Poesia & Conto

Contos | Rita Tormenta

Foto de Lizgrin F na Unsplash

Mate

 

A manhã fora disparada por um estampido.

 

Sentei-me na cama e abanei-o até que acordasse.

O som seco repetiu-se e nem o chiar dos travões do autocarro o camuflava.

– Pareciam tiros- disse-lhe.

– Eram tiros, tens bom ouvido, para burguesa.- respondeu-me.

– Então alguém pode precisar de ajuda…

-Aqui há sempre alguém que precisa de ajuda, mesmo quando não se ouvem tiros, sobretudo quando não se ouvem tiros, diria.

– É melhor ir embora. 

– Agora não, espera, ser testemunha involuntária não é coisa que devas querer.

Aguenta um pouco.

Gostas de Mate?

– Ouvimos tiros aqui ao lado e a ti só te ocorre saber se gosto de chá?

-Mate não é um chá. 

Tem inúmeras propriedades 

– Alguém pode estar morto aqui ao lado.

E isso em ti só provoca uma vontade de beber chá?

– Teimosa, Mate é muito mais que um chá. 

– Tenho que ir embora. 

– Vá não sejas burguesinha mimada. Agora não podes sair.

– Estou sob sequestro?

– A intenção é proteger-nos.

Escolhe música, aumenta o volume e vê se te distrais.

Vou preparar o Maté.

Volto num instante. 

– Tenho mesmo que ir embora.

Sabes se demora muito até resolverem as coisas?

– Não espreites, isto não é uma série.

E eu vivo aqui todos os dias.

Tenta distrair-te.

Vou explicar-te tudo o que aprendi sobre o Mate.

– Achas que mataram alguém?

– É um ritual, como para os Japoneses.

Vais compreender quando o partilharmos. 

O Mate é um poderoso laço sem corda. 

Um amante dedicado sem dedos nem boca, um calor sem chama, uma verdadeira oferenda de amizade.

Quem o bebe é invadido por calmas e pacíficas intenções.

– Já devia ter ido embora.

– Concordo, aqui as histórias repetem- se. 

Não começam nem acabam. 

Somos animais a perseguir a própria cauda.

A Mansarda da Glória

O funcionário acabrunhado da única papelaria do bairro, ganhou coragem e convidou a mulher que cheirava sempre a velas apagadas e falava com as mãos para um jantar em sua casa.

O homem vivia sozinho no último andar de um prédio na Calçada da Glória. 

Toda a decoração era anos 70, até os cortinados eram pretos com círculos concêntricos em amarelo e laranja.

A mulher chegou com  desenvoltura ao patamar, trazia um saco de plástico com duas garrafas de vinho e duas cervejas:

-Como não conheço os seus gostos trouxe variedade para poder escolher à sua vontade. 

O homem foi agradecendo, aproveitou para dizer que raramente bebia, só abria excepção para o licor de pera que o primo fazia e lhe dava pelo natal.

A mulher deu-lhe uma pancadinha no ombro e sentenciou:

-Ó homem, dia  não são dias, hoje vai ser tudo diferente. 

Esta sua casa é um achado, os móveis foram escolhidos por si?

Isto parece uma viagem no tempo.

O homem acabrunhado não percebeu se era um cumprimento mas começou a desfiar a história da vida.

– Isto era dos meus paizinhos e esteve fechada quase 30 anos.

Já tínhamos esta casinha quando o meu paizinho teve um desaguisado com o patrão e tivemos que ir embora.

Fomos para França mas o paizinho percebia era de construção e reparação de barcos e depois fomos para Hamburgo. 

Aqui em Portugal deu-se nessa altura aquela coisa, e os meus paizinhos emprestaram a casa à Prima Minda que veio fugida de Lourenço Marques mas ela casou e foi para Odivelas.

E a casa esteve fechada.

Os paizinhos lá juntaram para um carro, logo na primeira vez que abalaram de Hamburgo para vir a Portugal foram abalroados por um camião desgovernado e nunca chegaram cá. 

Eu fui ficando por lá, em Hamburgo. 

Mas um dia vim, de avião que os carros não são de confiança. 

