Poesia & Conto

15 poemas inéditos | Adília César

O poema – essa hesitação prolongada entre o som e o sentido. 

Um poema nunca está acabado, somente abandonado.

Paul Valéry

 

 

1.

 

Escrevo poemas como quem ensaia passos de dança.

Tropeço, caio, torno a levantar-me.

A música tem uma angústia de espelho novo

e transgressor. Movimentos assimétricos onde

faltam pequenos segmentos apenas 

visualizados do lado de fora da luz.

Tropeço, caio, torno a levantar-me.

Os poemas escrevem-se de arremesso e

partem o reflexo. Pedaços dançantes

que me fazem hesitar e continuar

em simultâneo.

Mas tropeço, caio, torno a levantar-me.

É preciso voar em flecha para preencher os

pedaços que faltam na minha partitura.

Não tropeçar, não cair.

Ver-me inteira no espelho intacto.

E depois escrever o poema.

 

Ou a angústia de não o conseguir.

 

2.

 

A mulher junto ao muro torna-se mais verdadeira.

Está tão quieta 

como as pedras 

empilhadas pela engenharia do tempo.

 

(silêncio)

 

Queria dizer-lhe que ela é bela, invejável, que 

a sua pele parece madrepérola, que 

o ar que a envolve é uma ostra recolhida 

ao espanto daquela hora.

 

(silêncio)

 

A mulher está tão quieta 

como a morte deitada 

a seu lado.

 

3.

 

Nascer – eis o primeiro drama

disse o mestre.

E agora, a roleta sorteia o prémio.

Não rodes tão depressa, 

Tenho medo de

                         a

                         i

                         r

 

                         n

                         o

 

                         a

                         b

                         i

                         s

                        m

                         o

 

                         d

                         a

 

                         t

                         u

                         a

 

                         v

                         i

                         d

                         a

 

4.

 

Não sigas o tempo, minha filha

 

Ainda hoje tento 

perceber esta frase dita pela mãe, 

que na sua simplicidade solidificou 

como uma filosofia de trazer por casa, 

com os chinelos calçados ao contrário

e o avental cheio de nódoas.

As costas curvadas de tanto pensar sobre 

a sua vida.

 

Não sigas o tempo, meu lugar imaculado. 

 

Perdida, 

perdida nos espaços entre as tuas palavras, 

minha mãe. 

 

5.

 

Uma ilha inundada de água e

uma mulher submersa na sua solidão.

A mulher ondulada de experimentar sonhos,

fragilmente científica,

introduz uma hora variável no seu destino.

O corpo num arco de pânico.

O umbigo rasgado numa fissura do tempo.

Longa é a água na cascata.

Fica em fora de dentro, tal como

tudo o que é imaginado.

 

6.

 

As janelas do quotidiano guardam as imagens 

da minha confusão mental.

Há sentimentos novos que ainda não têm nome.

Andam por ali, em deambulações soterradas,

como se fossem meras descrições de caos.

Parecem danças de roda fáceis de acertar os passos.

Os atropelos obedecem à coreografia do desejo e, 

finalmente, percebe-se a intenção de tudo aquilo: provocar 

o tédio, para alienar a substância do que é humano.

 

Na curva do corpo, a saia predomina 

na visão, como uma sombra cinzenta

que se vai sobrepondo 

e se transforma numa opacidade negra.

O baile do medo começou, é preciso

sobreviver.

 

7.

 

Podia dizer-te que a existência 

da melancolia 

tem sempre uma explicação simples. 

Contudo,

eu própria preciso de a encarar de frente,

dar-lhe um nome,

colocar as minhas mãos em torno do seu pescoço

s  e  m  a  p  e  r  t  a  r  d  e  m  a  s  i  a  d  o.

Uma espécie de crime subtil.

Juntar os corpos feitos de fraqueza,

para aniquilar o colar de dramas que

teima em queimar o que 

tento florir por dentro do peito.

E é nesse preciso momento que tu

saberias o significado do meu profundo mar de cinzas,

esta estranha forma de preâmbulo para o 

acontecimento seguinte.

Uma complexidade em forma de colar.

 

8.

 

Será a tristeza menos solene do que 

a alegria?

Porque em mim e em ti se inscreve 

este poema,

temos de lapidar o prisma do humano 

à dentada e

recolher os fios de sangue 

que nos limites das gargantas

acrescentam novos afluentes ao rio do pensamento.

