Poesia & Conto

Um dia de cada vez | Cecília Barreira

Tinha quase cinquenta anos. Trabalhava num hospital.

As amigas incentivavam-na a conhecer, num país de África, um qualquer namorado.

Ela, que só poderia ser por interesse.

E era, qual o problema?

Até falavam inglês.

Poderia casar e tudo.

Ia sentir-se constrangida.

Era prostituição.

Lá foi para África. E havia desde rapazes de dezoito anos até aos da idade dela.

O grupo de amigas era extrovertido.

Os rapazes metiam-se com elas nos bares.

Respondiam com bacoradas.

Tudo isto um pouco antes da pandemia mundial.

Havia um rapaz muito novo, com ar tímido, que se escondia por entre os colegas mais atrevidos.

Tentou falar com ele.

Informou que era casado e já tinha dois filhos. Com apenas dezanove anos.

― E o que fazes por aqui? ―

― O mesmo que eles. Procuro dinheiro ―.

― Recebes pouco? ―

― Aqui ninguém vive bem ―.

― E és capaz de arranjar dinheiro em troca de sexo? ―

― Acho que teria de beber uns copos para não pensar ―.

E ficaram por ali a debitar umas palavras.

Ela disse-lhe que não apreciava estes esquemas.

Mas viera com amigas sem grande pudor.

Pediu-lhe para conhecer os filhos.

Estavam com a mãe.

Foram.

Aí viu Tess, a mulher de Sand.

Os meninos brincavam soltamente.

― Nunca pensaram em ir trabalhar para a Europa?

― Era muito difícil ―.

Alguns homens casavam com europeias. E o contrário?

Era quase impossível.

Perguntou a Tess como se sentia com esta invasão de europeias no País.

Que não se importava.

Era mais uma questão monetária.

De repente, entra Octavio.

Já mais velho. O olhar vivo.

Repara em Joelma.

Sand apresenta-a.

― Venha comigo a um local diferente ―.

Sand acompanhava-os.

Chegaram a um bar onde raparigas negras, menores de idade, estavam com velhos brancos.

Ficou chocada.

Eram adolescentes.

― Esta é a nossa realidade ― disse Octavio.

As meninas, algumas, não tinham mais de doze ou treze anos.

Octavio apontou discretamente para uma menina.

Era sua filha.

― Mas porque a deixa aqui? ―

― Eu levo-a daqui. Mas ela volta sempre ―.

Joelma perguntou se poderia falar com a jovem.

― Porque estás aqui? ―

― És cliente? ―

― Não. Não sou cliente. Tu és muito novinha para estares aqui ―.

― Sabes lá o que é a miséria ―.

― Não sei. Mas talvez te possa ajudar ―.

― Como? ―

― Não tenho filhos. Podia adotar-te ―.

― Não quero ir para a Europa ―.

― Porquê? ―

― Os negros são olhados com preconceito ―.

― E aqui, não? ―

Encolheu os ombros. Virou-se e foi para o outro lado do bar.

Joelma regressa para perto dos dois amigos.

― Ela já está muito desiludida com tudo, apesar de ser ainda uma criança ―.

Octavio explicou que quando a privação material é muita, o desespero também o é.

Ele próprio pretendia ir viver para um país europeu.

E logo se veria.

Sand disse que se Octavio fosse, ele também iria.

Joelma ficou a matutar no assunto.

― Que lhes pagava as viagens e os vistos. Poderiam viver um mês em casa dela ―.

Quando Joelma referenciou às amigas este encontro pouco casual, elas criticaram-na. Afinal não sabia ao certo quem eles eram.

Joelma recomeçou a pensar no assunto. E ficou receosa.

Pediu na agência de viagens para regressar o mais depressa possível.

Para trás ficavam Sand e Octavio.

Afinal não possuía assim tanto dinheiro.

E quando chegou ao seu país sentiu um alívio.

Podia beber, comer, ter acesso aos cuidados básicos.

Não havia mais lugar para dúvidas existenciais.

Tinha uma profissão. Era bem paga.

Para longe os amores.

Para longe os afetos.

Um dia de cada vez.

Fotografia de Cecília Barreira.

 

Cecília Barreira leciona Cultura Portuguesa na FCSH/UNL. É autora de muitos livros de poesia e ensaio. Colabora em várias revistas, entre elas a Incomunidade.



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