolutamente necessário. Pode-se até dizer que suas referências físicas não são maiores nem menores do que as usadas por qualquer bom romancista para descrever o ambiente em que se enquadra a ação de seus personagens. Mas sempre deixa claro, nas sutilezas da ação, o predomínio dessa visão de cidade fatídica, marcante, determinante das cenas que nela eclodem, como se homens, vidas, ruas e prédios se intrincassem umbilical e misteriosamente. A certa altura, chega a insinuar: “Se alguém encarar a si mesmo como uma cidade adormecida, por exemplo… O que acha?”

 

A certa altura, num momento íntimo com Justine, chega a relatar: “Eu estava certo ao reconhecê-la como uma filha de Alexandria, uma cidade que impõe a suas filhas uma volúpia pelo sofrimento, em vez do prazer, condenando-as a perseguir aquilo que menos desejam encontrar!” Afinal de contas, “uma cidade torna-se um mundo quando amamos um de seus habitantes.”

 

Tanto que, para deixar mais clara a visão de mundo que comanda o romance, insere um último capítulo, após o final da história, chamando-o apenas de “Rudimentos”. No final dele é que transcreve os dois poemas de Kaváfis, que vêm resumir, na sua essência, toda a visão cognitiva do seu precioso Quarteto de Alexandria. Transcrevo-os abaixo para finalizar estes apontamentos. Mas não sem antes fazer um necessário esclarecimento.

 

A tradução do Quarteto de Alexandria que li é de Daniel Pellizzari. A tradução dos poemas de Kaváfis, pelo visto, foram feitas a partir de uma versão inglesa do autor do Quarteto (apesar de que Durrell também tenha morado na cidade de Patras, na Grécia, e provavelmente conhecesse bem o grego), da qual não tenho nenhuma referência. Certamente, não foram diretas do grego, como a do nosso grande tradutor José Paulo Paes. Por isso, aconselho um cotejamento com a do nosso tradutor. Mas não é só por isso. Durrell deixa entender que mexeu nos poemas, isto é, fez o que Manuel Bandeira chamou, referindo-se a suas próprias traduções, de “reconstrução”. Vejam o que ele diz:

 

“Ela (Justine) gostou tanto das duas traduções de Kaváfis, embora nem de longe fossem literais, que as copiei e dei-lhe de presente. Agora que o cânone de Kaváfis foi estabelecido pelas excelentes e refinadas traduções de Mavrogordato, de certo modo o poeta ficou livre para ser reinterpretado por outros poetas; esforcei-me por transplantar ao invés de traduzir ─ com que grau de sucesso, ignoro.”

 

Presumo que com um estrondoso sucesso.

 

A CIDADE

 

Dizes: vou-me embora para

outra terra, partirei para outro mar,

para uma cidade mais bela

do que esta foi ou jamais será ─

Cada passo confirma o destino, enquanto

num corpo inerte pulsa meu coração:

Até quando, até quando seguirei

confinado entre os tristes limites

deste marasmo vulgar? Para onde quer

que olhe, enxergo as ruínas de minha vida:

Desperdicei tantos anos à-toa.

não há outra terra, meu amigo, não há

outro mar, pois a cidade seguir-te-á,

vagarás atônito pelas mesmas ruas,

envelhecerás no mesmo bairro, ganharás

cabelos brancos no mesmo lar ─

A cidade é uma prisão.

Não há outros lugares, apenas esta

mesma terra à vista, e nenhum barco há

de levar-te para longe de ti. Ah! Não vês

que arruinando tua vida neste

porto solitário, arruinaste-a em todo e

qualquer recanto ─ no mundo inteiro?

 

O DEUS ABANDONA ANTONIO

Quando à meia-noite, ouvires de súbito

na escuridão a passagem do tropel indivisível,

as vozes límpidas, a música arrebatadora ─

Traído pela fortuna, vazio de esperança,

Os sonhos de uma vida reduzidos a pó.

Ah! Não sofras por tudo que não foi.

Como há muito preparado, valente,

diz adeus a Alexandria que parte.

E não te iludas dizendo que foi tudo

um sonho, um engano dos sentidos.

Súplicas e queixumes, estes deixa aos

covardes. Abandona toda esperança vã

e como há muito preparado, altivo,

cheio de resignação, prova-te digno da

cidade. Acerca-te da janela e olha, recebe

em ti o derradeiro êxtase da turba mística

e diz adeus, adeus a Alexandria que parte.

 

Nota: Escrevi este pequeno texto em 21/05/2023, na esteira de um planejamento de uma incursão a Alexandria, que pretendo fazer em outubro; baseei-me, no fundamental, numa breve releitura de Justine, para mim o mais tocante dos quatro volumes d’O Quarteto de Alexandria.

 

Fotografia de Paulo Martins

Paulo Martins nasceu em Ipiaú-Bahia, e morou em Jequié, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Pequim, Paris, Salvador, Porto Seguro e outras cidades. Reside atualmente em Lisboa, Portugal.
É poeta, letrista de canção popular, romancista, cronista e ensaísta, autor dos romances Glória Partida ao Meio (7 Letras 2010); Adeus, Fernando Pessoa (7 Letras, 2014); História de Roque Bragantim – Olhares do Campo (Cultura Editorial, 2017); e do ensaio Jacques Brel – A Magia da Canção Popular (7 Letras, 1998). Os seus livros mais recente são As Diabruras de Orfeu – Cantorias sem fim (Editora Lacre, 2020) e Até breve, poeta (Kotter Editorial, 2022). Divide-se, desde a adolescência, entre as duas maiores paixões de sua vida: a política e a literatura.



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