Resumo: Perante a tempestade perfeita, em que famílias, instituições, capitalismo e civilização não estão a conseguir oferecer perspectivas de esperança, pode adoptar-se uma estratégia interseccional para estabelecer formas de cooperar, em vez de competir, na escolarização, nas profissões e nas ciências, com vista ao bem comum.
A melhor sociologia é centrífuga. Descobre as vergonhas sociais, em vez de as encobrir. Para o sociólogo Thomas J. Scheff, a emoção que promove e quebra as relações sociais próprias da espécie humana é a vergonha. Tanto quanto o polegar oponível ou o córtex frontal, será a proeminência da vergonha que distingue a sociabilidade humana da dos outros animais.
O autor lembra-se da vergonha que sentiu face ao seu pai quando entendeu opor-se à guerra do Vietnam. O dilema moral entre satisfazer a vontade do pai de se apresentar socialmente como um homem pronto para lutar pela pátria e a sua militância antiguerra acompanhou toda a sua vida, incluindo a sua vida académica.
Como sociólogo das emoções, Scheff definiu vergonha como a emoção social, a emoção espoletada para sinalizar riscos na manutenção de vínculos sociais de que as pessoas dependem. A guerra deslaça as famílias e os seus membros, e não só Scheff e a sua relação com o pai.
Esta teorização tem aspectos centrípetos – de redução da complexidade da realidade – e tem também aspectos centrífugos, como a hipótese de a vergonha ser uma emoção caracteristicamente humana e estruturante das relações sociais a todos os níveis.
Entre os aspectos de primeiro tipo destaca-se a especialização da sociologia das emoções. É pensada como um campo autónomo da sociologia, incluindo ensino, investigação e profissionalização. Está separada das outras especialidades da sociologia, das ciências sociais, das ciências e da vida quotidiana. Outro aspecto centrípeto é não se debruçar sobre a natureza humana, embora parta do princípio de que a vergonha é parte essencial dela.
Michael Corballis estuda a natureza humana. Conclui que o que a caracteriza é a recursividade, a necessidade-possibilidade de cada pessoa, grupo, sociedade definir e manter para si uma identidade associada a expectativas. Grande parte do tempo e do trabalho humano são despendidos a elaborar e manter identidades e expectativas. Nesse quadro, a vergonha será um modo de regular o desenvolvimento de expectativas, por exemplo abolir as guerras, em função da necessidade de manutenção da identidade, nomeadamente de continuar orgulhoso de ser filho do seu progenitor e membro de uma pátria belicista. A vergonha será responsável pelo efeito carneirada bem conhecido na política, como efeito de carisma ou turba. A vergonha será também o que promove os efeitos de imitação dos que se querem próximos e de distinção dos que se querem afastados. Cada cultura mobiliza esta emoção e os efeitos aproximação e afastamento a ela associados de forma específica e histórica (ordens sociais no Antigo Regime, classes sociais sob o capitalismo).
Actualmente, as pessoas estão a perder a vergonha de expressar publicamente os seus sentimentos xenófobos ou/e misóginos. Perante a exasperante fragilidade das expectativas e as dificuldades de manter identidades associadas, as pessoas tornam-se mobilizáveis para movimentos políticos racistas e discriminatórios dos direitos de género. Na falta de lugar para debates racionais sobre como enfrentar os problemas sociais e ambientais, procuram-se bodes expiatórios para substituir a raiva contra as elites inalcançáveis, cuja propaganda já não convence toda a gente.
A análise histórico-sociológica da filosofia de Randall Collins calculou levar seis gerações de persistente prática teórica institucionalizada para fixar um paradigma teórico na memória intelectual da humanidade. A sociologia ainda não cruzou essa marca. Se se mantiver unida por mais algumas gerações, a sociologia terá hipótese de se tornar património universal da civilização ocidental. Mas há grandes obstáculos: será a sociologia uma ciência, como as ciências naturais são? Será a sociologia autónoma em relação às ciências sociais, cuja rainha é a economia? Actualmente, a formação de sociólogos procura distinguir-se das formações iniciais dos economistas e dos politólogos, como dos historiadores e dos geógrafos. E não é obrigatório tomar atenção aos progressos das ciências da natureza, da tecnologia ou sequer das outras ciências sociais. Geralmente há mesmo uma aversão a outros assuntos que não sejam os da especialização, sobretudo entre os sociólogos em formação.
Usando a classificação de Thomas Kuhn, os sociólogos são formados para trabalhar em modo de ciência normal, nomeadamente em aplicações estandardizadas das teorias pré-estabelecidas. Não são treinados para contestar, mas antes para aprofundar, a divisão de trabalho disciplinar preexistente. Os aspectos centrípetos das teorias são os mais utilizados no ensino e nas práticas profissionais dos sociólogos, bem como nas outras especializações em ciências sociais. Porém, são os aspectos centrífugos das teorias o que mais favorecem a adaptação da sociologia às circunstâncias históricas e, portanto, a perenidade das ciências sociais.
