O sistemático recurso da imprensa local aos correspondentes nas localidades permite-nos ter a noção de como foram vividos, pela sociedade rural, os diferentes períodos históricos.
Na circunstância, poder-se-á dizer que, até poucos anos antes do 25 de abril, a imprensa de Cantanhede descrevia uma realidade de fome e de profunda miséria económica e de artimanhas dos patrões e proprietários para explorarem os miseráveis trabalhadores. As famílias que trabalhavam por conta de outrem, faziam-no de sol a sol, e praticamente a troco das refeições para sobreviverem. Um simples exemplo: até meados do séc. XX, os maridos trabalhavam de sol a sol; as respetivas mulheres só eram mandadas aparecerem para trabalharem a partir das 10 da manhã e das 4 da tarde. Por que não as deixavam trabalhar o dia completo? Para que elas não pudessem exigir jorna. Assim, pelas suas muitas horas de trabalho, os patrões limitavam-se a dar-lhes, para descargo de consciência, um bocado de pão para os muitos filhos. Só com a jorna dos maridos, as dificuldades de subsistência eram tremendas: cerca de 20 anos antes do 25 de abril,1kg de milho ou de arroz custava o salário de meio-dia de trabalho; 1kg de açúcar ou um litro de azeite, um dia de trabalho; 1kg de feijão, cerca de um dia e meio de trabalho. E como quem não tinha dinheiro para comer, também não tinha para vestir, eram noticiados casos de crianças que não conseguiam ir à escola por não terem roupa para poderem sair de casa.
Fartos das frustrações da vida, muitos homens e mulheres afogavam as mágoas no álcool, e a quantidade de mendigos era assustadora. Mendigos que o regime tentava esconder, ordenando a prisão de todos os que fossem encontrados a esmolar. E os jornais, sem caridade, aplaudiam: “Muito bem anda o Sr. Ministro do Interior em procurar furtar aos nossos olhos o vergonhoso espetáculo da mendicidade.”
Dez anos antes do 25 de abril, ainda em muitas zonas – por exemplo, na parte norte do concelho de Vagos – os agricultores não conseguiam colher o que semeavam, porque os esfomeados eram legião e a fome não podia esperar que os frutos da terra amadurecessem. Os jornais referiam a assustadora quantidade diária de assaltos a celeiros e salgadeiras.
No plano cultural, até meados do séc. XX, os jornais davam conta de que as escolas eram raras e de que não havia professores. Apesar disso, Salazar mantinha fechadas escolas do Magistério Primário. Trinta anos antes do 25 de abril, ainda havia deputados a discutir se seria bom o povo saber ler.
Esta era a parte das notícias que passavam o crivo da censura. Mas numerosas edições de jornais, mesmo favoráveis ao regime, saíam com enormes manchas em branco devido às notícias proibidas. Sete anos antes do 25 de abril, até um jornal que os estudantes de Febres publicavam por altura das Festas de N.ª Sr.ª foi proibido de publicação porque um estudante tinha escrito que havia quem quisesse construir a paz, fazendo a guerra.
Apenas quatro anos antes do 25 de abril, um grupo de estudantes, “chefiado” pelo falecido Dr. Cândido Ferreira, resolveu fazer uma serenata à beira-mar com canções de intervenção. Logo alguém avisou a GNR, que veio deter os perigosos insurgentes. Foram libertados do posto de Mira às três da manhã, com ameaça de que, se repetissem a proeza, seria a PIDE a ocupar-se deles. Para ter a certeza de que não haveria reincidência, a GNR manteve presa a viola do Dr. Cândido que assim, até ao fim dos seus dias, dizia ser dono da única viola “presa política”.
