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Judite, a filha caçula, tinha uma alma intranquila e não sabia. Ela roubou o namorado de Ana, a irmã mais velha, que até hoje continua solteira.
Naquele chão árido, entre os galhos, os insetos e as maçãs do algodão, Judite surgia com uma lata d’água vazia. Era meio-dia, todos estão fora da plantação. Uns ficavam almoçando, outros deitados em suas redes. O sol não dava descanso. Mesmo assim, o amante de Judite aparecia. Certa ocasião, na missa, escutaram uma leitura do Cântico dos Cânticos e se sentiram dentro daqueles versículos. Era algo santo e profano em cada desejo que evaporava no calor do sertão.
Pedro, que primeiro amou Ana, depois amou loucamente Judite. Mulher dona de uma beleza perigosa que sempre carregou algo selvagem dentro dos olhos. Baila um desejo de desgraça na pele dela. É o que as mulheres dos arredores diziam. Judite, que sempre teve os homens em suas mãos, não deixava transparecer que amava Pedro. Era como se estivesse apenas num jogo, sendo o vencedor quem saísse menos ferido. Se aquilo tudo era um jogo para Judite, foi Ana quem saiu mais ferida.
Ocorre que em lugar pequeno nada fica muito tempo escondido. As pessoas começaram a desconfiar. Principalmente porque o rapaz ficava com cara de bobo. Com o tempo, já nem disfarçava, e a imprudência era a melhor amiga da língua. Judite dizia: “Ô! língua”. Entre sol, algodão e suor, as peripécias dos dois chegaram até à família. Seu Nonato pôs uma espingarda dentro de um saco de estopa e, juntamente com Rodrigo e Gil, foi até à casa da família de Pedro. O recado foi dado. Mexeu tem que casar. Ou ele assume a filha ou vai ter sangue. Naquele momento, Pedro pensou na primeira vez em que conheceu o corpo de Judite, isso porque não havia virgindade nenhuma. Aquele corpo já era viajado. Na verdade, uma boa viagem. Mas acontece que Pedro a amava como quem rasgava as próprias entranhas; tê-la para sempre era a sua compulsão. Mesmo com todo o tabu do sertão, não importava o ponto de origem. O que importa é o destino.
Pedro guardou segredo, até porque adorou as exigências da família. Era o que mais queria da vida. Judite, nem tanto. O que importava era ter um homem com quem dividir os prazeres, que, na realidade dela, só seriam concedidos por meio do casamento. Hoje estão casados. Judite vive bem, toma conta de todos os negócios da família. O marido só serve para assinar o talão de cheque da agência bancária, que fica em outra cidade. O comerciante fica o tempo todo sonhando em comprar terrenos. E depois construir uma vila de casinhas para alugar aos menos favorecidos.
Quando Pedro e Judite estão brigados, ele toma sua cachaça e passa um bom tempo pensando que poderia ter sido mais feliz se tivesse continuado com Ana, a irmã calma. Ela fala pouco e vive para ajudar o pai nos trabalhos domésticos. Hoje, quando fez a comida, contou os lugares na mesa, queria um dos sobrinhos. “Uma criança alegra tanto uma casa”, dizia. O dia corria como vento de tempestade. Ana queria descansar um pouco e cortar as unhas. Mas, durante o dia, varre a casa, prepara a comida e espera a roupa secar ao sol, quer deixar tudo engomado. Ela não gosta quando sobra trabalho para o dia seguinte. Depois que a mãe morreu, tudo caiu nos ombros dela. Ana sente dores nas costas e queria um sono restaurador num lugarzinho só dela. Mas os cômodos da casa são de todos. Às vezes, ela fala sozinha: “Pai torce para eu continuar solteira, pai não quer perder o jumentinho de carga”.
Quando o dia finda, Ana visita a cova da mãe. Acende uma vela e lamenta ter ficado órfã tão cedo. Lamenta por não ser o pai ou a irmã naquela cova. Ela se sente culpada por desejar a morte de Nonato e de Judite. É como se por dentro existisse uma criminosa. Por isso, passa os dias sem olhar para os dois. Nem todo mundo admite o seu lado escuro. Quando anoitece, encontra o seu único momento de descanso. Deita-se na rede e tenta esquecer o quanto se sente culpada. No entanto, volta a repetir: “A maldita da Judite roubou meu único namorado, me condenou à vida de empregadinha”.
Jenipapo Western
Tito Leite
Editora Todavia
Tito Leite nasceu em Aurora (CE) em 1980. É mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Poeta e ficcionista, é autor dos livros de poemas Digitais do caos (2016, edith), Aurora de Cedro (2019, 7letras) e A palavra em seu deserto (2023, Cloe). Estreou na prosa em 2022 com o romance Dilúvio das almas (Todavia). Jenipapo Western, é novo romance (2024, Todavia).