Entre os aspectos centrífugos da teoria de Thomas J. Scheff há a abertura da sua sociologia à psicologia, à saúde mental, às lutas sociais e à evolução da civilização. Tomando por segura a teoria de Corballis, cada uma destas aberturas confronta-se com a necessidade de manutenção das identidades de grupos académico-profissionais que trabalham a sociologia das emoções e das instituições dedicadas a organizar um quadro atraente de expectativas capaz de criar condições para fazer vingar cada uma das especialidade. As circunstâncias actuais de organização das ciências, através de estímulos financeiros e políticos (regimes de financiamento de projectos de investigação) para servir fins militares e outras políticas públicas e privadas, limitam as possibilidades de teorias anti-belicistas, como as de Scheff, vingarem.
O risco de muitas das teorias sociológicas não vingarem é grande, dada a circunstância da hiperespecialização, a par da separação das disciplinas das ciências sociais entre si e, cereja no topo (e na base) do bolo, a incomunicabilidade estrutural entre ciências da natureza e ciências sociais. Os ataques políticos à manutenção de instituições protectoras das ciências sociais são recorrentes. Dominante é a tendência centrípeta da sociologia, o salve-se quem poder no seu canto hiperespecializado e discreto, de modo a não atrair punições políticas e, também, negociando politicamente com os financiadores as contrapartidas de sobrevivência das subdisciplinas e das respectivas escolas, revistas e actividades de investigação.
Na sequência da política de resgate público dos desmandos privados, alegadamente causados pela ganância de alguns banqueiros expostos pela crise do subprime, em 2008, as ciências sociais e humanas, com destaque para a filosofia e com excepção da economia e gestão, foram politicamente atacadas como sendo inúteis e sem empregabilidade. A reacção das escolas de sociologia foi a de reforçar o relativismo epistemológico e o facilitismo na avaliação para obtenção de certificados escolares. Foi a forma encontrada de atracção de estudantes com vista a manter abertas as escolas redimensionadas em baixa. A lógica do mercado foi reforçada nas universidades e favorece a ciência centrípeta. Torna a ciência centrífuga quase clandestina. “Os estudantes não lêem livros e só querem ver as redes sociais!”, diz-se. Pois. Mas se as universidades se acomodam a isso, em vez de o contrariar, como a sociedade e os estudantes aprenderão que vale a pena ler livros?
As universidades ainda estão protegidas pelo prestígio da meritocracia, das ciências e das profissões. Muitas das análises críticas, sobretudo as que não conseguem desenhar propostas sobre o que fazer para melhorar a situação, acabam por delegar nas escolas e nas universidades a esperança de as novas gerações se comportarem de modo diferente. Porém, o movimento de Greta Thunberg mostrou que os jovens também não sabem o que fazer, mas sabem que as escolas não estão a ser uma ajuda. Com que instrumentos fariam algo, se as escolas e as universidades, como as suas ciências hiperespecializadas, se auto-isolam dos problemas sociais e ambientais, em defesa de privilégios disciplinares e de classe?
Será, porventura, tempo de revisitar as teorias de reprodução que celebrizaram Pierre Bourdieu, as que servem de base às ciências da educação, mas agora não apenas nos seus aspectos centrípetos – de apologia das escolas e dos professores, independentemente das funções sociais meritocráticas e discriminatórias desempenhadas pela educação. O aspecto centrífugo das teorias de Bourdieu mostra como os privilégios sociais herdados são reproduzidos nas escolas por efeitos de vergonha e imitação da maioria dos professores e estudantes, para quem a sua posição social é entendida subjectivamente como privilegiada em relação à situação de outros trabalhadores.
Paulo Freire é muito conhecido e pouco reconhecido, na prática, como pedagogo da emancipação; tal como José Pacheco. As suas experiências pedagógicas, centradas na escola primária, nunca se tornaram dominantes, apesar das evidências da sua superior eficácia cognitiva. Não tenhamos ilusões, é a sua maior eficácia cognitiva que as torna alvo de todas as repressões políticas. Assim, aqui está por onde começar a trabalhar para favorecer os aspectos centrífugos das ciências: criando e institucionalizando comunidades de aprendizagem para crianças e, também, ao longo da vida. As ciências praticadas por comunidades de aprendizagem poderão ser uma fórmula de interseccionalidade entre gerações, tipos de experiência social, níveis de conhecimento disciplinares, tecnociências, ciências centrífugas, para recriação de identidades sociais e expectativas de professores, estudantes e comunidades vizinhas. Assim nos inspire o engenho e a arte que esperamos possam vir em breve em nosso socorro.
Referências:
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Snow, C. P. (1956). Duas Culturas. D.Quixote.
António Pedro Dores, sociólogo, professor universitário aposentado, autor dos blogs https://sociologia.hypotheses.org/ e https://libertacao.hypotheses.org/