Ciência

O paradigma sintrópico e a busca da verdade | Rubens Turci

18.08.23

 

Ao explorarmos as interseções entre os princípios científicos e os fundamentos de sentido e significado da vida, referindo-nos a valores e princípios de profunda relevância para o bem-estar humano e para o equilíbrio do nosso planeta, desvendamos uma convergência fascinante que transcende os limites religiosos e abraça um entendimento mais amplo do sagrado.

 

A ciência ocidental moderna é em grande parte moldada pelos três sonhos que Descartes teve em 10 de novembro de 1619. Segundo Adrien Baillet (1649-1706), seu biógrafo, esses sonhos revelaram a Descartes um caminho onde a matemática se apresentava como fonte de certezas. Naquele dia, após momentos de grande exaustão, seu cérebro se “incendiou”, gerando uma epifania. Ao deitar-se, teve três sonhos que lhe revelaram sua missão. Com 23 anos, ele começa a se afastar do entendimento medieval da realidade, fundamentado na mera fé religiosa. Nos sonhos, a dúvida estava ausente, e situações que, se experimentadas em estado de vigília, pareceriam absurdas, eram percebidas e aceitas como verdades, uma vez que a razão crítica estava dormente. Descartes associou então a capacidade de duvidar à certeza de estar acordado. Uma vez acordados, temos os meios para reconhecer e validar, de forma racional e objetiva, verdades e modelos teóricos sobre a realidade. O pensamento ancorado na dúvida tornou-se o sistema racional fundamental para a revelação das verdades sempre relativas do mundo.

 

No entanto, o distanciamento da ciência da centralidade da fé no processo do conhecimento resultou em uma separação aparentemente definitiva entre sujeito e objeto, mente e corpo, razão e afeto. O Ocidente, em grande parte, não conseguiu perceber o quão próxima a conclusão derivada do cogito cartesiano, “cogito ergo sum” (penso, logo existo), estava daquela alcançada séculos antes na Índia, quando o filósofo Shankara chegou à afirmação da não-realidade de todas as coisas objetivas (Brahman satyam jagat mithyā) para expressar a única realidade indubitável: o sujeito, o Ser, o Espírito (Ātman). O método cartesiano, de certa forma, ao supor que todas as coisas são falsas, abriu espaço para a descoberta do luminoso SENTIMENTO que nos conduz à consciência do indubitável: SINTO que penso e, se penso, sou forçado a admitir, sem dúvida, a minha existência.

 

O ponto de partida de Descartes, como sabemos, é a “consciência de si”, o cogito, expresso por Santo Agostinho em A Cidade de Deus. Assim como em Shankara e Santo Agostinho, a grande questão é sobre a realidade do mundo exterior a essa consciência, a esse “eu”. Ambos concordam que a razão se torna confiável apenas quando iluminada pela luz que reside no Espírito, habitante do nosso Sagrado Coração. É essa luz que torna nossas ideias claras e distintas, como exige o método cartesiano. Tanto Descartes quanto Shankara propuseram métodos para disciplinar a mente e liberá-la de dogmas. Ambos concluíram que matéria e espírito, extensão e pensamento/sentimento, mostram-se irredutíveis em nosso plano existencial. O cogito, ao contrário do argumentado, não representa uma armadilha inescapável, mas sim a chave para construir pontes entre o eu e o mundo, através da confiança e certeza interior.

 

A expressão do caminho que nos orienta para a verdade, objeto de pesquisa de Shankara, encontra um tratamento filosófico e poético no diálogo entre Krishna e Arjuna na Bhagavad Gītā. O método implícito na Bhagavad Gītā ensina que toda e qualquer opinião ou crença religiosa é um ponto de partida para a busca da verdade. Para iniciar qualquer estudo, devemos pelo menos ter ouvido falar do assunto em questão. Ninguém pode voltar a sua atenção para aquilo sobre o qual nada sabe. Na Bhagavad Gītā, Arjuna questiona Krishna porque já tem um conhecimento inicial sobre aquilo que deseja saber. A visão inicial, o ponto de partida do conhecimento, varia de pessoa para pessoa, cada uma inicia a sua jornada com um ângulo de visão diferente. Ainda assim, independentemente do ponto de partida, por meio de śraddhā sempre será possível alcançar uma síntese que harmonize e explique os pontos de vista anteriores. Śraddhā, o ardor interior do coração, funciona como uma bússola, indicando o norte e apresentando-se ao sujeito do conhecimento como critério de verdade, força interior, confiança, entusiasmo, certeza e convicção em si mesmo. De fato, é um corolário necessário da Bhagavad Gītā que todas as opiniões refutadas no texto contribuem para a verdade, em conformidade com a fórmula dialética que opõe a qualquer tese (sañkalpa), a sua antítese (vikalpa), como parte do processo que conduz à síntese ou (anukalpa). Vikalpa, com o sentido de dúvida, está no cerne do método científico e é o oposto do processo cognitivo inicial de formulação de uma hipótese, ou sañkalpa.

