Comemoramos quando governos progressistas chegam ao poder no Brasil e na América Latina. Essas vitórias representam um alento e uma renovação de expectativas, que realimentam a esperança de construção de uma pátria latino-americana! Nós que temos compromisso com a democracia, com a defesa da justiça social, o fortalecimento da cidadania e da dignidade humana, passamos a alimentar o sonho de que tudo vai mudar, de vez, para melhor.
Mas como reconhece em uma de suas palestras Alisson Mascaro, professor de filosofia do direito da Universidade de São Paulo (USP), vitórias de governos de esquerda representam um avanço, mas apenas passageiro, eventual. Isso porque, segundo ele, mudanças mais profundas só ocorrem pela via revolucionária, que inclui a ruptura com as instituições burguesas. Governos de coalização ou de conciliação, como foram e são os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) desde 2003, servem apenas para alimentar a ilusão de uma sociedade melhor e mais justa. Por curtos períodos. Alternados por novos retrocessos. E adiam as mudanças mais profundas que podem fazer o país avançar para o socialismo.
Exemplos recentes de equívocos dos governos de esquerda com a política de conciliação foram os retrocessos com o golpe jurídico-parlamentar, em 2016, e o pesadelo do governo Bolsonaro, a partir de 2019. Como Lula, líder maior do PT e no terceiro mandato, nunca foi revolucionário, não se pode esperar dele iniciativas mais radicais, como, por exemplo, a ruptura com as instituições republicanas. Ele parece seguir fielmente o que disse Otto Von Bismark, ex-primeiro-ministro da antiga Prússia, de que “a política é a arte do possível”. Por isso seu foco na conciliação com as elites brasileiras para viabilizar a governança.
Sem disposição e sem condições políticas favoráveis a uma revolução, nem perspectiva dessa ruptura, espera-se pelo menos uma ofensiva do governo Lula no sentido de avançar na construção de um projeto de Nação, algo que a sociedade brasileira sempre resistiu. Por pura má vontade política de uma elite europeia que migrou para o Brasil para explorar as nossas riquezas, recorrendo a mão de obra indígena, inicialmente, e depois a escrava, trazida acorrentada nos porões de navios negreiros do continente africano por mais de 340 anos.
O caldo de cultura da Casa Grande e da senzala impediu a construção de uma nação brasileira. Essa elite colonial e escravagista não aceita uma nação integrada. Vê o pobre como o inimigo a ser combatido e dominado. Tudo para não perder o controle político e social e ter que abrir mão de seus privilégios históricos.
Essa realidade se apresenta como o maior desafio para o governo atual. Fazer o país avançar do ponto de vista civilizatório. Experiência que o Brasil só presenciou quando da aprovação da Constituição cidadã, em 1988. E durante os primeiros governos do PT, a partir de 2003. De lá para 2022 o país só vivenciou retrocessos, com essa derrocada revelando a disposição de parte expressiva da sociedade em manter o status quo, para que nada mude em termos de inclusão e de justiça social.
O desafio presente do governo é optar por iniciativas voltadas para a massificação e universalização do acesso à educação e ao fortalecimento das políticas de distribuição de renda, de amplo acesso à saúde pública e de interiorização do desenvolvimento econômico e social. No caso da educação, as transformações deveriam ocorrer do ensino fundamental ao ensino superior, passando pela formação profissional. Essas alternativas ampliariam as oportunidades de ingresso da juventude no mercado de trabalho, além de atender as novas demandas por mão de obra especializada em razão do avanço tecnológico.
Os governos Lula e Dilma Rousseff conseguiram avanços expressivos nessa cruzada nacional, mas de forma improvisada e sem foco nos objetivos e estratégias de formulação de um projeto de nação. Embora o governo Lula tivesse a convicção de que programas como o Bolsa Família, o Luz para Todos, o Minha Casa Minha Vida e a universalização e interiorização do ensino superior gratuito eram políticas públicas que estavam na direção certa para um país em desenvolvimento.
A indiferença diante das desigualdades sociais e a defesa do status quo são os maiores obstáculos à construção desse projeto nacional. Algo que ficou mais evidente nos últimos quatro anos com a experiência autoritária do bolsonarismo, marcado por um governo refém do mercado e do sistema financeiro e a serviço do capital. Essa postura conservadora se confundia com a defesa de interesses imperialistas, num alinhamento cego com os Estados Unidos, retirando do Brasil seu protagonismo internacional. Esse legado de terra arrasada levou o novo governo a enfrentar sérias limitações para retomar o projeto mínimo de reconstrução e integração nacional.
E o que seria esse projeto de nação? Um conjunto de iniciativas do governo e da sociedade para a definição de objetivos e diretrizes voltadas para a adoção de estratégias nacionais de construção de uma nação brasileira, que permita criar as condições naturais para o país avançar para uma sociedade solidária, justa e fraterna. O chamado estado de bem estar social.
O passo inicial seria a universalização do acesso ao ensino, para a formação de um pensamento crítico, transformador e libertário, como defendiam os mestres Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Mas esse propósito inclui também a adoção de iniciativas voltadas para a interiorização do desenvolvimento para o combate às desigualdades regionais e sociais. Seria como uma nova “marcha para o interior” do país. Tendo o efeito adicional de reverter o processo de concentração econômica no Sul e Sudeste, a partir da década de 50, em detrimento das demais regiões do país.
As ações incluem, ainda, a universalização do acesso à saúde, com foco na saúde preventiva e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde – SUS, hoje uma referência para o mundo todo. Da mesma forma uma reforma do Judiciário, das Forças de Segurança, com a democratização dessas instituições para que possam servir efetivamente ao bem comum. E adoção de medidas de combate aos vícios da Velha República: o caciquismo, o coronelismo e o fisiologismo, que tornam a sociedade refém das piores práticas políticas e da corrupção.
E o desafio maior: enfrentar o crônico déficit público, que torna o país refém da política de juros elevados para financiar a rolagem dessa dívida junto ao sistema financeiro nacional. Embora parte do déficit resulte dos gastos com investimentos públicos, não se pode ignorar a sangria de recursos com a corrupção e a má gestão da máquina administrativa. Com isso, cerca de um terço da receita da União é destinada ao pagamento dos juros da dívida, algo em torno de R$ 1,8 trilhão este ano. E o Banco Central, como responsável pela definição da política de juros e do controle da inflação, acaba exercendo o papel de gerente e guardião dos interesses do sistema financeiro e dos rentistas.
Para enfrentar esses desafios não basta apenas vontade política do governo, a quem cabe criar, antes de tudo, as condições favoráveis à concretização dessas medidas. É necessário o envolvimento e a disposição da própria sociedade, por meio das lideranças sociais, empresariais e sindicais, no sentido de cobrar as reformas necessárias ao combate de toda forma de privilégio, do “jeitinho brasileiro”, de uma justiça menos elitista e para a consecução dos objetivos de um estado de bem estar social.
Sem uma ampla mobilização popular e sem preparar a sociedade para entender a necessidade e urgência dessas iniciativas, seguiremos lutando pela reeleição de governos progressistas, mas sempre diante do risco de novos retrocessos institucionais e políticos. E a retomada do poder pelas forças conservadoras, a serviço do atraso, da perpetuação dos privilégios de uma minoria que resiste a tudo que represente ameaça ao status quo. Só que em termos de futuro, não há saída para a sociedade brasileira se não ousar enfrentar suas mazelas históricas e insistir na luta em favor da integração da nação brasileira.
Jales Marinho: Jornalista e advogado, Brasília – DF