Sociedade

Padre José Anchieta e as almas dos gentios sem dono | José Manuel Simões

O padre espanhol José Anchieta, da Companhia de Jesus, rosto magro, pálido, crucifixo ao peito, longas vestes escuras, bíblia numa mão e cajado para se amparar na outra, padecia de espinhela caída. As almas sem dono dos índios passaram, qual rebanho, a seguir Anchieta que, para os cativar, imitava pajés, caciques e curandeiros, dançava e cantava com eles, participava nos rituais, fumava o cachimbo da paz e entrava nos transes. Tomado por feiticeiro, até porque, para espanto da tribo, costumava levitar, foi crescentemente gerando entre os parentes tribais um misto de fascínio e admiração.

 

Inteligente que era, o jesuíta aproximou-se intimamente dos líderes indígenas, especialmente da curandeira Piuã, com quem aprendeu a fazer mezinhas, rituais e chás com que curava as maleitas dos nativos. Juntos, colhiam folhas de graviola e de abacate, raiz e vassoura de botão, raspinhas de casca de aroeira que depois de fervidas serviam para tratar problemas de útero inflamado que assaz assolavam as mulheres da tribo. Para doenças de rins e de coração incidiam numa planta que consideravam milagrosa, a espinho de cigano, à qual acrescentavam pitadas de folha de capeira branca bem desfeita. 

Com a curandeira, Anchieta conheceu a complexa arte da cura cerzindo o natural e o espiritual, procurando casar o corpo à direção do espírito através de uma generosa coleção de rezas e orações, eliminando cesuras entre corpo e mente, material e sobrenatural. Aprendeu que no processo de sarar as maleitas dos indígenas tudo se mistura, combina e associa, a reza precedendo a tomada das mezinhas feitas a partir de cascas de árvores, raízes e folhas usadas na forma de vários destilados e chás. 

Anchieta e Piuã eram ambos xamãs que mobilizavam a sua mediunidade e o poder das suas mentes para restabelecerem o equilíbrio dos doentes. Piuã explicava a Anchieta que “cada planta tem um destino, uma serve para pegar o tamanduá, outra o colibri, uma para o inambu, outra para o tatu. É preciso olho vivo e conhecimento para distingui-las. Os rapazes sentem no ar os afrodisíacos, as meninas as folhas que são cheirosas, os homens precisam das que lhes dão força, as crianças das que as ajudam a crescer”. O padre jesuíta espanhol, interessado, percebeu que alguns índios usavam plantas para que os incestos dessem certo, que a doença predominante era gastrointestinal devido ao exagerado consumo de frutos silvestres e vegetais sem serem lavados, que frutos como o abacate eram apreciados especialmente pelos homens pois acreditavam que o consumo lhes aumentava a potência sexual. Em casos de ossos partidos recomendavam pisar o amendoim verde, pondo a pasta “a riba da quebradura”.

O Padre contribuiu para que os índios desenvolvessem os seus processos de produção agrícola,  domesticando o milho, a mandioca doce – à qual chamavam aipim – o amendoim, a abóbora, os feijões, o cacau, a pimenta, a batata, o butiá, o araçá, ensinando a plantar o mamão, espécie trazida pelo colono, que se mantém em frutificação durante todo o ano, podendo extrair-se do fruto as sementes para curar problemas de estômago: “se o problema já estiver muito avançado, mascam-se as sementes e bebe-se o líquido. Se a complicação for menor, basta engolir as sementes que depois saem intatas com as fezes”. Passou a usar o anato, que os tribais conheciam como urucu, que servia de corante e pintura para as danças fundamentais mas também como condimento para sarar queimaduras e repelir insetos.   

 

Mesmo que para a maioria dos fidalgos e jesuítas os índios continuassem a ser vistos, e tratados, como selvagens e demoníacos, padre Anchieta tinha o condão de saber aproximar-se da cultura do Outro para a transformar no objetivo concreto da catequização. Porém, sabia que o Brasil não era propriamente o Éden: “É terra desleixada, remissa e algo melancólica e por esta causa os escravos e os índios trabalham pouco e os portugueses quase nada e tudo se leva em festas, convívios e cantares… e uns e outros são mui dados a vinhos…”, descreveu em carta enviada para o reino. 

 

Fotografia de José Manuel Simões

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos. 

Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
2
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Sociedade