 

9.

 

A janela aberta inunda-me de esperança,

mas dir-se-ia incomum 

essa onda cristalina.

A névoa das noites, o verso molhado.

O que tomba é 

uma acrobacia em forma de sacrifício.

Fecho a janela porque o espectáculo acabou.

A rua suja à espera de um acto benevolente.

Será a virtude mais aceitável do que a maldade?

 

10.

 

Corremos sem parar e

a ilusão de sermos deuses continua a

perseguir-nos

pelas ruelas dos acontecimentos.

Ao fundo, cada um de nós sabe que possui 

o seu precipício de estimação.

O mapa que trazemos no bolso interrompe 

o lugar da 

   q

              u

              e

              d

              a

mas o movimento impõe o erro 

fatal.

Nós – uma máscara do eu que predomina.

 

11.

 

O assobio estridente da vida decora 

todos os assuntos

com grinaldas de flores secas.

É um funeral que terminou há muito tempo.

 

O que se segue? 

Acendem-se as luzes da sala,

repetem-se os hífens entre murmúrios e

acredita-se

que a morte ainda tem nome de vida.

O cão e o homem observam-se, olhos nos olhos,

como se a violência daquele momento

tivesse outro nome: perdão.

Ou já saudade.

 

12.

 

Apenas um vislumbre de mim e de ti. Caminhamos 

sobre as dunas da lembrança, de mãos dadas.

O mar desapareceu.

Ouve-se o sussurro das ondas por dentro 

de tudo aquilo que fomos e

sobre a pele 

o sal vai curando as feridas abertas pelo tédio.

 

Não estamos (mesmo) ali. Somos uma amálgama de coisas

que ficaram para trás, no asfalto do tempo. O que dói

é a memória, 

a noite infinita,

o mergulho dos ínfimos fragmentos das nossas vidas

no mar que não é um mar verdadeiro,

no mar que é um memorial da biografia do humano.

Um mar que afoga, portanto.

O nosso precipício de estimação coincidente

enquanto mastigamos camarinhas doces.

 

13.

 

Entre tu e eu, a faca que nos quer preparar para

qualquer coisa violenta.

Cintilante, ramificada em golpes superficiais que

evoluem para feridas verticais até ao centro do mundo. 

Entretanto, 

corto legumes em rodelas,

corto os dedos em fatias.

Mexo e remexo a substância da quimera e,

abruptamente, 

o lume acende-se de dentro para fora,

desde o núcleo da terra até ao meu umbigo.

Lava sentimental e fundente.

Tu desapareces, levando contigo a suposição 

desta circunstância macabra. 

Penso em ti, quando tu eras apenas 

uma pequena parte do meu passado,

antes de transferires essas partículas sentimentais,

tão redentoras em relação ao futuro.

Meu amor. Meu fogo 

da verdade sobre escombros

a queimar a emergência da nossa fome.

Tão da substância do presente.

 

14.

 

Se o mundo tem memória da luz nua,

ele sabe que o silêncio pode ter muitos nomes.

Loucos, 

os detentores do ruído reverberado

até às muralhas das guerras.

Loucos, 

os traficantes dos medos.

Loucos, 

os que fogem para lugar nenhum.

Loucos, 

os que ficam nas ruínas.

Loucos, 

os que ainda não nasceram.

 

A humanidade sedenta, tresloucada, mas

inabalável, canta e dança ao ritmo

dos impulsos das balas e

ao sabor das golfadas do sangue.

 

Na terra, a loucura fortalece as suas raízes 

do medo.

 

15.

 

Mundo esquelético e decadente.

Sou tão louca por ti, 

meu gigante da fome.

 

Fotografia de Adília César

Adília César nasceu em Lagos, Portugal. É docente e formadora no âmbito da Didática das Expressões Artísticas, sendo Mestre em Teatro e Educação pela Universidade do Algarve. Tem colaborações dispersas em antologias e revistas literárias. Publicou livros de poesia: O que se ergue do fogo (Lua de Marfim, 2016); Lugar-Corpo (Eufeme, 2017); O Tempo O Tempo (Eufeme, 2019); Uma agulha no coração (Urutau, 2020); Gelo (Busílis Poesia – Trinta Por Uma Linha, 2021); Delirium (Urutau, 2021); Nocturna (Húmus, 2022). Foi co-fundadora do projecto literário LÓGOS – Biblioteca do Tempo.





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