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EDITORIAL: Marco temporal, uma ficção como fator de risco climático | Loreley Haddad

As comunidades indígenas e as florestas brasileiras estão sob forte ataque e precisam que nos unamos em seu socorro. O risco de que, mais uma vez, a bancada ruralista tente de tudo para garantir  sua permanência em território ancestral indígena. Sob a bandeira do marco temporal, alegam que os indígenas só podem reivindicar a posse da terra em que estavam assentados na data da promulgação da Constituição brasileira, em 5/10/ 1988. Sem ter  em conta que muitos  estavam lutando para retornar às suas terras originais, de onde foram  expulsos por invasores, grileiros, inclusive com genocídios.
Entra em cena a tentativa de passar  o Projeto de Lei 2903/2023 , já sob a infeliz alcunha de “PL do genocídio”. A tese do marco temporal, já foi analisada e rejeitada por 9 votos a 2 no STF, que a considerou inconstitucional, por ferir direitos fundamentais, cláusulas pétreas.
Eis que, numa afronta ao STF, uma frente ultra radical  de ruralistas,  a FDA, ressuscita-o e  incluiu itens mais agressivos e absurdos ainda, tais como:
  • o contato,  com índios isolados, expondo-os a doenças;

 

  • proibir a ampliação de terras já demarcadas, a fim de corrigir eventuais equívocos do passado;

 

  • retomar terras indígenas já demarcadas, por considerar que eles não são tão indígenas assim (afinal, usam tecnologias);

 

  • a construção de rodovias, ferrovias, hidrovias,  hidrelétricas em suas terras sem consulta prévia aos indígenas;

 

  • plantação de  transgênicos, pondo em risco as sementes tradicionais dos indígenas;

 

  • Instalação de redes de energia elétrica em suas terras, entre outras mazelas.

 

A fim de facilitar a compreensão, vejamos o que diz a nossa Lei Maior:
Artigo 231 da Constituição Federal
Constituição Federal de 1988

 

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
  1. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
  2. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
  3. O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
  4. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. 
  5. É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
  6. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
  7. Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Lula certamente o vetará, mas é preciso que o faça na sua totalidade, pois os riscos são enormes. Os danos são incalculáveis. O Senado, por sua vez, abriu mão de ser uma casa revisora. Não reviu nada. Há a expectativa do Congresso derrubar o veto de Lula para contemplar os ruralistas. Enorme retrocesso, principalmente pela devastação ambiental que disso decorrerá, sobretudo.
Os ruralistas são insaciáveis. O STF, inclusive, já tomou medidas protetivas, garantindo indenizações aos que provarem a ocupação de terra de boa fé, de terra não grilada, além de receberem também por benfeitorias feitas durante essa ocupação. Mas parece que nada lhes basta.
A aprovação do marco temporal já repercute fora do Brasil, principalmente em se tratando de meio ambiente. Amazônia, povos indígenas e esse ataque  direto aos direitos dos povos originários pode impactar as promessas de campanha de Lula, como haviam sido prometidas, inviabilizando-as. É de conhecimento geral que  reinserção do Brasil no cenário internacional, pauta-se, principalmente na politica ambiental e de direitos humanos. Perder essa oportunidade pode descredibilizar-nos por não cumprimento de promessas firmadas. Inclusive já há repercussão.  A líder do Partido Ecologista (Grupo dos Verdes) do Parlamento Europeu, Presidente da Comissão de Mercado Interno, a  Deputada alemã Anna Cavazzini disse que o Brasil dá um sinal ruim pro mundo e é catastrófico para os povos indígenas.
A ONU também tinha feito um alerta, que “se a aprovação acontecesse representaria um retrocesso muito grande e colocaria em risco  toda a política de direitos humanos para essa população”.
Além disso, pode impactar diretamente as doações para o Fundo da Amazônia e tantos outros mecanismos, provocando a suspensão de aportes financeiros , até que se resolva definitivamente essa questão.
Outro fator de relevância é o impacto ambiental, o clima, o aquecimento global, que já se mostra impiedoso com o aumento das temperaturas, inclusive no círculo polar Ártico, provocando alteração nas correntes marinhas, nos rios voadores, aumentando o risco de chuvas torrenciais, ciclones, furacões e secas violentas.  A solução está no aumento da cobertura florestal, não o contrário, além do abandono dos combustíveis fósseis.
Enquanto a floresta era somente manejada pelos seus habitantes autóctones (ou seja, antes do Brasil existir, enquanto país), a vida estava protegida e seguia seu curso.  Verdadeiras cidades, de variados tamanhos, existiam, entre a abundante flora e fauna, provendo as populações, que  viviam manejando a floresta, tirando dela seu sustento. Portanto as vidas dos que dela dependiam, seguia harmônica e plena, sem grandes desmatamentos, grandes queimadas, contaminação e envenenamento dos rios, açoreamento de rios e rompimento de barragens, poluições, enfim, manejo, sustentabilidade.
Não há como evitar o crescimento populacional e o uso de recursos naturais. A vida tem que seguir seu curso, inevitavelmente. Mas o que podemos  fazer, diante da gravidade do cenário que pode nos conduzir a um ponto sem volta é aprender a dar uma chance a Gaia. Temos que aprender, com as civilizações indígenas e seu conhecimento ancestral, a viver e deixar viver, a usar os recursos com responsabilidade e deixar esse legado de vida às futuras gerações, indígenas ou não. afinal, somos todos humanos. Cuidar das florestas e seus habitantes e, em última análise, cuidar da nossa própria existência enquanto espécie.

Cumpre-nos a missão de pressionar os congressistas, ocupar ruas e redes sociais: NÃO AO MARCO TEMPORAL.

 ” O índio não pisa a terra, ele toca a terra.”
(Kaká Werá Jekupé)

Fotografia de Loreley Haddad

Loreley Haddad de Andrade, brasileira inquieta, portuguesa aprendiz, amiga sincera, encantada, apaixonada, amante das artes, da história, da natureza! Uma professora de autistas e arte-terapeuta realizada profissionalmente, que, uma vez reformada, desejou navegar em outras águas! Atravessando o Atlântico, veio descobrir novas terras, novas gentes! Contadora de histórias, leitora, amante da poesia e da música, da dança, do folclore, das festas tradicionais, inclusive da culinária afetiva! Descobrindo, a cada dia, as delícias e prazeres da vida, da cozinha, da alma portuguesa, na totalidade das suas manifestações! Muito curiosa e aberta às novas experiências, feliz com as pessoas maravilhosas presentes na minha vida e com as surpresas que a vida me deu até aqui! Essencialmente inquieta!