Cultura

O peso dos excessos no coração: a poesia de Alda Alexandre | Letícia Ferro

Premida pelo tempo, a poesia o pronuncia e, nele, intervém, por endosso ou escape, os valores de sua afecção, deflagrando o nervo de sua existência – tão sensível ao passamento dos dias. A realidade, uma vez decantada em versos, dispõe-se de interrogação intermitente. O reflexo de seu contorno é o da linha mútua, dupla mão – a contemporaneidade em cena. Entre profusas e provisórias, a fala e a cifra do frescor poético impelem o ordinário, (res)significando-o. Da perspectiva, pois, do que dilata e aformoseia de forma lírica, a paisagem poética prescinde da realidade sob a inscrição da ficção, denotada não linearmente, pelos arroubos insurgidos de sua imprevisibilidade, fragmentação e força. Prova disso está no modo como a Covid-19 usurpara, mundo afora, quando não o direito à vida, a forma de sua compreensão, deixando no lugar inúmeros estilhaços – sequelas, o “novo normal”, em que pese o completo estranhamento dessa expressão. Fato é que com a pandemia, a conversa com os de fora e com os de dentro (vulgo com os nossos próprios botões) seria travado à distância, encontrando nos dispositivos virtuais a (im)possibilidade das relações. 

 

Assim, parafraseando Ferreira Gullar, a quem cito de memória, é inequívoco reconhecer que a arte deve mesmo existir porque a vida não basta por si só. Tal premissa traduz, com perfeição, o que vivemos nestes últimos tempos, à medida que fomos expostos à prova de sua veracidade, como a da nossa própria existência, não raro, excedida emocional e deliberadamente. O que, de outra parte, não significa dizer que a arte careça estar tão somente a serviço da catarse dos corações. Isso porque sua função contempla, também, inúmeras outras coisas: desde seu cerzimento – numa perspectiva metaflorada do verso não doado pelas musas à crítica – aos aspectos social e geopoliticamente configurados, às defesas estapafúrdias ao terraplanismo, ao negacionismo… ao fascismo – com todos os seus desdobramentos – numa despudorada ascensão…!

 

Partindo disso, e com os acontecimentos do mundo, de repente, caindo em cólera dentro de cada um, a arte senão nos tornaria protagonistas, ao menos, sublevaria ao alcance de sua potência transformadora, disposta a golpear os dramas, mas deles se (con)valendo enquanto pensamento de re/mal/criação. E é bem isso o que faz Alda Alexandre, em suas assimetrias ordinárias, vindas a lume no ano de 2022, porém, compostas, em sua maioria, no curso do crônico período de isolamento. Nesse sentido, ao acessá-las, somos secretados à interiorização da poeta; colocados a par de sua percepção modulada a cada “sinal dos maus tempos,” (Alexandre, 2022, p. 11), sem “meus inestimáveis amigos/ e o nosso riso histérico de cada dia” (Alexandre, 2022, p. 51) – o que, em muitas ocasiões, fez com que ela se encontrasse envolta num looping existencial de quem, estando “soterrada no interregno” (Alexandre, 2022, p. 37)”, hesitaria entre “quero e não quero o movimento do dia/ então espero mais/ quieta/ pelo primeiro impulso/ pra sair da cama e reiniciar/ como se valesse à pena/ toda vida a/ mesma lida” (Alexandre, 2022, p. 23). Lida que, é preciso considerar, ultrapassa o cumprimento de uma simples rima para ser leitura substantiva de sua labuta consigo mesma, interceptada pela (des)organização dos pensamentos na escrita, qual nas páginas de um diário. A apreensão que a poeta faz desse processo simultâneo soçobra incertezas – visto que estas, em sendo apresentadas a reboque de um movimento íntimo, fazem Alda “[…] desacreditar [dos] meus critérios, me importar quase/ nada com os ritos consumados, me mover pra onde fosse” (Alexandre, 2022, p. 9).

 

O movimento da poeta chega a tocar, assim, no limiar de uma existência assimétrica, com imperfeições tanto por meio de observações sobre sua construção no centro do embate com a inspiração – que a faz ficar “[…] rodopiando como um pobre cata-vento em sua órbita ordinária/ e desgovernada” (Alexandre, 2022, p. 10), no aguardo de um verso – quanto com a estrutura, ao se deparar com “[…] um tipo de antimatéria” (Alexandre, 2022, p. 11) – fórmula beckettiana, em que se toma nota de que o fim está no princípio e, no entanto, permanece contínuo, e que Alda Alexandre ecoa, “[…] em pleno/ apocalipse […]” (Alexandre, 2022, p. 33), “[…] renega[ndo] o impulso de irromper na vida/ com a boca seca desembarcando em estranhas estações” (Alexandre, 2022, p. 14). Bem como quando se propõe a “[…] escrever até/ dar com a cara no muro […]” (Alexandre, 2022, p. 9), entregando-se aos “[…] recomeços cíclicos […]” (Alexandre, 2022, p. 33), ainda que dispostos ao “[…] fugaz clímax” (Alexandre, 2022, p. 10) – acometedor até mesmo dos dias de “[…] pequenos atos” (Alexandre, 2022, p. 33), ou “[…] de pequenas demandas […]” (Alexandre, 2022, p. 17), como a de lavar uma louça ou a de assuntar o périplo de um gato por toda a casa.

 

A relação da poeta com o mundo entronca no ritmo (em) que (se) enuncia. Como na própria relação com a escrita condicionada. Oscilando-a, com cuidado, o modo de dizer, com versos expectantes, a prosa ordinária que escava a existência – podendo findar-se a qualquer momento – entrevendo-a, poeticamente, insurge-se; sua forma é pulsante e o seu deslocar-se entre as palavras, erigindo no silêncio de um refúgio, é tão mais impossível quanto mais enunciado, dadas as “[…] rotas penosas/ no gesto da escrita” (Alexandre, 2022, p. 21). Com efeito, a cada verso (in)contido, a poeta “pinta os dois olhos assimetricamente” (Alexandre, 2022, p. 20), e nas “entrelinhas em lâminas” (Alexandre, 2022, p. 45), sob cuja circunscrição apaixonada, que é “doce” mas não se furta de ser “metal”, quando necessário, ela se (per)faz. Com assimetrias ordinárias, Alda ganha a luta contra o ordinário dos dias e faz dele uma de suas muitas versões, não se rendendo sob o peso das perdas ou da linguagem. Ao contrário. O tempo entre provisório e precário, a pausa, a página em branco, o suspiro, o isolamento social, a desolação e desesperança… não a distam das letras ou de si mesma. Tampouco, a entrega ao silêncio, como se tudo que precisasse dizer já tivesse sido dito. “[A] coisa mesma que não se encaixa” (Alexandre, 2022, p. 36) não abrevia seu lugar no mundo, mas a confere caráter infinito: o recomeço se faz urgente na escrita e na vida, como “suspiro de vale à pena/ que em seguida exalo” (Alexandre, 2022, p. 36), e mais uma vez. E quantas mais forem necessárias.

 

Referências

 

Alexandre, Alda. assimetrias ordinárias. Goiânia: Secult Goiás; Secretaria de Cultura do Governo Federal; Rebellium Coletiva, 2022.

 

Fotografia de Letícia Ferro

 

Letícia Ferro é editora e crítica literária, com graduação, mestrado e doutorado em Letras, pela UFG. Possui diversas publicações em periódicos especializados. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com.



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