De política falavam também os jornais, pouco pela escrita dos políticos e muito pela escrita dos padres. Para além da BN, jornal da Igreja, existia a Gazeta de Cantanhede, jornal republicano que os padres e muita gente importante de Cantanhede tentaram fazer proibir, deslocando-se várias vezes a Lisboa, a pedir ao governo que a extinguisse. A Gazeta só não foi extinta porque o seu dono e diretor era amigo e compadre de Mário Pais de Sousa, Ministro do Interior e conterrâneo de Salazar.
Mas falavam também de ideologia: a Gazeta falava de liberdade e denunciava injustiças – só ela e com paninhos quentes, não fossem os salazaristas de Cantanhede conseguir mesmo fechá-la. No início da Segunda Grande Guerra, coincidindo com a radicalização da oposição ideológica entre o fascismo/nazismo e o comunismo, foi o único jornal a, dissimuladamente, denunciar que o governo se preocupava menos com o caos e as desgraças nas estradas do que as paranoias ideológicas. Referiu, assim, a nova proibição da circulação de camionetas vermelhas (associada ao comunismo) ou de outras cores com conotações eventualmente subversivas. Apenas seriam permitidas as cores pardacentas, que simbolizavam os movimentos de Mussolini, de Hitler e de Franco: “… cinzento-escuro, verde-azeitona e terra de Stene queimada, não podendo nenhum dos carros desta categoria ser pintado, de futuro, de cor diferente. Os reclamos ou dísticos indicadores de propriedades, só poderão ser inscritos em placas amovíveis pintadas da mesma cor”.
Enquanto isso, os padres da Comarca e da Boa Nova barafustavam contra a falta de papel de jornal. Porém, quase todo o que conseguiam comprar era para cantarem as glórias dos seus quatro deuses na Terra: Salazar, Franco, Mussolini e Hitler. E faziam-no até ao absurdo: apoiavam as perseguições nazis e fascistas ao catolicismo, recusando-se a criticar Hitler pelos assassinatos massivos dos seus colegas padres católicos. Se isso acontecia, só podia ser por erros dos padres, porque Hitler nunca errava. Consideravam os discursos de Mussolini sempre “SENSACIONAIS” (com letras maiúsculas). Para a Comarca, “… a Itália [de Mussolini], Portugal [de Salazar] e a Alemanha [de Hitler eram] as três nações porta-bandeiras da Ordem Nova” mundial. Quem aplicasse a palavra democracia sem ser a Salazar era perigoso comunista. E todos que não fossem de extrema-direita – desde o centro político até ao comunismo – deviam ser presos.
Tentando colocar Salazar ao nível de Hitler, os seus raciocínios ideológicos eram de cortar a respiração: para eles, Hitler era o modelo do verdadeiro democrata; mas, ao mesmo tempo elogiavam o democrata Hitler, por mostrar a superioridade da sua ditadura sobre as democracias. Também Salazar era um verdadeiro democrata. Tão democrata que o povo não sentia falta de outro partido, que não o seu. Assim, Portugal vivia em plena democracia: o povo achava que vivia “… num país adorável, um paraíso em comparação com o resto do mundo”, que, aliás, ninguém conhecia. Em tempo de eleições, as primeiras páginas enchiam-se, invariavelmente, de apelos em títulos garrafais: “ÀS URNAS, EM MASSA, PELO ESTADO NOVO”. E, após as eleições, os títulos em grandes parangonas: “TRIUNFO”. Como se fosse possível não triunfar em eleições de partido único…
Neste contexto, a candidatura de Norton de Matos, assimilada, como habitualmente, ao comunismo, era parodiada num arremedo do poema de Camões “Alma minha gentil que te partiste”:
“Oposição servil que te partiste
Tão cedo desta luta descontente,
Repousa no olvido eternamente
Que a tua atividade foi bem triste…
Se em pregar mentiras repartiste
C’o a voz russa a parte equivalente,
Não esperes o perdão da boa gente
Amante desta Pátria que traíste …
E se vires que ainda vale a pena,
Manter aquele bem que nos ficou
