Mate
A manhã fora disparada por um estampido.
Sentei-me na cama e abanei-o até que acordasse.
O som seco repetiu-se e nem o chiar dos travões do autocarro o camuflava.
– Pareciam tiros- disse-lhe.
– Eram tiros, tens bom ouvido, para burguesa.- respondeu-me.
– Então alguém pode precisar de ajuda…
-Aqui há sempre alguém que precisa de ajuda, mesmo quando não se ouvem tiros, sobretudo quando não se ouvem tiros, diria.
– É melhor ir embora.
– Agora não, espera, ser testemunha involuntária não é coisa que devas querer.
Aguenta um pouco.
Gostas de Mate?
– Ouvimos tiros aqui ao lado e a ti só te ocorre saber se gosto de chá?
-Mate não é um chá.
Tem inúmeras propriedades
– Alguém pode estar morto aqui ao lado.
E isso em ti só provoca uma vontade de beber chá?
– Teimosa, Mate é muito mais que um chá.
– Tenho que ir embora.
– Vá não sejas burguesinha mimada. Agora não podes sair.
– Estou sob sequestro?
– A intenção é proteger-nos.
Escolhe música, aumenta o volume e vê se te distrais.
Vou preparar o Maté.
Volto num instante.
– Tenho mesmo que ir embora.
Sabes se demora muito até resolverem as coisas?
– Não espreites, isto não é uma série.
E eu vivo aqui todos os dias.
Tenta distrair-te.
Vou explicar-te tudo o que aprendi sobre o Mate.
– Achas que mataram alguém?
– É um ritual, como para os Japoneses.
Vais compreender quando o partilharmos.
O Mate é um poderoso laço sem corda.
Um amante dedicado sem dedos nem boca, um calor sem chama, uma verdadeira oferenda de amizade.
Quem o bebe é invadido por calmas e pacíficas intenções.
– Já devia ter ido embora.
– Concordo, aqui as histórias repetem- se.
Não começam nem acabam.
Somos animais a perseguir a própria cauda.
A Mansarda da Glória
O funcionário acabrunhado da única papelaria do bairro, ganhou coragem e convidou a mulher que cheirava sempre a velas apagadas e falava com as mãos para um jantar em sua casa.
O homem vivia sozinho no último andar de um prédio na Calçada da Glória.
Toda a decoração era anos 70, até os cortinados eram pretos com círculos concêntricos em amarelo e laranja.
A mulher chegou com desenvoltura ao patamar, trazia um saco de plástico com duas garrafas de vinho e duas cervejas:
-Como não conheço os seus gostos trouxe variedade para poder escolher à sua vontade.
O homem foi agradecendo, aproveitou para dizer que raramente bebia, só abria excepção para o licor de pera que o primo fazia e lhe dava pelo natal.
A mulher deu-lhe uma pancadinha no ombro e sentenciou:
-Ó homem, dia não são dias, hoje vai ser tudo diferente.
Esta sua casa é um achado, os móveis foram escolhidos por si?
Isto parece uma viagem no tempo.
O homem acabrunhado não percebeu se era um cumprimento mas começou a desfiar a história da vida.
– Isto era dos meus paizinhos e esteve fechada quase 30 anos.
Já tínhamos esta casinha quando o meu paizinho teve um desaguisado com o patrão e tivemos que ir embora.
Fomos para França mas o paizinho percebia era de construção e reparação de barcos e depois fomos para Hamburgo.
Aqui em Portugal deu-se nessa altura aquela coisa, e os meus paizinhos emprestaram a casa à Prima Minda que veio fugida de Lourenço Marques mas ela casou e foi para Odivelas.
E a casa esteve fechada.
Os paizinhos lá juntaram para um carro, logo na primeira vez que abalaram de Hamburgo para vir a Portugal foram abalroados por um camião desgovernado e nunca chegaram cá.
Eu fui ficando por lá, em Hamburgo.
Mas um dia vim, de avião que os carros não são de confiança.
A mulher que cheirava a velas apagadas ia fazendo esgares de falso interesse e acabou por interromper o homem:
-Olhe que o comer ainda se esturrica todo, e traga lá um saca rolhas para brindarmos, no fim das contas só tem esta casinha porque os seus paizinhos bateram a bota.
