O poema – essa hesitação prolongada entre o som e o sentido.
Um poema nunca está acabado, somente abandonado.
Paul Valéry
1.
Escrevo poemas como quem ensaia passos de dança.
Tropeço, caio, torno a levantar-me.
A música tem uma angústia de espelho novo
e transgressor. Movimentos assimétricos onde
faltam pequenos segmentos apenas
visualizados do lado de fora da luz.
Tropeço, caio, torno a levantar-me.
Os poemas escrevem-se de arremesso e
partem o reflexo. Pedaços dançantes
que me fazem hesitar e continuar
em simultâneo.
Mas tropeço, caio, torno a levantar-me.
É preciso voar em flecha para preencher os
pedaços que faltam na minha partitura.
Não tropeçar, não cair.
Ver-me inteira no espelho intacto.
E depois escrever o poema.
Ou a angústia de não o conseguir.
2.
A mulher junto ao muro torna-se mais verdadeira.
Está tão quieta
como as pedras
empilhadas pela engenharia do tempo.
(silêncio)
Queria dizer-lhe que ela é bela, invejável, que
a sua pele parece madrepérola, que
o ar que a envolve é uma ostra recolhida
ao espanto daquela hora.
(silêncio)
A mulher está tão quieta
como a morte deitada
a seu lado.
3.
Nascer – eis o primeiro drama,
disse o mestre.
E agora, a roleta sorteia o prémio.
Não rodes tão depressa,
Tenho medo de c
a
i
r
n
o
a
b
i
s
m
o
d
a
t
u
a
v
i
d
a
4.
Não sigas o tempo, minha filha.
Ainda hoje tento
perceber esta frase dita pela mãe,
que na sua simplicidade solidificou
como uma filosofia de trazer por casa,
com os chinelos calçados ao contrário
e o avental cheio de nódoas.
As costas curvadas de tanto pensar sobre
a sua vida.
Não sigas o tempo, meu lugar imaculado.
Perdida,
perdida nos espaços entre as tuas palavras,
minha mãe.
5.
Uma ilha inundada de água e
uma mulher submersa na sua solidão.
A mulher ondulada de experimentar sonhos,
fragilmente científica,
introduz uma hora variável no seu destino.
O corpo num arco de pânico.
O umbigo rasgado numa fissura do tempo.
Longa é a água na cascata.
Fica em fora de dentro, tal como
tudo o que é imaginado.
6.
As janelas do quotidiano guardam as imagens
da minha confusão mental.
Há sentimentos novos que ainda não têm nome.
Andam por ali, em deambulações soterradas,
como se fossem meras descrições de caos.
Parecem danças de roda fáceis de acertar os passos.
Os atropelos obedecem à coreografia do desejo e,
finalmente, percebe-se a intenção de tudo aquilo: provocar
o tédio, para alienar a substância do que é humano.
Na curva do corpo, a saia predomina
na visão, como uma sombra cinzenta
que se vai sobrepondo
e se transforma numa opacidade negra.
O baile do medo começou, é preciso
sobreviver.
7.
Podia dizer-te que a existência
da melancolia
tem sempre uma explicação simples.
Contudo,
eu própria preciso de a encarar de frente,
dar-lhe um nome,
colocar as minhas mãos em torno do seu pescoço
s e m a p e r t a r d e m a s i a d o.
Uma espécie de crime subtil.
Juntar os corpos feitos de fraqueza,
para aniquilar o colar de dramas que
teima em queimar o que
tento florir por dentro do peito.
E é nesse preciso momento que tu
saberias o significado do meu profundo mar de cinzas,
esta estranha forma de preâmbulo para o
acontecimento seguinte.
Uma complexidade em forma de colar.
8.
Será a tristeza menos solene do que
a alegria?
Porque em mim e em ti se inscreve
este poema,
temos de lapidar o prisma do humano
à dentada e
recolher os fios de sangue
que nos limites das gargantas
acrescentam novos afluentes ao rio do pensamento.
9.
A janela aberta inunda-me de esperança,
mas dir-se-ia incomum
essa onda cristalina.