 

Se por um lado, a crítica cartesiana expressa no cogito quebra os alicerces do paradigma medieval, representado pela expressão “fides quaerens intellectum” (a fé como o pressuposto para o conhecimento) de Santo Anselmo, que fundamenta a filosofia tomista, por outro, o próprio cogito cartesiano se mostra, por si só, incapaz de nos conduzir às certezas sobre o mundo. Contudo, é nesse cruzamento de caminhos que o seminal pensamento oriental pode contribuir com a ciência. A noção de śraddhā, em seu ressoar simultâneo com o cogito e a fides, materializa-se em “śraddhā quaerens intellectum”, uma expressão sintrópica que não apenas corrige, mas também atualiza o paradigma medieval, conferindo-lhe uma perspectiva pós-moderna. Através dessa lente inovadora, soluciona-se a dificuldade destacada por Popper em relação ao método cartesiano. O novo paradigma, “śraddhā quaerens intellectum”, sugere que o nível de certeza é relativo e nos conduz gradualmente em direção à realidade sintrópica. Assim, o dilema da regressão infinita na busca por um método infalível desvanece sob a orientação do paradigma sintrópico. Como esse método é universal e invariável no tempo, ele nos revela que somos nós que evoluímos ao empregá-lo. Isso reforça a visão de Popper de que teorias válidas são aquelas que permanecem ainda não refutadas. Dessa maneira, o conhecimento científico não se acumula como verdades irrefutáveis; em vez disso, o paradigma sintrópico oferece uma resposta a esse desafio.

 

Para ilustrar como o conceito śraddhā está na base do edifício da nova ciência, basta considerar, brevemente, como a ecologia profunda enfatiza a interconexão intrínseca entre todos os seres vivos e o ambiente, considerando a natureza como um todo interdependente e valorizando o respeito pela vida em todas as suas formas. Ela vai além das preocupações superficiais da ciência vigente com o meio ambiente e busca uma mudança fundamental nas atitudes e valores humanos em relação à natureza, promovendo um senso sintrópico de pertencimento e responsabilidade com o ecossistema global. Pesquisadores como Francisco Varela, Humberto Maturana e Arne Naess têm se valido de expressões como “ecologia profunda”, “altruísmo biológico” e “autopoiesis” para indicar o surgimento da nova ciência sintrópica, fundada na subjetividade e em uma visão de mundo monista, cultivada por meio de práticas de meditação que visam educar a mente para torná-la sensível aos sentimentos intuitivos superiores, ignorados pela ciência tradicional.

 

Esse entendimento progressivo inicia a reunificação das esferas da razão e do sentimento intuitivo, valorizados por Descartes, Shankara e outros que não renunciaram às suas subjetividades.

 

Fotografia de Rubens Turci

RUBENS TURCI atua nas interfaces entre a Ciência, Filosofia, Cultura Sintrópica, Ambiente Corporativo, Meio Ambiente, Meditação e o Sagrado. Pós-Doutorado em Cultura da Índia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2009-11). PhD em Social Sciences / Religious Studies pela McMaster University (2001-07), com diploma revalidado como Doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ (2009), onde obteve o Mestrado (1998-00), o Bacharelado e a Licenciatura em Filosofia (1992-97). Graduado em Engenharia Química pelo Instituto Mauá de Tecnologia (1976-81). Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos em Religiões e Filosofias da Índia (NERFI) do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (2012-15). Membro do Grupo de Pesquisa em Religiões e Filosofias da Índia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (2010-15). Membro Fundador do PEIND – Programa de Estudos Indianos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) (2013-19). Pesquisador Associado do Laboratório de Gestão da Comunicação e da Cultura das Organizações da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ (2008-11). Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Escola de Comunicação da UFRJ (2006-07). Tem experiência no ambiente empresarial (Rhodia, CEBRACE e Monsanto) e acadêmico, nas áreas de ensino (McMaster University, Universidade Tiradentes), pesquisa (NERFi/UFJF) e extensão (FACC-UFRJ). Professor voluntário do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) da UFRJ (2019-22). Dedica-se, atualmente, ao desenvolvimento do CORAÇÃO DA TERRA – Núcleo Interdisciplinar de Estudos Avançados de Ciência, Filosofia e Cultura Sintrópica e Meditação, que tem por objetivos (1) adaptar à sociedade os resultados acadêmicos desenvolvidos em torno da Cultura Sintrópica e da Ciência da Meditação, originadas no subcontinente indiano, particularmente na literatura do seu período épico, representado pelo Mahābhārata e a Bhagavad-Gītā e (2) oferecer serviços de mentoria e dos meios para o desenvolvimento da consciência sintrópica. Como filósofo da práxis sintrópica e engenheiro idealizou o programa Aladdin, que oferece soluções de gestão em consonância com a necessidade das empresas de fazerem frente à agenda ESG (Environmental, Social and Governance), estabelecida a partir de 2004. Concebeu e desenvolveu uma nova linha de pesquisa, fundamentada na ciência, filosofia, cultura sintrópica e meditação. Como um primeiro resultado desta pesquisa sobre a fundamentação da filosofia da práxis sintrópica, a partir do conceito de śraddhā, elaborado na Bhagavad-Gītā, concebeu e implementou a disciplina, CMT 014 – Oficina de Estudos: A Arte e a Ciência da Meditação, oferecida desde março de 2019 no CCMN da UFRJ. Pratica meditação desde 1974, tendo sido orientado diretamente por Sri Vajera, um dos pioneiros do movimento espiritualista e introdutor, nos idos de 1920, das práticas de meditação por toda a América Latina, inclusive o Brasil.



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