Sociedade

Hong Kong – o fascinante caos | Sara Neves

Entre as várias restrições do tempo de pandemia em Macau, a distância logística a que Hong Kong ficou foi uma das mais difíceis de aceitar. Para grande parte da comunidade portuguesa em Macau, Hong Kong era uma visita quase mensal, uma hora de viagem e sentíamos passar da aldeia para a cidade grande. Ao falar em Hong Kong, imagino que pensem numa selva de torres muito altas e muito próximas, animadas por neons coloridos e habitadas por um enxame de pessoas. Quem visitou a cidade de forma breve talvez acrescente a essa imagem o contraste que advém da convivência dos mercados e tascos de rua com as marcas de luxo e restaurantes de topo, talvez refira ainda a vida noturna animada e a agenda cultural activa da cidade. Embora tudo isto seja verdade, são descrições genéricas que serviriam para muitas outras cidades asiáticas, e esta é demasiado singular para caber em descrições genéricas.

 

Hong Kong é uma alucinante megametrópole numa geografia desapropriada. As mega-construções multiplicam-se e escalam encostas, as árvores apropriam-se dos muros e as pessoas (muitas pessoas!) estão por todo lado em ritmos intensos subindo e descendo colinas e escadas. Em 2018, após vir a Macau, Nuno Markl passou pela cidade vizinha e, n’ O Homem Que Mordeu o Cão, descreveu-a assim: ”É como o filho que nasceu de uma relação sexual embriagada entre Nova Iorque e o centro comercial Colombo dentro de uma loja chinesa”. Parece-me material para capa de guia turístico.

 

 

No entanto Hong Kong tem também, espalhadas pelas suas mais de 263 ilhas, extensas áreas verdes protegidas e praias paradisíacas que, ignorando a presença dos búfalos de água, estão desertas. Mesmo na ilha de Hong Kong, a principal, uma grande área verde é protegida, onde é possível fazer longas caminhadas na natureza. Na mesma ilha, a uma distância de 7km do epicentro da agitação, encontramos praias com avisos sobre tubarões dignos de territórios remotos. É impressionante como uma cidade desta dimensão e densidade se conseguiu formar numa geografia tão desafiante, e é louvável a sua capacidade de resistência à especulação. Este convívio entre duas facetas tão diferentes, urbanidade e natureza, praia, montanha e cidade no mesmo espaço, o betão intercalado com palmeiras, fazem-me, por vezes, lembrar o Rio. Mas sobre o Rio falaremos em breve, fica prometido. 

 

Em 2016, quando a perspectiva de um futuro pela Ásia ainda estava longe, trabalhei na Trienal de Arquitectura de Lisboa na exposição do CCB que era especialmente focada nos processos de urbanização do século XX. Como não podia deixar de ser, Hong Kong aparecia em mais do que um trabalho – um deles, curiosamente, vizinho de um outro projecto sobre o Rio de Janeiro. Dediquei algum do tempo passado na exposição a analisar o projecto Cities without Ground que apresentava Hong Kong como uma cidade sem chão, e se propunha a mapeá-la de uma forma tridimensional. Hoje posso dizer que não há estudo nem leitura que prepare para a dimensão da questão. Quando os autores referem “sem chão” estão a apontar para o facto da circulação massiva de pessoas não ser apenas feita no tradicional plano da rua. Esta multiplica-se para pisos subterrâneos e passagens superiores, questionando os princípios básicos de planeamento urbano, como a própria definição de rua e os limites entre espaço público e privado. 

 

Há pouco tempo dizia a uma amiga de Portugal que visitava Hong Kong pela primeira vez que a sensação de desorientação faz parte da experiência desta cidade. Num mundo de Google Maps e partilha de direcções, Hong Kong permite (ou obriga) o visitante a reviver a saborosa (ou angustiante) experiência de se sentir perdido. Até o melhor sentido de orientação é posto à prova pelas inúmeras passagens superiores que atravessam shoppings e átrios de grandes edifícios de escritórios, e estações de metro que são pequenas cidades. O cartão para os transportes públicos de Hong Kong chama-se Octopus (polvo), o que me parece bastante apropriado para um local onde uma das estações de metro tem 26 saídas.

 

A primeira vez que visitei Hong Kong foi no meu aniversário em 2017. Antes da construção da enorme ponte que liga Macau a Hong Kong, quase duas dezenas de jovens estagiários do Inov Contact, recém-chegados a terras asiáticas, embarcaram num jetfoil em direção a um novo mundo. Foi explosivo. Descobrimos que, apesar de estarmos do outro lado do mundo, podemos passar uma noite a conviver na rua como se estivéssemos no Bairro Alto, mas com a vantagem de termos uma 7/11, as famosas lojas de conveniência, em cada esquina. O dia seguinte foi arrastado e a noite, tendo em conta os níveis de energia, nada prometia. Até que Hong Kong nos mostrou a sua arte – os encontros imprevisíveis que resultam deste fascinante caos. No sobe e desce do percurso entre as duas 7/11 favoritas, notámos que, numa rua secundária, um outro grupo de jovens internacionais dançava no meio da rua. Como bons embaixadores das relações internacionais que o Inov nos pede para ser juntamo-nos a eles; como bons embaixadores de Portugal acabamos a cantar o Apita o Comboio enquanto, claro está, dançávamos em comboinho com os nossos novos amigos. Depois de mostrarmos esta e outras pérolas da cultura popular portuguesa descobrimos que o grupo que tínhamos diante de nós não eram apenas “um grupo com jeito para dançar”, mas sim a companhia de bailado da Pina Bausch, que terminava nessa noite o espetáculo que tinham em exibição na cidade. Obrigada Hong Kong por esse aniversário memorável. No final da visita prometemos regressar todos os meses sem saber que entre guarda-chuvas amarelos e máscaras azuis íamos ficar muito longe de o cumprir. Por outro lado, e apesar do nosso incumprimento, Hong Kong manteve a sua promessa de nos continuar a surpreender em cada visita.

 

  

Fotografia de Sara Neves

Arquitecta de profissão, Sara Neves é de Gondomar, estudou na Soares do Reis no Porto, e mais tarde, na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Durante o curso, fez intercâmbio de um ano no Rio de Janeiro. Desde 2017, vive em Macau onde trabalha num escritório de Arquitectura, principalmente em projectos de obra pública. 

O gosto pelas viagens começou cedo e hoje já visitou mais de 30 países, em 4 continentes e em diferentes tipos de viagens.

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