Da OBRA que só teu ódio condena
Roga a NORTON que teus sonhos encurtou
Que tão cedo não ponha o pé na cena…
Pois, para comédia já bastou…”
A primeira crítica jornalística que a censura deixou passar data de 1951. É provável que só tenha sido permitida porque o jornal colocava em cima da Câmara, e não do governo, as culpas de tudo o que estava mal: “Está tudo muito bem, mas melhor estaria se a maioria das terras do concelho não estivesse a gritar fogo, em pleno séc. XX e com 25 anos de Estado Novo, não terem luz elétrica, fontes, estradas ou caminhos …”
Em 1968, a queda de Salazar da cadeira, motivou o texto seguinte:
“Nesta hora de tão dolorosa expectativa, uma só coisa pode servir-nos de espiritual conforto: a certeza indesmentível da solidariedade nacional e internacional perante o venerando enfermo que é, sem sombras de dúvida, o maior de todos nós, esse Homem extraordinariamente privilegiado que criou e nos deu uma doutrina de salvação que levantou a dignidade da Pátria frente ao Mundo inteiro, que nos tem amparado em tantas e tão angustiosas crises, que nos ensinou para sempre, mercê das suas opções e do seu exemplo vivo, o rumo irreversível do Futuro.”
Após o 25 de Abril de 1974, a Boa Nova, único jornal então existente, limitou-se a, muito discretamente, transcrever, em 3 de maio, o comunicado do MFA, noticiando que “… as forças armadas depuseram o regime que há perto de 50 anos estava no poder”. Realçou o amor à Pátria e o alto civismo dos militares e saudou as Forças Armadas, pedindo “… que Deus as ajude a prosseguirem a renovação que em boa hora iniciaram.”
Nas edições seguintes, noticiou a destituição do presidente da Câmara e a designação popular das Comissões Administrativas e Provisórias da Câmara e das Juntas. Elogiou os espaços de debate político na comunicação social, considerando que “… esclarecem e até educam bastante, predicados de incalculável valor sobretudo para aqueles que, de orgânica social, pouco ou nada percebem”. Curiosamente, condenava os que andavam a armar-se em «senhores e “patrões” de tudo», envergonhando o conceito de democracia e, a propósito dos vira-casacas, referia as “… peripécias incontáveis e atitudes curiosas a lembrar os cataventos que se encontram nos pinos das torres das igrejas e que se adaptam aos ventos que sopram…”
Não obstante, também o jornal fazia figura de catavento: Em completa reviravolta relativamente à sua visão anterior de que Portugal era um paraíso de democracia, criticou os “… 13 anos de guerra colonial (com prejuízo de todos) [que] custaram 150 milhões de contos, não falando nas vidas ceifadas que não têm preço e nos mutilados que gemem a sua desventura”. E, pela primeira vez, reconhecia que, afinal, Salazar não era um democrata, mas um déspota, escrevendo “tudo se poderia ter evitado se os problemas nacionais tivessem sido discutidos e resolvidos democraticamente. Mal ou bem seria a nação inteira a resolver os problemas e não uns tantos supervisores e consequente política discricionária e déspota.”
Nascido em Febres, em 1953, Manuel Cidalino Cruz Madaleno concluiu o curso da Escola do Magistério Primário de Coimbra em 1972. Obteve, posteriormente, o Diploma Superior de Estudos Franceses e os graus de Licenciatura e de Mestrado em Ciências da Educação, na Universidade de Lille (em cujo Departamento de Educação Permanente lecionou), bem como a Licenciatura na variante de Português-Francês. Traduziu várias obras para a língua portuguesa, colaborando em revistas e jornais editados em Portugal e na França.
Manuel Cidalino Madaleno é autor do ensaio Educação ou Armadilha Pedagógica? (2006), de um extenso Contributo para a História do Território da Primitiva Freguesia de Febres e 10 volumes da Coleção “Construir a Memória da Região de Cantanhede”.