A névoa das noites, o verso molhado.
O que tomba é
uma acrobacia em forma de sacrifício.
Fecho a janela porque o espectáculo acabou.
A rua suja à espera de um acto benevolente.
Será a virtude mais aceitável do que a maldade?
10.
Corremos sem parar e
a ilusão de sermos deuses continua a
perseguir-nos
pelas ruelas dos acontecimentos.
Ao fundo, cada um de nós sabe que possui
o seu precipício de estimação.
O mapa que trazemos no bolso interrompe
o lugar da
q
u
e
d
a
mas o movimento impõe o erro
fatal.
Nós – uma máscara do eu que predomina.
11.
O assobio estridente da vida decora
todos os assuntos
com grinaldas de flores secas.
É um funeral que terminou há muito tempo.
O que se segue?
Acendem-se as luzes da sala,
repetem-se os hífens entre murmúrios e
acredita-se
que a morte ainda tem nome de vida.
O cão e o homem observam-se, olhos nos olhos,
como se a violência daquele momento
tivesse outro nome: perdão.
Ou já saudade.
12.
Apenas um vislumbre de mim e de ti. Caminhamos
sobre as dunas da lembrança, de mãos dadas.
O mar desapareceu.
Ouve-se o sussurro das ondas por dentro
de tudo aquilo que fomos e
sobre a pele
o sal vai curando as feridas abertas pelo tédio.
Não estamos (mesmo) ali. Somos uma amálgama de coisas
que ficaram para trás, no asfalto do tempo. O que dói
é a memória,
a noite infinita,
o mergulho dos ínfimos fragmentos das nossas vidas
no mar que não é um mar verdadeiro,
no mar que é um memorial da biografia do humano.
Um mar que afoga, portanto.
O nosso precipício de estimação coincidente
enquanto mastigamos camarinhas doces.
13.
Entre tu e eu, a faca que nos quer preparar para
qualquer coisa violenta.
Cintilante, ramificada em golpes superficiais que
evoluem para feridas verticais até ao centro do mundo.
Entretanto,
corto legumes em rodelas,
corto os dedos em fatias.
Mexo e remexo a substância da quimera e,
abruptamente,
o lume acende-se de dentro para fora,
desde o núcleo da terra até ao meu umbigo.
Lava sentimental e fundente.
Tu desapareces, levando contigo a suposição
desta circunstância macabra.
Penso em ti, quando tu eras apenas
uma pequena parte do meu passado,
antes de transferires essas partículas sentimentais,
tão redentoras em relação ao futuro.
Meu amor. Meu fogo
da verdade sobre escombros
a queimar a emergência da nossa fome.
Tão da substância do presente.
14.
Se o mundo tem memória da luz nua,
ele sabe que o silêncio pode ter muitos nomes.
Loucos,
os detentores do ruído reverberado
até às muralhas das guerras.
Loucos,
os traficantes dos medos.
Loucos,
os que fogem para lugar nenhum.
Loucos,
os que ficam nas ruínas.
Loucos,
os que ainda não nasceram.
A humanidade sedenta, tresloucada, mas
inabalável, canta e dança ao ritmo
dos impulsos das balas e
ao sabor das golfadas do sangue.
Na terra, a loucura fortalece as suas raízes
do medo.
15.
Mundo esquelético e decadente.
Sou tão louca por ti,
meu gigante da fome.
Adília César nasceu em Lagos, Portugal. É docente e formadora no âmbito da Didática das Expressões Artísticas, sendo Mestre em Teatro e Educação pela Universidade do Algarve. Tem colaborações dispersas em antologias e revistas literárias. Publicou livros de poesia: O que se ergue do fogo (Lua de Marfim, 2016); Lugar-Corpo (Eufeme, 2017); O Tempo O Tempo (Eufeme, 2019); Uma agulha no coração (Urutau, 2020); Gelo (Busílis Poesia – Trinta Por Uma Linha, 2021); Delirium (Urutau, 2021); Nocturna (Húmus, 2022). Foi co-fundadora do projecto literário LÓGOS – Biblioteca do Tempo.