Ciência

Somos animais “racionais”? – parte I | Marinho Lopes

 

Somos animais capazes de usar a razão, porém… Não é difícil reconhecer que a idiotice e a irracionalidade correm nas veias de muitos de nós. “Ah sim, tenho um colega no trabalho que…” – ou – “Aquele meu vizinho!!” – ou, e sempre, – “Epá, o Trump!…” – Sim, são sempre os outros. Eu e tu somos perfeitos. Ou melhor, temos as nossas razões quando não o somos, tornando a nossa irracionalidade racional. Neste artigo vou falar-vos dos nossos vieses cognitivos, isto é, as nossas tendências irracionais.

 

Antes de começar a expor alguns dos nossos vieses cognitivos é importante reconhecer que os vieses nem sempre são maus, mas quase sempre podem ser. Porquê? Porque nos impedem de reconhecer a verdade. E porque é que isso é mau? Porque viver numa realidade alternativa tem consequências potencialmente negativas na nossa vida (e/ou na dos outros). Se eu tiver um pressentimento que hoje é o meu dia de sorte e por isso decido apostar tudo o que tenho em boletins do Euromilhões, o que irá quase de certo acontecer? Recordo que já aqui mostrei como calcular a probabilidade de ganhar o prémio (edição 62 da Incomunidade). Recordo também que já aqui falei da ditadura da verdade (edição 85 da Incomunidade). A verdade é independente das nossas crenças. Note-se também que o facto de termos estes vieses e dos mesmos serem conhecidos faz com que haja um manual de exploração humana ao dispor de qualquer um. Por exemplo, a indústria da publicidade faz uso dos nossos vieses para nos manipular. Assim, conhecermos os nossos vieses cognitivos é uma forma de protecção pessoal (o que não significa que conhecê-los nos torne imunes).

 

 

Viés da confirmação

 

Esta tendência irracional começa com uma crença. Por exemplo, o António acredita que o aquecimento global é um embuste. O viés da confirmação conduz o António a procurar informação que “confirma” (mas que na verdade apenas suporta) a sua crença. De forma inconsciente, o António “esquece-se” de procurar informação imparcial e que pode contradizer a sua crença. Esquece-se de questionar as suas premissas. É provável que o António frequente locais, consulte fontes de (des)informação e fale com pessoas que confirmam a sua opinião.

 

“Eu não, eu sou muito céptico em relação a tudo.” Será? Evitar o viés da confirmação é muito mais difícil do que o que parece, em particular por causa do efeito de Dunning–Kruger.

 

Efeito de Dunning-Kruger

 

O efeito é ilustrado pela gráfico seguinte:

Confiança naquilo que se pensa saber em função daquilo que de facto se sabe sobre um tema

O que o gráfico pretende transmitir é que quem tem muito pouco conhecimento sobre algo tem tendência a sobrevalorizar o seu domínio do tema. De um ponto de vista racional esperar-se-ia uma linha recta neste gráfico: quanto mais conhecimento, maior seria a confiança do indivíduo no seu conhecimento. Contudo, tal não é possível, porque o ignorante não consegue julgar o tamanho da sua ignorância. É por isso que quanto mais aprendemos, mais ignorantes nos sentimos, pois começamos a reconhecer melhor o volume de conhecimento que existe para lá daquilo que dominamos. 

 

Surge assim uma dificuldade social: se tivermos pouco conhecimento sobre algo, como reconhecer quem é o arrogante ignorante e quem é o arrogante informado? As credenciais do arrogante podem não ser suficientes para decidir, pois, como já aqui falei, os especialistas também são propensos ao disparate. A melhor opção é por norma considerar a opinião da maioria dos especialistas, bem como procurar informação sobre as disputas entre especialistas. Notar que “considerar” não é defender com unhas e dentes, para que não sejamos vítimas do viés da confirmação. Sejamos humildes e reconheçamos que somos ignorantes em quase tudo.

