Cultura

1964: golpe na poesia | Marcelo Mário de Melo

Foto de Sébastien Goldberg na Unsplash

Além de antidemocrático, antipopular e antinacional, o golpe de 1964 foi também antipoético. No dia primeiro de abril vi tombar na passeata, atingido por tiros de mosquetão, o companheiro Jonas Barros, cantando o hino nacional e escudado na bandeira brasileira. Jovem militante comunista do Colégio Estadual de Pernambuco, Jonas escrevia poemas de muita sensibilidade e leveza. Também foram fuzilados Ivan Aguiar, comunista de Palmares e aprovado no vestibular para Engenharia, um homem e uma mulher não identificados. Passando de mão em mão entre os manifestantes que corriam para escapar das balas, a bandeira nacional restou no chão enxovalhada e ensanguentada.

 
Os poetas Ângelo Monteiro e Albérgio Maia de Farias, que tinha 16 anos, foram presos no DOPS. Um dia, Albérgio foi comigo à Galeria de Arte, localizada numa estrutura de cimento construída sobre o Rio Capibaribe, em frente aos Correios. Emocionado, deixou pregado na parede um poema de homenagem a Jona, habituê daquele espaço, que começava assim: “Na galeria de arte/há um banco de saudade/e há gestos de futuro/quebrando a serenidade.”


Para comemorar a libertação de Newton Farias, militante bancário, irmão de Albérgio, foi marcada uma farra secreta nos fundos da venda do Velho Pires, no bairro da Soledade. Entre cervejas, canções e poemas, Rui Alencar sentenciou: “as noites de sábado dos poetas/alimentam a resistência dos patriotas.

 

Estudantes de esquerda faziam o jornal “O Secundarista”, com boa tiragem e impresso em cores, idealizado e articulado por José Fortuna de Melo, meu irmão, o meu nome constando como secretário, editado por Rômulo Lins, onde publicavam poemas Albérgio Maia de Farias, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly, Anamárcia Veinsenher, Luis Carlos Duarte, Rômulo Lins, Diógenes Caldas e outros. O jornal não pôde mais ser editado e os seus responsáveis e colaboradores que não foram presos tiveram de se esconder da repressão ou calar a voz.


Ângelo Monteiro incorpordado às atividades políticas da esquerda, desenvolvia uma intensa militância estudantil, marcada pela declamação de poemas desse teor:“ E os verdadeiros cristãos/de fé robusta e viril/ com o cano do seu fuzil/farão o sinal da cruz”. Também fazia longos discursos previamente decorados: “Como católico, ouço a voz de Sua Santidade o papa. Como revolucionário, ouço a voz de sua Santidade o povo.” Alberto Cunha Melo e Jaci Bezerra acompanhavam a esquerda nas disputas estudantis. Depois do golpe, Jaci editou e distribuiu no Colégio Estadual de Pernambuco um jornal mimeografado intitulado “Letras”.


Um subproduto poético publicado no Suplemente Literário do Diário de Pernambuco, em 1965, foi objeto de gozação de Stanislaw Ponte Preta na sua coluna na “Última Hora” do Rio. Era um longo texto do tenente-coronel Dácio Vassimom, chefe do estado maior do IV Exército, louvando a Cruzada Democrática Feminina com coisas assim: “pelas ruas do Recife desfilando/a corja comunista desacata/sem temer uma bala ou um sopapo/a lembrar o que foi Tejucupapo”. Nas citações que fez, Stanislaw não se referiu a versos: falou em pedaços.


Na clandestinidade, de vez em quando eu me lembrava da tirada de Rui Alencar sobre as noites de sábado dos poetas. De março de 71 a abril de 79 foram oito anos, 43 dias e 19 horas de prisão e poesia, entre a Casa de Detenção do Recife e a Penitenciária Professor Bareto Campelo, em Itamaracá. Perdi nos aparelhos clandestinos e nas fugas um volume datilografado com todos os meus textos. A partir daí, passei a decorá-los.


Também escreviam poemas na prisão, Chico de Assis, Juliano Siqueira (RN) e Cláudio Gurgel (RN) Chico Passeata (CE), Severino Quirino (o Poeta da Fome, de Caruaru), Antônio Ricardo Braz, cirandeiro de Timbaúba, e Alberto Vinícius (PB/PE), que escrevia e não mostrava. Recebi livros de Ângelo Monteiro e Luis Carlos Duarte, que ainda conservo. Minha obra completa de Castro Alves foi apreendida pelo major diretor da penitenciária, junto ao Aprendiz de Crítica, de Joel Pontes. Centenas de livros foram subtraídos dos presos políticos e revendidos em sebos. Contrabandeamos por partes o Poema Sujo, de Ferrreira Gullar, cuja leitura me fez subir um degrau na tabela do exercício físico 5BX, da Força Aérea Canadense.


Virando a página, o Os Quatro Pés da Mesa Posta, publicado com o selo das Edições Pirata em 1980, foi uma amostra de 38 dos meus poemas carcerários.

fotografia de Marcelo Mário de Melo

Nota biográfica: Marcelo Mário de Melo é jornalista, escritor e ex-preso político do Brasil. Nasceu em Caruaru, no interior do estado de Pernambuco, e veio para o Recife em aos nove anos. Escreve poemas, histórias infantis, minicontos, textos de humor e teatro e notas críticas.

Vê a elaboração poética como o olhar que mergulha e voa, o espirarco-íris de portas abertas e andantes, sintetizando o pensentir humano nos mergulhos introspectivos, nas interações sociais e nas viagens cósmicas.

Tem diversos livros publicados, de literatura e jornalismo, sendo o último deles o Literavida Historias e Casos.

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