Cultura

O verso vivo | Maurício Vieira

 

Outrora um sábio, a fim de estabelecer contato com uma sabedoria maior do que a sua, dirigia-se a uma árvore no bosque.  Ali ele acendia uma chama em oferenda ao sagrado, e proferia palavras em prece.  Aquele que o sucedeu esqueceu como acender a chama, mas sabia chegar na árvore no bosque e também as palavras da prece.  Seu sucessor no entanto esqueceu-se das palavras da prece e também como acender a chama, mas ainda sabia chegar até aquela árvore.  Gerações depois, já não se sabia nem que havia uma prece, que era preciso acender uma chama, e a árvore havia sido cortada há muito tempo.

 

Árvore

 

A bióloga Robin Wall Kimmerer, da etnia indígena norte-americana Powatomi, revela que o idioma deste povo gravita em torno de uma distinção entre o que está vivo e o que não está. É uma linguagem que valoriza os seres vivos e não os objetos.  Os limites do nosso idioma são os limites do nosso mundo, afirmou Wittgenstein.  Haveria espaço para afirmar o contrário, de que nossa visão de mundo limita nosso idioma? Para aprender a ouvir as plantas, Robin se aproximou do modo de vida dos Powatomi, que expressam na linguagem sua relação com os seres vivos. Suas palavras ainda carregam o som dos pássaros e outros animais, pois possui menos letras em seu alfabeto, tornando as combinações de sons muito mais próximas dos que se ouve na natureza.  Afinal para tantos povos que vivem na floresta, os animais são parentes.  A antropologia esquematiza das mais variadas formas as maneiras de relações entre humanos, animais e entidades. Diferentes povos possuem palavras para se relacionarem com estes seres que nossas gramáticas eliminaram há muito tempo, quando ocorreu as divisões entre floresta, campo e urbe.

 

Francis Hallé, botânico francês, afirma que “sob os trópicos húmidos, os membros de etnias silvícolas são unânimes a considerar que as plantas são, de uma certa maneira, ‘pessoas’. Estas crenças, propagadas pelos curandeiros, têm sido repertoriadas entre os ameríndios …elas se generalizam ao coletivo de grupos ameríndios de florestas planas. Na Europa estas ideias chocam; mas em quem é preciso crer, no Ocidental que nega a personalidade das plantas sem jamais lhes ter dado atenção, ou ao curandeiro, que passa a vida inteira em contato com as floras mais ricas do mundo, penetrando a intimidade de milhares de plantas, tornando-se para elas mais que um familiar, um cúmplice?”  

 

A cientista ambiental Jessica Hernandez, do povo Ch’orti Maia, afirma que “somos parte da terra e da natureza, e nossos mitos de origem focam nisto.  Não somos donos da terra, mas coexistimos como parentes.”  Se este elo de parentesco com os outros seres se perdeu, ainda assim, alguns conseguiram ensaiar uma aproximação. Sob uma figueira Sidarta atingiu a iluminação, e a mesma árvore acolheu a conversão de Agostinho de Hipona.  Nos primórdios da cultura grega, afirma Platão que um carvalho em Dodona era oráculo. Foi à sombra de uma árvore fora de Atenas que Socrátes, tão urbano e cético do vegetal, pôs-se a declamar em ditirambos. Para Roland Barthes as árvores são alfabetos, e que destas árvores-letras, a palmeira é a mais bela. Goethe, em carta ao botânico Von Martius, aborda a reverência de ambos perante a palmeira, de fundo ancestral, mas afirma que há algo que vai além do deleite estético, “o que a natureza nos diz e, sem o auxílio de fantasias ou paixões, desvela com um olhar verdadeiro o que há de mais elevado e o traz para o campo do conhecimento”.  

 

“Nós não somos sutis o suficiente para perceber o fluir possivelmente absoluto do devir; o permanente só existe graças a nossos órgãos grosseiros que resumem e trazem as coisas a planos comuns, ao passo que nada existe sob esta forma.  A árvore é a cada instante uma coisa nova; afirmamos a forma porque não absorvemos a sutilidade de um movimento absoluto,” confessa Nietzsche. Ele, num jardim em Sorrento, nomeou “Gedankenbaum”, ou árvore de pensamento, um limoeiro que o inspirava com ideias cada vez que passava sob sua copa.  

