Penso que uma das características mais fascinantes em Macau, pelo menos para a comunidade portuguesa, é o facto de conter em si um conjunto de binómios de contradições e opostos. Em Macau, vivemos num constante ambiente de aldeia, num dos lugares com maior densidade populacional do mundo; sabemos que estamos muito longe de casa, mas vamos jantar polvo à lagareiro e ao supermercado comprar tostas do continente, temos constantes desafios linguísticos mas no autocarro ouvimos que “a próxima paragem é…”, dizemos que é um lugar de encontro entre culturas mas passamos a maioria do nosso tempo entre conterrâneos.
A sua geografia indiciava pouco potencial para expansão do território mas, desde o início do século passado, Macau já triplicou a sua área, e os projectos para continuar a fazê-lo estão em andamento. Desde 2017, quando cheguei a Macau, a paisagem vista ao atravessar as pontes entre Macau e Taipa modificou-se intensamente. Num curto período, onde em 2017 havia água passou a ser terra, e nessa terra hoje nascem torres altas. Nessas torres, em breve, nas horas de ponta, dezenas de pessoas vão fazer filas para apanhar elevadores, porque aqui o trânsito intenso não é apenas horizontal.
Em Macau, Veneza, Paris e Londres ficam na mesma rua. O Big Ben e a Torre Eiffel estão a uma caminhada de 5 minutos de distância e é possível passear de gôndola pelos canais de Veneza ao som de “O sole mio”. Tudo isto pertence aos enormes empreendimentos compostos por casinos com hotéis e shoppings acoplados. Digo desta forma, não pelos casinos serem os principais equipamentos em termos de área ocupada, mas sim de importância, sem essa parte as outras não existiriam.
É incontornável falar do papel do jogo quando falamos de Macau. É a principal indústria e toda a organização da vida da região está sob a sua influência. Antes do Covid, os números de entradas diárias na região chegavam aos 400 mil, num território com pouco mais de 660 mil habitantes, e os lucros do jogo chegaram a ser 7 vezes superiores aos de Las Vegas.
A indústria do jogo tem tudo preparado para visitas curtas e eficientes. Para além das opções de transportes privados, os principais casinos têm shuttles gratuitos e directos dos vários pontos de entrada em Macau. Nos casinos tudo é pensado para incentivar o cliente a permanecer no empreendimento. Desde as fragrâncias utilizadas ao desenho labiríntico, e com pouco contacto com o exterior, do espaço, onde em fase de projecto o mestre de feng shui tem a palavra final. E, de facto, para muitos turistas não há necessidade de sair. Usufruem de uma vasta escolha de quartos e restaurantes, lojas, entretenimento, passeios turísticos, luxuosos spas e até de praia artificial sem sair do mesmo edifício.
Todos estes espaços transmitem luxo e ostentação, muitos tons de dourados e brilhos, diamantes gigantes que saem do tecto, acessos à recepção feitos por teleférico, entradas com lagos que apresentam constantes espetáculos de música, luz, som e fogo para o espanto do visitante. Este aparato muitas vezes contrasta com o fato de treino descontraído de parte dos turistas chineses e especialmente com o seu hábito de deambular de roupão e chinelos de quarto nas zonas públicas desses grandes complexos.
Ao lado de um destes hotéis, com um enorme candelabro e colunas gregas na entrada, fica o Cais 22, um restaurante com esplanada virada para o rio. No Cais, ao entrar passamos pela cozinha onde podemos vislumbrar homens em tronco nu e avental a trabalhar, jantamos a ver os pratos serem lavados à mangueirada, as baratas são clientes habituais, como é prática local os guardanapos são substituídos por um rolo de papel higiénico em cima da mesa e no final não sabemos quanto pagamos por o quê. No entanto, é um dos restaurantes chineses mais populares na comunidade portuguesa. Típico para jantares de grupo, com boa comida e, contra todas as expectativas, nenhuma queixa de intoxicação alimentar. O simpático dono sabe dizer em português: “Tudo, não metade” para poder brindar connosco e só fecha quando decidimos ir embora.
Apesar de todo o luxo que Macau pode oferecer, o Cais é um sítio quase obrigatório quando temos visitas, até Ricardo Araújo Pereira e Nuno Markl lá jantaram depois dos seus espetáculos nesta região administrativa especial. Macau é assim um lugar entre o luxo e o mundano, onde na maioria das vezes aquilo que realmente é, é mais interessante do que aquilo que quer parecer ser.
Arquitecta de profissão, Sara Neves é de Gondomar, estudou na Soares do Reis no Porto, e mais tarde, na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Durante o curso, fez intercâmbio de um ano no Rio de Janeiro. Desde 2017, vive em Macau onde trabalha num escritório de Arquitectura, principalmente em projectos de obra pública.
O gosto pelas viagens começou cedo e hoje já visitou mais de 30 países, em 4 continentes e em diferentes tipos de viagens.