 

Volto a frisar porque é importante: o viés da confirmação pode afectar tanto ignorantes como indivíduos bem informados. Aliás, a sua presença na ciência é bem reconhecida. Os cientistas têm uma tendência muito maior a estabelecer hipóteses e a procurar evidências que confirmam “crenças” iniciais. Parece-me, aliás, difícil conceber um método científico que não sofra um pouco deste viés, dado o aspecto cumulativo da ciência. No entanto, recordo que também existem revoluções científicas (ver artigo “Criar Ciência” na Incomunidade ed. 31), as quais podem ser entendidas como vitórias da ciência sobre o viés da confirmação. Devo acrescentar que por vezes até podemos estar “certos”, claro, o que não impede que sejamos vítimas do viés. O problema não está necessariamente em estar certo ou errado, mas antes na dificuldade que podemos ter em questionar e validar aquilo que julgamos ser verdade por não estarmos dispostos a analisar os contra-argumentos.

 

Como disse em cima, um dos problemas do António está nos locais que frequenta e nas pessoas com quem comunica. Nisto, o António é vítima de um outro viés:

Viés da Conformidade

 

O aquecimento global nada tem a ver com a moralidade do aborto, não obstante, é expectável observar uma correlação entre as opiniões que é possível ter sobre os dois temas (em particular se nos focarmos num dado grupo de “camaradas”). Por um lado, reunimo-nos com pessoas que partilham e que confirmam as nossas opiniões (dando força ao viés da confirmação), por outro somos influenciados pelas opiniões do grupo. Como animais sociais que somos é importante ter amigos com os quais se possa ter conversas agradáveis. Uma conversa agradável é por norma uma conversa em que nos dizem “tens toda a razão” e onde retribuímos com amabilidades semelhantes – “Pois é! É mesmo isso!”. Somos, por isso, “vítimas” do groupthink, o pensamento de grupo. A pressão social impede-nos (ou condiciona-nos) de pensar de forma crítica. Rejeitar a opinião do grupo é algo difícil pois poderá resultar numa exclusão social.

 

Dentro deste viés é possível reconhecer o efeito adesãobandwagon effect: se “toda” a gente acredita, eu também acredito! Se toda a gente faz, eu também faço! Se toda a gente compra, eu também compro! Se todos se riem, eu não quero ser o idiota que não percebeu a piada. O que estamos a desprezar? Que por um lado toda a gente pode estar errada e, o que é mais provável, que o “toda a gente” refere-se a um grupo muito limitado de indivíduos com opiniões e atitudes que devem ser questionadas.

 

Vídeo youtube: https://youtu.be/o8BkzvP19v4

Eis um exemplo de herd behavior, comportamento de “manada”.

 

Note-se que quanto maior for o grupo, maior será a tendência para seguir a “norma”. Há também um mecanismo de feedback positivo: à medida que a norma se torna “normal”, o “anormal” é quase forçado a desaparecer. Por exemplo, numa discussão de grupo, assim que uma certa fracção do grupo começa a concordar com uma dada opinião, combater essa opinião torna-se cada vez mais difícil pois enquanto a concordância já tem vários defensores, a oposição terá que partir de um só elemento.

 

Como será fácil de reconhecer, estamos a um passo de um outro viés, aquele que fomenta o preconceito:

Erro de atribuição ao grupo

 

“Se tu fazes parte do grupo deles, logo és como eles.” – É um preconceito justificado pelo viés da conformidade. Temos imensos preconceitos que têm uma base de verdade, contudo devem ser encarados como meras tendências estatísticas. É certo que o facto do António acreditar numa teoria da conspiração o torna mais propenso a acreditar noutras, mas tal não implica que seja o caso. Isto é, entre 100 Antónios poderemos encontrar talvez 80 que acreditem noutras teorias da conspiração, mas quando nos referimos a um António em particular não sabemos se ele está no grupo dos 80 ou dos 20 que não acreditam.

 

Este erro surge com dois “sabores”: ou caracterizamos o indivíduo por causa do grupo, ou o grupo por causa de um dado indivíduo. Por exemplo, será natural ter uma tendência para assumir que todos aqueles que apoiam o Trump sejam idiotas como o Trump.

Na próxima parte iremos discutir mais viés cognitivos!

 

Tradução: “Todos os que estejam a favor digam ‘sim’. – Sim – Sim – Sim – Sim.” – Enquanto isso, pensam: “Diz que não é verdade!” – “Só podes estar a brincar!” – “Que morra tal pensamento!” – “Que os céus o proíbam!” – “Não! Não! Mil vezes não!” (Algumas das expressões são idiomáticas…)

 

Marinho Lopes é Doutor em Física pela Universidade de Aveiro.

 

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