 

Alguns de nós diante de uma árvore deixamos de pensar, de ser possuídos por palavras, para nos sentirmos apenas próximos de algo para o qual não há palavras em idioma algum. 

 

Prece

 

Aquilo que filósofos, cientistas, pensadores e poetas intuem sobre a árvore está entranhado na visão de mundo de povos autóctones. É quando o xamã ianomâmi Davi Kopenawa escreve que os xapiri “escutam essas árvores amoa hi com muita atenção.  O som de suas palavras penetra neles e se fixa em seu pensamento.  […]  É assim que conseguem aprendê-los. Sem eles, não poderiam fazer sua dança de apresentação.  Todos os cantos dos espíritos provêm destas árvores muito antigas. Desde o primeiro tempo, é delas que obtém suas palavras.”

 

Nas sociedades agrárias a palavra adquiriu um outro elo com o vivo.  A própria maneira de expressar as relações com o vivo diferenciou-se. A árvore participa da prece como coadjuvante, como meio de acesso a uma divindade que a anima.  Posteriormente houve um novo distanciamento quando a prece se orientou a uma só divindade criadora que legou toda a criação a apenas uma criatura. Priorizou-se a relação entre criador e criação.  O ser humano incumbiu-se de controlar a natureza, ele que é incapaz de controlar a própria. A árvore sagrada foi cortada para dar lugar ao templo de pedra.  A prece à árvore foi proibida e esquecida. 

 

Este corte foi brutal, pois a palavra, instrumento eficaz na evocação de um ser vivo, um objeto ou uma ideia, sempre teve poder. Os poetas reverenciam a palavra pois conhecem sua força, sabem por instinto que a palavra realiza a travessia entre o inconsciente e o consciente, entre a emoção e sua expressão. O poeta resgata pela palavra o que pode ser compreendido sem palavras, através de uma expressão que vai além da sintaxe, da gramática, das camisas de força da linguagem. Busca resgatar o animal que aprisionamos dentro de nós, que nos liga a outros seres e modos de vida, como o das plantas, dos fungos, e até os menos visíveis.  É neste sentido que Novalis sustenta que a verdadeira linguagem poética deve ser orgânica e viva.  

 

A poesia reflete o modo de vida de uma sociedade e logo sua linguagem.  A origem da poesia está em rituais onde a prece era feita de corpo inteiro.  Ninguém menos que Paul Valéry afirma que durante séculos a palavra poética foi usada como encantamento.  O ritual utiliza o corpo e a palavra para pactuar com o poder contido numa planta ou num animal.  Poesia é fragmento de ritual de magia.  A prece liga o corpo humano ao corpo social e a todo o vivo que os rodeia.  A palavra dita de uma forma não corriqueira é componente integral do ritual. Os povos da floresta ainda possuem esta relação com a palavra como prece que nossa civilização silenciou.  Nos recordam da função encantatória do dizer poético. Hoje não batemos mais o pé no chão para marcar o ritmo do feitiço.  A métrica e a rima são o que restou de ritual, mas esquecemos que eram utilizados não por beleza ou zelo formal e sim para dar cadência e consistência à palavra tornada divina, chamadora de entidade. Amitav Ghosh em Jungle Nama sustenta que a poesia metrificada de antigas orações bengalis favorece a intercedência dos deuses.  Ezra Pound afere o que restou desta prática quando afirma que a poesia busca o momento mágico.   

 

Seria a nostalgia que Octavio Paz diagnosticou na pessoa moderna um anseio por um ritual não refletido nas instituições religiosas e públicas atuais?  Falta algo de vivo nestes rituais e preces.  Numa sociedade que nega o corpo, que esconde a animalidade como vergonha, a poesia expressa nossas neuroses, histerias, desconfortos, aflições, ansiedades, em gradações de enfermidade.  Cabe ao poeta celebrar os loucos, os inconformados, que refazem a ponte com os cultos originais, os mistérios, com ritmos orgânicos, com o pé e a mão, antes da gramática e da métrica.  Drummond nos ensina a resgatar a palavra poética do estado de dicionário para a alçar ao estado de poesia. Manoel de Barros nos diz que é preciso entrar em estado de árvore. São intuições importantíssimas, mas são poucos os que ainda se lembram que é preciso alçar a poesia ao estado de prece.  Hölderlin é destes, quando diz que para os antigos a arte poética era por definição um alegre serviço religioso, que almejava aproximar os deuses e os homens. 