O homem acabrunhado atravessou o corredor a falar com o gato.
– Não, Adamastor, esta também não é a tal…
colibri rabo de tesoura.
Desenho as letras para te enviar esta derradeira missiva.
Cortei o cabelo.
Fiz primeiro uma trança muito apertada e depois cortei-a. A tesoura da cozinha está romba e mastigou o cabelo. Guardei-a inteira na caixa de bombons que me deste no natal passado.
Levo dois vestidos de veludo preto, dois cardigans com alguns anos e as botas de carneira que comprámos juntos no Alentejo. Lembras-te? Botas iguais para caminhos que se querem juntos. Eram o nosso anel de compromisso.
Deixo aqui tudo o resto.
Entro amanhã no mosteiro.
Escolhi pelas fotografias, primeiro um em Espanha, descobri que era um museu há muito tempo e outro no norte, Singeverga, imaginei-me lá muitas vezes mas é um mosteiro masculino.
Oiço o teu riso, sim, sou desajeitada, trama bem arquitectada e um erro grosseiro nem o mosteiro me aceita.
Entrar num mosteiro é um pormenor físico, os votos foram feitos há algum tempo.
Se voltasse a falar teria a voz suja pelo prolongado silêncio. Talvez pigarreasse como tu fazias ao acordar.
Um dia zangaste-te comigo por causa do volume dos meus pensamentos:
– Estás a fazer imenso barulho a pensar, não me consigo concentrar no acto. É impossível!
Nessa altura pedi ao médico de família uma receita para evitar os pensamentos.
Mas tu aborreceste-te com a indolência.
E eu, agora sem pensamentos, não me apercebi.
A bruxa do 9º D apanhou-me no elevador e fez questão de dizer que andas em palpos de aranha com uma delambida qualquer.
Tentei o Joaquim da funerária mas aquele só quer festa.
Ao menos a Pantufa e o Bolinha não me aborrecem por ter pêlos debaixo dos braços e usar cuecas da feira e não me maquilhar como as galdérias.
Já não saltam quando chego mas tomo-o como um pacto perfeito e não como desinteresse.
Os nossos filhos saíram a ti.
São uns estupores, só aparecem para pedir dinheiro ou para lhes lavar a roupa.
Hoje foi o último dia na repartição. Fizeram um bolo e tudo. O Inácio cantou um fado, tantos anos a trabalharmos lado a lado e não sabia da sua linda voz. Se soubesse haveria de ter ido com ele aos fados.
A minha roupa podes doar à caridade.
Só não vistas a delambida com ela, haverias de te aborrecer.
E tu, trata de comer decentemente, andas tão magrinho.
Se a delambida não souber fazer pézinhos de coentrada ou iscas de cebolada, podes ir à Pachequinha à 4ª feira, era lá que eu ia buscar, tu nunca soubeste, as miudezas sempre me enojaram.
Agora adeus, está a fazer-se tarde e amanhã meto-me ao caminho muito cedo.
Rita Tormenta nasceu no Porto em 1970, cresceu em Lisboa e vive desde 2018 em Almada.
Formação académica superior na área do Teatro.
Já foi professora, estalajadeira, empregada de mesa, coordenadora de projectos, cantoneira digital, actriz e marionetista.
Tem filhos, uma gata, algumas plantas, alguns amigos e alguns ideais, nem sempre acerta na quantidade de água a dispensar a cada um.
Publicou o primeiro livro “Centrifugar angústias a 1600rpm” em 2022 e o Segundo “O Pequeníssimo livro de TI” em 2023, o terceiro chegará um dia.
Neste momento mantém (com Luís Filipe Sarmento) a tertúlia mensal “3 às 4as” em Almada, co-organiza (com Elisa Scarpa) o evento Anual- AQUI VAI LIVRE- um lançamento literal e colectivo de livros, e é coordenadora (curadoria de Lauren Mendinueta) da 2ª Noite da Literatura Ibero-Americana em Lisboa ( OEI) Setembro em Lisboa.