Poesia & Conto

“Artenativa”, gentes das letras, das palavras e das imagens, asas à liberdade de criar para uma imensa minoria | José Manuel Simões

Foto de Boston Public Library na Unsplash

DuArte, horas depois de ter chegado a Macaé, no estado do Rio de Janeiro, ao percorrer sem direção a rua principal, a Rui Barbosa – que escreveu “De tanto ver triunfar as nulidades, De tanto ver prosperar a desonra, De tanto ver crescer a injustiça, De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, O homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” – ouviu alguém a declamar poesia. Parou; identificou o lugar concreto de onde vinham as vozes, abriu uma porta, subiu uns degraus, abriu uma outra porta, entrou e surpreendeu-se com tanta gente bonita. Findo aquele poema, dito por uma voz musculada, passaram-lhe o microfone para a mão. Com o ritmo cardíaco em aceleração súbita, fez uma emocionada colagem de palavras suas e de outros poetas portugueses: “Bate levemente, Como quem chama por mim, Será chuva ou será gente, Gente não é certamente e a chuva não bate assim”. Olhando na direção de uma menina, aos seus olhos a mais formosa, prosseguiu, mais excitado que nervoso: “É fogo, Fogo que arde sem se ver, Uma luz, Um brilho, Olhos raiando por te ter, E um coração, Um coração a bater”. Entre aplausos alguém pegou o microfone de volta: “diretamente de Portugal…Camões!!”. E assim ficaria conhecido em Macaé e no Brasil: DuArte Camões, o poeta. 

 

A qualquer bar que fosse pediam-lhe para recitar um poema. Cada vez mais ousado, convicto, subia a uma cadeira e recitava, de improviso, deixando jorrar as palavras, soltas e com sentido, sempre emotivo, laivos de performer e alguma arte, quase sempre dramática, a voz grave, metálica, conectado com a terra e o espaço celeste. 

 

Um argentino que estava hospedado no 3 estrelas onde DuArte Camões já dava cartas ao balcão, sobretudo pela simpatia e fluência de línguas, convidou-o para uma festa na Praia dos Cavaleiros. Para sua surpresa era o mesmo grupo, o da poesia, que fazia uma festa transmitida ao vivo pela Rádio Macaé e onde a elite cultural local revelava palavra lavrada em mel. A dois passos do mar e do vento que soprava solene, a carne vazia abandonada. 

 

A casa, que viria a ser o Tóquio Bar, tinha jardim, um telhado de pagode chinês, vidro e madeira. O ambiente estava esplendoroso, com gente ilustre e muito charme. Um rapaz que mais parecia uma boneca de porcelana falava que “com algumas pessoas você perde tempo; com outras você perde a noção do tempo”; “os abraços foram feitos para expressar o que as palavras deixam a desejar”. Alguém recitou Joaquim Pessoa focado na vida, que “é exigente porque é generosa. É dura porque é terna. É amarga porque é doce. É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais séria das coisas divertidas”. 

 

Dauro Franco declamou “Só um Deus pode ter a vida eterna ou mesmo um curto instante entre as suas pernas”. DuArte Camões escreveu para a mesma menina, a Norinha Borges, por quem pensou estar apaixonado desde que lhe tocou o olhar, primeiro minuto lá na casa da rua Rui Barbosa onde, numa banheira sem água, tinham acabado a noite a poetizar. 

 

Subitamente ouviu alguém a recitar o que tinha acabado de escrever para Norinha. Aquilo era confidente, pensou, algo envergonhado, recostado num sofá do primeiro andar. 

 

Desceu as escadas e viu-a abraçada a um jovem que o olhou com carinho, um olhar que parecia dizer “seja bem-vindo porque vem por bem mas ela já tem namorado”. 

 

Fernando Marcelo, o namorado, poeta, ativista, ecologista, cultura enraizada em dois pais cultos; a Lucy, psicóloga, fazendo a diferença com sensibilidade e bom senso, recebendo o Outro de mente aberta; e o Guarasil, um homem que apesar de ouvir mal via muito além. 

 

Fernando Marcelo era sobretudo um dinamizador cultural. Tinha um jornal, o “Artenativa”, onde as gentes das letras, das palavras e das imagens davam asas à liberdade de criar para uma imensa minoria, e um varal de poesia que ajudou a mexer com as consciências e a colocar em causa o estabelecido. 

 

Ihoanna e Marcelo Puertas, filhos acabados de serem bebés e a darem os primeiros passos com as palavras – Marcelo guarda religiosamente o seu primeiro poema, escrito a duas mãos com DuArte – também estavam por ali a beber da cultura. Martinho Santafé, copo na mão e palavra solta, usava o microfone: “Meu amor, eu e você temos algo em comum. Você bebe coca-cola e eu bebo rum”. 

 

No final da noite, DuArte rolava na relva daquela casa de charme – onde viria a morar durante um ano – com a cunhada de Martinho, bocas entrelaçadas em prazer, Santafé dizendo um poema que Camões nunca esqueceria: “o pássaro elétrico emite passaportes para o céu. Na orquestra dos fios rima voo com azul. Deflorando a manhã como um helicóptero bêbado”. 

 

Fernando Marcelo proferia em tons de amor que “onde quer que vá levarei sempre comigo a sensação de que uma parte de mim anda por aí em forma de mulher, vento ou poesia”. Sandra Oliva Wyatt construía jogos magníficos com as palavras, poemas sem fronteiras: “Aponte, para dentro de si, a ponte que religa a natureza que aflora fora, sem nunca abdicar de sê-la”, vampirizando palavras que escorriam húmidas na noite suada, a brisa do mar, a madrugada deliciosa, a saliva discorrendo pela boca. “Visão de poesia sugando o poema para dentro deflorando no poeta a sentida inspiração!”. Sandra tinha um jeito de tratar as palavras que era novo para DuArte, uma desconstrução criativa que desconecta as sílabas e as deixa voar até às suas próprias nuances, poemas in memoriam, metamorfose também de corpo que forja “a forma da madeira esculpindo a derradeira hora. As cinzas são restos mortais das brasas que pai aqueceu do frio a família descendente de agora. Lágrimas são transformadas em canto que ri e chora. O amor é feito de asas…”. Havia a presença inspiradora de Cláudio Porto que a doença levou; Bebeto, sublime, escrevia muitas vezes em retribuições e suspiros de Rainer Maria Rilke: “Mais do que a volúpia e dor Maior que a vontade e resistência Solitária forma silenciosa e durável De amor e desejo. Vejo nos animais encontro nas plantas. Não por gozo Nem por dor Mas por necessidades maiores Que a volúpia Que a vontade e resistência. Vida que se renova. Ondas de espumas brancas Abri-me os olhos. Sorrisos, crianças, seres alegres Sémen que se faz fruto. Ilhas da vida Transbordai em mim sua fecundidade Tornai-me grávido Em constante maternidade Solitária, de beleza e amor”. Paulinho Moraes servia com requinte, um sorriso único finalizado com uma risada inconfundível, os olhos a fecharem-se na cabeça ligeiramente tombada em bailado sincopado de muitas boas ondas. Artur Gomes, homem de Campos e de gumes, declamava, pausadamente, “com os dentes cravados na memória Soletro teu nome C a b o f r i o barco bêbado naufragado fora do teu cais Caminho marítimo para as Índias por onde talvez já passou meu pai”. 

 

José Manuel Simões

 

Fotografia de José Manuel Simões

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos.

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