A mulher que cheirava a velas apagadas  ia fazendo esgares de falso interesse e acabou por interromper o homem:

-Olhe que o comer ainda se esturrica todo, e traga lá um saca rolhas para brindarmos, no fim das contas só tem esta casinha porque os seus paizinhos bateram a bota.

O homem acabrunhado atravessou o corredor a falar com o gato.

– Não, Adamastor, esta também não é a tal…

colibri rabo de tesoura.

Desenho as letras para te enviar esta derradeira missiva.

Cortei o cabelo.

Fiz primeiro uma trança muito apertada e depois cortei-a. A tesoura da cozinha está romba e mastigou o cabelo. Guardei-a inteira na caixa de bombons que me deste no natal passado.  

Levo dois vestidos de veludo preto, dois cardigans com alguns anos e as botas de carneira que comprámos juntos no Alentejo. Lembras-te? Botas iguais para caminhos que se querem juntos. Eram o nosso anel de compromisso. 

Deixo aqui tudo o resto.

Entro amanhã no mosteiro. 

Escolhi pelas fotografias, primeiro um em Espanha, descobri que era um museu há muito tempo e outro no norte, Singeverga, imaginei-me lá muitas vezes mas é um mosteiro masculino. 

Oiço o teu riso, sim, sou desajeitada, trama bem arquitectada e um erro grosseiro nem o mosteiro me aceita. 

Entrar num mosteiro é um pormenor físico, os votos foram feitos há algum tempo. 

Se voltasse a falar teria a voz suja pelo prolongado silêncio. Talvez pigarreasse como tu fazias ao acordar. 

Um dia zangaste-te comigo por causa do volume dos meus pensamentos:

– Estás a fazer imenso barulho a pensar, não me consigo concentrar no acto. É  impossível!

Nessa altura pedi ao médico de família uma receita para evitar os pensamentos.

Mas tu aborreceste-te com a indolência.

E eu, agora sem pensamentos, não me apercebi.

A bruxa do 9º D apanhou-me no elevador e fez questão de dizer que andas em palpos de aranha com uma delambida qualquer. 

Tentei o Joaquim da funerária mas aquele só quer festa.

Ao menos a Pantufa e o Bolinha não me aborrecem por ter pêlos debaixo dos braços e usar cuecas da feira e não me maquilhar como as galdérias.

 Já não saltam quando chego mas tomo-o como um pacto perfeito e não como desinteresse. 

Os nossos filhos saíram a ti.

São uns estupores, só aparecem para pedir dinheiro ou para lhes lavar a roupa. 

Hoje foi o último dia na repartição.  Fizeram um bolo e tudo.  O Inácio cantou um fado, tantos anos a trabalharmos lado a lado e não sabia da sua linda voz. Se soubesse haveria de ter ido com ele aos fados.

A minha roupa podes doar à caridade. 

Só não vistas a delambida com ela, haverias de te aborrecer.

E tu, trata de comer decentemente, andas tão magrinho.

Se a delambida não souber fazer pézinhos de coentrada ou iscas de cebolada, podes ir à Pachequinha à 4ª feira, era lá que eu ia buscar, tu nunca soubeste, as miudezas sempre me enojaram.

Agora adeus, está a fazer-se tarde e amanhã meto-me ao caminho muito cedo.

 

fotografia de Rita Tormenta

Rita Tormenta nasceu no Porto em 1970, cresceu em Lisboa e vive desde 2018 em Almada.

Formação académica superior na área do Teatro.

Já foi professora, estalajadeira, empregada de mesa, coordenadora de projectos, cantoneira digital, actriz e marionetista.

Tem filhos, uma gata, algumas plantas, alguns amigos e alguns ideais, nem sempre acerta na quantidade de água a dispensar a cada um.

Publicou o primeiro livro “Centrifugar angústias a 1600rpm” em 2022 e o Segundo “O Pequeníssimo livro de TI” em 2023, o terceiro chegará um dia.

Neste momento mantém (com Luís Filipe Sarmento) a tertúlia mensal “3 às 4as” em Almada, co-organiza (com Elisa Scarpa) o evento Anual- AQUI VAI LIVRE- um lançamento literal e colectivo de livros, e é coordenadora (curadoria de Lauren Mendinueta) da 2ª Noite da Literatura Ibero-Americana em Lisboa ( OEI) Setembro em Lisboa.

 

Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
0
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.