Sociedade

Japão: uma noção de escala | Sara Neves

Fui ao Japão em Março de 2018. Aterrar em Tóquio obriga a uma reflexão sobre o conceito de cidade –  que limites, em termos de área e população cabem na sua definição. Esta capital são várias cidades numa só, cada uma com características e identidades próprias. Um conjunto de ecossistemas ligados por uma complexa e excepcionalmente eficaz rede de infraestruturas e transportes que permitem enormes fluxos diários. A dispersão e expansão contínua da cidade permite-nos ter uma sensação de desafogo e conforto mesmo no centro de uma megacidade. 

 

 

 

No Japão senti que a consideração e o respeito pelo próximo eram valores elementares. Por questões de segurança, as cidades não têm caixotes do lixo na rua, no entanto nunca vi lixo; fumar só é possível em áreas bem delimitadas, por vezes apenas em cabines individuais na rua; uma expressão de dúvida a olhar para um mapa resultou, quase sempre, numa oferta de ajuda mesmo por pessoas que não falavam inglês. A situação que mais me marcou sobre este tema aconteceu quando ia apanhar um comboio de alta velocidade entre cidades. Para além de rigorosamente pontuais, os comboios em que andei apresentavam-se sempre imaculados graças a equipas que antes do início da viagem limpam meticulosamente todas as carruagens. Quando acabam, minutos antes da partida, saem do comboio coordenadamente, alinham-se e fazem uma vénia aos passageiros que param as suas conversas e retribuem. Um gesto simbólico mas muito bonito.

 

Esta integridade também se reflecte em segurança. Descrever um lugar é, na maioria das vezes, um exercício comparativo. Dizer que um país é seguro ou inseguro, por exemplo, depende do nosso próprio ponto de partida em relação a essa questão, o nosso nível zero. Uma vez, em conversa com uma amiga brasileira que vive em Portugal disse-lhe que uma coisa boa de Macau era a segurança, para ela era difícil imaginar um lugar muito mais seguro que Portugal. Nessa escala que vamos fazendo com os lugares que conhecemos, o Japão, para mim, está claramente no topo do podium no que diz respeito à sensação de segurança. Parece que se deixarmos alguma coisa no banco de jardim, por exemplo, podemos voltar passado um dia que ainda lá estará. Num restaurante não esperei pelo troco porque ia deixar como gorjeta e vieram a correr atrás de mim para me devolver. Em Kanazawa, na entrada de um templo havia uma mesa com garrafas de sake para quem se quisesse servir, e parecia não passar pela cabeça de ninguém abusar da hospitalidade ou levar as garrafas consigo. 

 

Durante o curso de arquitetura li o Elogio da Sombra de Junichiro Tanizaki, sobre a importância da sombra na estética japonesa, por oposição à valorização da luz na estética ocidental. Perto do centenário do livro, é interessante observar como essa distinção continua a fazer sentido, e esse ambiente continua a estar presente em alguns espaços, tradicionais e contemporâneos, que contrastam com a dança de neons coloridos que ocupam as noites das cidades. 

 

Para os arquitectos o Japão é uma cidade museu, é como entrar numa revista de arquitectura onde todos os espaços estão impecavelmente preparados para a fotografia. No documentário Tokyo Ride, realizado em 2020 por Bêka & Lemoine, o arquitecto, prémio Pritzker 2010, Ryūe Nishizawa fala sobre as diferenças entre a arquitectura do oriente e do ocidente, para ele a arquitectura ocidental são nomes e a oriental verbos, são movimento. Em Teshima, uma ilha rural que, em conjunto com ilhas vizinhas, se tornou um centro de arte e arquitectura contemporâneas, fica uma das obras mais conhecidas do arquitecto. Um museu único, onde uma concha de betão com duas grandes aberturas para o céu cria um abrigo onde o objecto de contemplação é a sinergia entre a natureza, a arquitectura e a arte. Sentados nos chão, olhamos para cima e vemos o céu, ouvimos os sons e sentimos a brisa do exterior, olhando em nosso redor, vemos quase imperceptíveis gotas que brotam do pavimento e se juntam em pequenas bolsas de água num movimento singelo e contínuo. 

 

 

Entre cidades extremamente complexas, o Japão é marcado pela simplicidade. A primavera pinta as ruas e os jardins de um cor-de-rosa leve, ao encher as cerejeiras – sakuras – de flores. É um espetáculo breve que tanto locais como turistas vivem intensamente. Os jardins enchem-se de pessoas para conviver e simplesmente experienciar este momento único que nos lembra a passagem do tempo e a efemeridade da vida.

 

 

Fotografia de Sara Neves

Arquitecta de profissão, Sara Neves é de Gondomar, estudou na Soares do Reis no Porto, e mais tarde, na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Durante o curso, fez intercâmbio de um ano no Rio de Janeiro. Desde 2017, vive em Macau onde trabalha num escritório de Arquitectura, principalmente em projectos de obra pública.

 

O gosto pelas viagens começou cedo e hoje já visitou mais de 30 países, em 4 continentes e em diferentes tipos de viagens.

Qual é a sua reação?

Gostei
2
Adorei
2
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Sociedade