 

Chama

 

O vivo é chama, é calor, é transformação de energia.  Compartilhamos a chama que acalenta com quem amamos, o pão que foi à chama com nossos companheiros.  Afugentamos o que nos ameaça com outra chama.  Mas nosso calor se esvai nas atribulações da sociedade atual, com seus ciclos de produção, acumulação e destruição. A maneira como portamos e dissipamos nosso lume já vem deste antigo corte da relação com a floresta.  Desde que descemos da árvore e ela deixou de ser casa, ela se tornou apenas matéria a ser cortada e manipulada para nossas necessidades. A floresta passou a servir somente como lenha a ser cortada e queimada, para dar espaço ao campo e à cidade.   Hoje o mais insignificante ato de consumo implica uma árvore cortada, um rio poluído, um pedaço de terra envenenado.  A chama destemperada dos acumuladores de riqueza arrasa o planeta.  

 

Os povos indígenas estão mais próximos de uma chama que valoriza aquilo que os rodeia como fonte de reverência.  Quando usam o fogo, é como instrumento de renovação, não de devastação. Não se  queima à toa a própria casa.  E não são somente árvores que estão sendo dizimadas, no sentido de troncos frondosos que realizam a fotossíntese para podermos respirar ar puro. São fulcros espirituais para outros povos, que condicionam visões de mundo, modos de vida para famílias e animais que ali vivem, com quem de uma forma ou outra estes povos estabelecem relações de parentesco.  

  

 

Ao longo da história perdemos a árvore, a chama e a prece que unidos nos traziam harmonia com o vivo e a compreensão de pertencermos a algo muito maior do que nós.  Uma das inspirações para esta antologia foi o conceito de wood wide web, cunhado por Suzanne Simard, cientista canadense que descobriu a relação simbiótica entre árvores, mesmo de diferentes espécies, através da rede que conecta toda a matéria orgânica no subsolo da floresta. Ela afirma que os nativos da região que estudou já sabiam destas relações, pois a maneira como vivem é baseada na relação de harmonia com o vivo ao redor.   Subiyay, ancião do povo Skokomish, descreve o entrelaçar entre árvores, animais e fungos na floresta como uma lição na “construção de alianças, força comunal, diversidade e papel que cada membro possui na comunidade.  Juntos somos mais fortes.”  Não precisaram injetar material radioativo, sob risco de contrair câncer, numa árvore para posteriormente o detectar em árvores de espécies diferentes a dezenas de metros de distâncias para intuir que árvores mais velhas transferiam a outras seus recursos por meio da micorriza, a simbiose entre fungos e raízes, os primeiros retirando o que necessitam e transferindo o restante para outras árvores, da mesma espécie ou não, num processo que fortalece a floresta como um todo. Se na floresta há competição, há sobretudo, ou melhor, sob tudo, cooperação.    

 

Este conceito de união entre elementos em aparência díspares conversa com o mote deste ensaio e sua alegoria inicial.  Assim como os seres vivos que distintos mas unidos criam a harmonia de uma floresta, os poemas neste Livro do Verso Vivo, organizados entre prece, chama e árvore, formam um conjunto que unido e agindo como um todo, busca uma sabedoria que nos transcende.  Alguns dos poemas aqui reunidos são preces, outros expressam as diversas intensidades e cores da chama, e há os que nos conduzem a uma relação com o vivo.  Juntos, são os elementos que favorecem esta comunhão com uma sabedoria maior.  E existe maior sabedoria do que uma floresta? 

 

Que estes versos vivos fomentem atos pelo verso e pelo vivo. E que as próximas edições nos redimam do acidental esquecimento de poetas que não colaboraram desta vez. Há sempre mais espaço na floresta.

 

Fotografia de Maurício Vieira. Crédito da foto: Daniel Mordzinski

 

Mauricio Vieira, jardineiro de palavras, é autor dos livros de poesia Manual Onírico de Jardinagem, As Mão Vazias,  do romance A Árvore Oca e do infantil ilustrado Floresta.   Edita a revista Arvoressências:  www.arvoressencias.com

Mais informações: https://linktr.ee/Jardineiro_de_Palavras




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