Ciência

Somos animais “racionais”? – parte III | Marinho Lopes

 

Já conhecemos o viés da confirmação, o efeito de Dunning-Kruger, o viés da conformidade, o erro de atribuição ao grupoo viés da intencionalidade, o viés da “detecção de agentes”, o viés da autoconveniência e não só…! De que outras falhas irracionais sofremos? Nesta terceira parte vou-me focar em alguns dos vieses cognitivos que me parecem particularmente dramáticos nos tempos pandémicos actuais.

 

 

Viés da Normalidade

A pandemia é bem real. “Todos” sabemos isso. Ou será que sabemos?

 

O viés da normalidade acontece quando falhamos em reconhecer a iminência de uma catástrofe ou tragédia simplesmente porque… nunca nos aconteceu a nós. Mas mesmo depois de acontecer, o viés continua! Os riscos são desprezados assim como as consequências. “Só acontece aos outros, eu posso continuar a fazer a minha vida normal”. Por isso, é comum as pessoas não acreditarem nem reagirem às tragédias tornando-as ainda mais devastadoras.

 

Este viés está relacionado com o efeito avestruz: a vontade irracional de ignorar o perigo. (Não, as avestruzes não enterram a cabeça na areia para evitar o perigo. Darwin diria que avestruzes que o pudessem ter feito não teriam deixado descendência…)

 

Mesmo aqueles que acreditam que a tragédia é real, podem sofrer de um outro viés: o efeito de Peltzman. Assim que certas medidas de segurança são tomadas, é possível sofrer deste viés que resulta numa tendência para comportamentos de risco, como se se pudesse “compensar”. Por exemplo, alguém que goste de conduzir depressa poderá ter tendência a andar de carro ainda mais depressa por usar o cinto de segurança! Este é um dos “perigos” do uso de máscaras para conter a pandemia: pode fazer com que muitos se esqueçam da necessidade do distanciamento social! As máscaras, tal como o distanciamento, servem apenas para diminuir a probabilidade de transmissão do vírus. Por outras palavras, a transmissão só é controlada de forma eficiente se tivermos ambos os cuidados (máscara e distanciamento), sendo que o distanciamento (e isolamento) continuam a ser os cuidados mais efectivos.

 

 

Lei de Weber-Fechner

 

Esta lei diz-nos basicamente que a nossa capacidade de reconhecer alterações em estímulos físicos é bastante falível. A figura abaixo ilustra de que forma:

 

 

Os números indicam a quantidade de pontos nas figuras. As figuras de baixo têm respectivamente mais 10 pontos que as figuras de cima, porém, é muito mais fácil reconhecer a diferença quando comparamos os 20 com os 10, do que os 120 com os 110. Isto é, a nossa capacidade de reconhecer alterações na quantidade de pontos diminui à medida que aumentamos o número de pontos. Este efeito acontece em todos os nossos sentidos físicos (visão, audição, tacto, olfacto e paladar; falei sobre a Física dos sentidos nas edições 80, 81 e 82 da InComunidade).

 

Este “erro” de percepção “também” ocorre a nível cognitivo. O que acontece é que temos dificuldade em reconhecer variações “pequenas” em números grandes. Este problema é bastante claro nesta pandemia. Os números tornaram-se tão grandes que nos é difícil perceber o quão pior está a situação.

 

Como disse o ditador Stalin, “Quando um homem morre de fome, é uma tragédia. Quando milhões morrem, é apenas uma estatística.” Isto vai para lá da lei Weber-Fechner e ilustra o facto de termos grande dificuldade em compreender (e sentir) números enormes.

 

Viés da Proporcionalidade

 

Se algo de muito mau acontece, tem que haver uma grande razão… Ou não! Temos tendência para assumir que grandes eventos têm causas importantes. É assim que surgem as teorias da conspiração. Se uma figura pública importante morre de forma acidental, parece quase inevitável seguirem-se as notícias sobre possíveis causas para lá do acidente.

 

É assim em parte por causa deste viés que temos multidões a acreditar que o vírus “teve” que ter sido produzido em laboratório. Evidências a favor? Nada. Evidências contra? Várias, como o facto da genética do vírus ser concordante com o que seria de esperar em algo natural e não em algo produzido pelo homem. Ou o facto da pandemia nem ter sido uma surpresa, tento tido “alertas” com as epidemias do MERS e do SARS, e até tendo sido “prevista” na famosa Ted Talk que o Bill Gates deu em 2015 (e não só).

 

Viés da Disponibilidade

 

Este viés é também conhecido por “heurística da disponibilidade”. Trata-se como que de um processo cognitivo inconsciente que oferece maior valor à informação recente em detrimento de informação mais antiga. É como que um atalho que a nossa mente usa para não ter que avaliar todas as informações que tem (o que seria difícil). Por outras palavras, é como se o nosso inconsciente decidisse que só temos disponibilidade para considerar a informação mais recente. Este viés está relacionado com a nossa memória: é mais fácil recordar eventos recentes do que antigos, fazendo com que estes eventos recentes condicionem de forma mais pronunciada a nossa tomada de decisões no presente. É claro que este viés é muitas vezes justificado, o problema está em nem sempre o ser.

 

Durante a pandemia, parece-me que este viés tem tido vários efeitos, uns negativos e outros positivos. Um negativo que me parece claro tem sido a negligência de muitos problemas no mundo, nomeadamente o das alterações climáticas, visto que parece que neste momento a humanidade não tem disponibilidade para se preocupar com muito mais do que sobreviver à pandemia. Muitos países até parece que “aproveitaram” para fazer as suas guerras civis agora, pois sabem que as intervenções internacionais são menos prováveis (*). Por outro lado, este viés talvez até possa ser positivo para lidar com a explosão de informação sobre o vírus. De facto, nova informação é à partida mais actual e valiosa do que informação passada sobre como lidar com o vírus. O viés da disponibilidade ajuda-nos em parte a desvalorizar o que já não é relevante. Por exemplo, no início da pandemia não era aconselhável à população usar máscaras porque não as havia em quantidade suficiente para tal necessidade, pelo que era importante não estar a reduzir o stock para aqueles que necessitavam mais delas. Entretanto isso mudou e como tal tivemos que nos adaptar a uma nova realidade.

 

 

(*) Uma interpretação alternativa é que a probabilidade de conflito não tenha mudado, mas sem a pressão internacional houve uma menor probabilidade dos conflitos serem impedidos ou interrompidos.

 

Como é claro, este artigo não esgota o tema sobre os vieses que têm tido um impacto notório durante a pandemia. Na verdade, os vieses mencionados nas outras partes têm também um papel relevante. Aliás, é comum verificar-se combinações de vieses. A interacção entre vieses pode por vezes reduzir o seu efeito combinado, enquanto que noutras vezes pode ampliá-lo. Por exemplo, os vieses da confirmação e da conformidade andam de mão dada com o viés da proporcionalidade na criação de teorias da conspiração.

 

Na próxima parte iremos conhecer ainda mais “falhas” da nossa racionalidade.

“Penso que o seu método de avaliação dos testes é enviesado a favor dos estudantes que respondem às questões correctamente.”

 

Marinho Lopes é Doutor em Física pela Universidade de Aveiro.

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