O Verão Quente de 1975, como depois ficou conhecido, foi um período de grande instabilidade em que certos sectores defendiam uma evolução mais radical da revolução. Em resposta às expropriações e ocupações de terra promovidos pela esquerda no sul do país, dão-se alguns confrontos violentos, atentados bombistas e assaltos às sedes de alguns partidos. O clima de agitação politica leva a operações militares que poderiam ter desencadeado uma guerra civil. Os interesses estratégicos dos Estados Unidos da América fazem-se desde logo sentir. O então dirigente da CIA Frank Carlucci é destacado para Portugal como embaixador e não excluía a hipótese de uma intervenção armada norte-americana. Muita da contestação social na pintura mural desta altura, mesmo em contexto urbano assume também o carácter de apoio aos camponeses e de motivação à reforma agrária. A situação dos camponeses é então um dos temas fortes da pintura mural de 1974 e 1975 tanto no campo como na cidade. Às demonstrações de felicidade, ao apoio aos camponeses e às reivindicações agrícolas juntam-se também outros temas. Um deles é a demonstrações de contentamento pelo fim da guerra colonial, pelo apoio aos países africanos que finalmente obtêm a independência logo depois de Abril: Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor. As manifestações de apoio aos movimentos independentistas nestes territórios fazem-se sentir com mais força e refletem-se nas preocupações registadas nos muros. Aforismos políticos de preocupação mais globais como a crítica ao neocapitalismo dominante são também temas fortes e mais abrangentes registados na arte mural popular.
As principais cidades portuguesas revestem-se de cores novas: de frases de celebração, unidade e reivindicação de uma sociedade justa e igualitária liberta para sempre do regime fascista que dominou Portugal ao longo de grande parte do século XX.
Antes de vermos alguns exemplos, gostaria de dizer que ainda em 1975, com a realização das primeiras eleições democráticas livres uma grande parte da pintura mural vai servir as campanhas eleitorais dos diferentes partidos. Vai ser sobretudo o sector dos partidos de esquerda que vai usar mais este tipo de campanha através dos slogans políticos aliados aos desenhos. Nas paredes, vai predominar a cor vermelha, cor dominante que refletia também os interesses e esforços dos principais sectores de esquerda. O slogan político alia-se a todo o tipo de manifestações artísticas de arte urbana tanto nos meios rurais como urbanos. Em alguns deles através de mensagens que interpelam diretamente o observador.
A par deste carácter político que determina diretamente a maior parte das mensagens e do facto de muitas destas manifestações ocorrerem nos meios rurais, há outras características importantes da pintura mural deste período em Portugal, uma das quais é o carácter coletivo deste tipo de criações. Nas semanas e meses que se seguiram à revolução, alguns artistas plásticos são convidados a pintar murais coletivos em sítios públicos, normalmente em espaços de ensino ou edifícios de instituições de diverso tipo. Mural de grandes dimensões em que é impossível reconhecer-se que parte é pintada por quem, assumem um carácter unitário de criação artística. Em poucos meses, as ruas enchem-se de cores, de aforismos, de slogans políticos, de atos reivindicativos. Portugal expressava através da arte urbana aquilo que tinha calado ao longo de quase 70 anos de repressão ditatorial.
A maior parte das frases referem declaradamente o dia da revolução, por exemplo “25 de Abril Sempre”. “Dá mais força à Liberdade” ou “O Sol Brilhará para todos nós” são outras das mensagens recorrentes apropriadas depois em slogans de campanha do Partido Comunista Português, aquele que vai usar mais as paredes como Voz.
A Cidade, com as suas paredes e muros vai ser uma mostra de um sentimento geral de libertação e nesse sentido a pintura mural do pós 25 de Abril pode ser vista como um amplo acervo de documentação histórica pois reflete as perspetivas, ansiedades, contentamentos, instabilidades e o espírito da população do pós Revolução de Abril.
Nesse sentido, o Centro de Documentação 25 de Abril, criado pela Universidade de Coimbra, possui um vasto arquivo fotográfico das pinturas murais mais representativas dos primeiros anos pós revolução. São mais de 500 fotografias. Um arquivo que o Centro de Documentação 25 de Abril disponibiliza via on-line e que pode ser consultado por todos. Um arquivo que pode servir aos diferentes domínios das ciências sociais, a que pode encontrar na Pintura e inscrição mural um vasto campo de pesquisa – o da literatura marginal (marginal em relação à sua forma de transmissão diferente da tradicional: o muro como um novo suporte). Um vasto campo de pesquisa em que a Literatura Comparada e os estudos literários de inter-artes podem explorar a relação direta da literatura com o fenómeno da arte urbana e mais diretamente da pintura ou inscrição mural. Fenómenos interartísticos que devem ser integrados como um todo numa pesquisa abrangente deste período. Também a música (neste caso, a música de intervenção) vai dialogar diretamente com o tipo de inscrições murais. Algumas partes das letras de músicas de intervenção (proibidas antes de 1974) vão ser escritas nas paredes como símbolos da conquista da democracia e da liberdade de expressão: “Grândola Vila Morena” ou “A Morte saiu à rua” tornaram- se símbolos musicais da revolução. A letra desta última foi reformulada em “O povo saiu à rua”.
A contestação social, a criação literária, as artes plásticas agora vistos como documentos históricos, reflexos de um dos períodos com as mutações mais rápidas e profundas de que há memória no país. A Arte Urbana, a expressão popular e sincera deste período histórico foi mais do que um veículo para expressar esta mudança – As paredes refletiram, como nunca antes, toda a expressividade reprimida em anos de opressão.
A cidade e o campo vestiram-se de novas cores e refletiram um sentimento geral que retira de uma primeira voz (a cidade habitada pelos seus habitantes em que os diferentes edifícios têm já conotações primeiras, carregadas já de primeiras impressões) uma segunda voz, a que reflete um sentimento quase sempre geral, o de todos.
BIBLIOGRAFIA
Difusão da Pintura Mural na cidade de Nova York:
http://www.at149st.com/history.html
http://www.subwayoutlaws.com/history/history.htm
http://rmc.library.cornell.edu/hiphop/faq.html
Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra:
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Galeria&pn=0&album=Murais+Neuparth
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
Imagens Recolhidas do Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra:
Arquivo Fotográfico On-line: http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Galeria&pn=0&album=Murais+Neuparth
Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É Professor Visitante no Departamento de Línguas e Culturas Românicas da Universidade de Buffalo em Nova York e autor dos livros: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015), O Desenhador de Sóis (2017), Ode menina (2021) e Escrever um Poema sobre a Liberdade e vê-lo arder (2022).